#70. Na pauta do STJ: solidariedade, regresso e causalidade
No “Em Pauta” desta semana, o caso em destaque envolve três temas de grande relevância para o Direito Civil: solidariedade, regresso e causalidade. Na mira desta coluna está o Recurso Especial 2.069.446/SP, de relatoria do Min. Moura Ribeiro, julgado em maio de 2023,1 que teve como pano de fundo ação de regresso ajuizada por instituição financeira contra o seu codevedor solidário. Os fatos são singelos, mas as discussões jurídicas que lhes são subjacentes nem tanto.
Contexto
A origem da discussão é uma ação de indenização ajuizada por uma mulher contra seu ex-marido e uma instituição financeira, com quem ela havia firmado contrato de locação de cofre bancário. Nessa ação, alegou a mulher que seu ex-marido, sem a sua autorização e acompanhado de um funcionário da referida instituição, teve acesso ao seu cofre particular, subtraindo todas as suas joias que lá estavam guardadas (cujo valor conjunto ultrapassava a cifra de R$2 milhões).
A decisão de 2ª instância
O tribunal de origem entendeu que tanto a instituição financeira, quanto o ex-marido, deveriam responder solidariamente pelo ocorrido: a instituição financeira por ter descumprido seus deveres de vigilância e proteção da coisa que estava sob sua guarda (responsabilidade civil pelo fato do serviço), enquanto o ex-marido por ter subtraído indevidamente o conteúdo do cofre (bens particulares da mulher). No caso da instituição financeira, por se tratar de uma relação de consumo – regida, portanto, pelo Código de Defesa do Consumidor –, a responsabilidade é pelo defeito na prestação do serviço (responsabilidade objetiva, portanto). Já o ex-marido se submeteria ao regime da responsabilidade subjetiva, previsto no Código Civil.
Cumprimento de sentença
Em sede de cumprimento de sentença, a instituição financeira firmou acordo com a mulher para pagamento do valor devido (nota: a indenização abarcava tanto danos patrimoniais, quanto morais em sentido estrito). Do acordo constou que a instituição financeira ficaria sub-rogada no crédito objeto da transação, podendo exercer o direito de cobrá-lo integralmente do ex-marido, o que já é de se estranhar. Afinal, o caso não se enquadra em nenhuma das hipóteses de sub-rogação legal (a instituição financeira não é terceira interessada, mas antes devedora solidária2), nem de sub-rogação convencional.3 Instado a se manifestar sobre o acordo, o ex-marido permaneceu silente e, diante disso, sua concordância foi presumida.
Direito de regresso
Em seguida, a instituição financeira ajuizou ação de regresso contra o ex-marido, pedindo o reembolso integral da indenização, sob o argumento de que o ex-marido teria se beneficiado integralmente da dívida. Nas suas razões, a instituição financeira invocou os artigos 2854 e 9345 do Código Civil. No entanto, no entendimento do TJ/SP, a instituição financeira foi condenada de forma solidária com o ex-marido por prestar serviço defeituoso (art. 14 do Código de Defesa do Consumidor; responsabilidade pelo fato do serviço), de modo que só poderia pleitear deste último a sua cota-parte, equivalente a 50% do montante total pago pela instituição financeira, já que, de acordo com o artigo 283 do Código Civil, “[o] devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores”.
O recurso interposto perante o STJ
Inconformada com a decisão de 2ª instância, a instituição financeira interpôs o Recurso Especial n.º 2.069.446/SP, na tentativa de reaver o montante integral da condenação, e teve o seu pedido acolhido pelo STJ. Segundo o Ministro Moura Ribeiro, relator do caso, “nem sempre a solidariedade, na relação interna que se estabelece entre os devedores, determina a aplicação da regra da divisão igualitária”.6 Além disso, de acordo com o Ministro, “na ação de regresso, por sub-rogação, nasce uma nova relação jurídica, baseada, exclusivamente, no vínculo interno entre os codevedores e fundada na responsabilidade pessoal pelos atos culposos, e não na solidariedade passiva”.7
O fundamento da decisão do STJ
No entendimento do STJ, apesar de a instituição financeira responder objetivamente pelos riscos decorrentes de sua atividade, essa obrigação é solidária apenas na relação externa estabelecida entre ela e a credora. Já na relação jurídica interna que se estabelece entre os corresponsáveis pelo dano, o ex-marido teria agido exclusivamente em seu próprio interesse. Nos termos do voto do relator, sob a perspectiva dessa relação interna, seria inequívoco que o ato ilícito praticado pelo ex-marido teria sido a causa determinante dos danos sofridos pela mulher e do dever de indenizar. Decidiu o STJ, então, pela incidência da “exceção” prevista no art. 285 do CC, já que a solidariedade passiva estabelecida na ação indenizatória teria interessado apenas ao ex-marido, tornando-o responsável pelo ressarcimento integral do montante pago pela instituição financeira.
Solidariedade sem convergência subjetiva
No caso ora analisado, tanto o TJ/SP quanto o STJ reconheceram que a instituição financeira e o ex-marido deveriam responder solidariamente, diante de uma hipótese em que houve mera convergência objetiva na produção do dano. Como já analisado na edição #38 da AGIRE, “embora a hipótese mais corriqueira de aplicação do art. 942 do Código Civil seja a de coautoria, em que há convergência subjetiva e objetiva na produção do dano – ou seja, autor e coautor agem (ou se omitem), de forma coordenada, para a produção do dano”,8 há casos na jurisprudência em que o suporte fático de incidência do referido dispositivo é preenchido em situações de mera convergência objetiva, em que dois agentes não “combinaram” previamente a ação (ou a omissão), mas, apesar da falta de coordenação, a conduta de ambos leva à produção do mesmo resultado danoso.
As facetas da solidariedade passiva
A solidariedade divide-se sempre em duas facetas. De um lado, tem-se a sua faceta externa, que consiste na relação dos corresponsáveis pelo dano com a mulher; do outro lado, a interna, entre a instituição financeira e o ex-marido, codevedores da mesma dívida.9 Nessa relação interna é que vive o direito de regresso do codevedor que pagou a dívida por inteiro – no caso, a instituição financeira. Com o pagamento, extingue-se o vínculo solidário (externo) e nasce para a instituição financeira o seu direito de regresso.
Direito de regresso vs. sub-rogação
Direito de regresso, definitivamente, não se confunde com sub-rogação.10 Poder-se-ia cogitar, por força do acordo firmado com a mulher, que tal situação operaria verdadeira sub-rogação da instituição financeira na posição da antiga credora. A noção de sub-rogação como fundamento do regresso pode causar disfunções na vida prática, podendo incentivar “ações sucessivas ou até paralelas entre os diversos coobrigados pela dívida integral”11 e “também se mostraria inconsistente com a estrutura e a função da obrigação solidária, instituída apenas externamente e no interesse exclusivo do credor originário”.12 Nesses termos, não há que se falar em sub-rogação, uma vez que a instituição financeira não é terceiro, mas, sim, coobrigada. Isto é, a instituição financeira pagou dívida própria, estando seus direitos limitados pelo artigo 283 do Código Civil, que restringe o regresso à quota de cada codevedor.
A influência da causalidade na distribuição do prejuízo entre os corresponsáveis pelo dano
Na parte final do artigo 283, o Código Civil traz uma presunção de que, na solidariedade passiva, cada codevedor é responsável pelo débito na mesma proporção que os demais. Trata-se, no entanto, de presunção evidentemente relativa. Uma vez constatado o fenômeno da concorrência de causas, nada impede que o juiz fixe o valor do reembolso proporcionalmente à eficácia causal de cada conduta. Nas relações internas entre os corresponsáveis pelo dano, há três sistemas de distribuição do prejuízo que chegam a soluções diferentes:
· Sistema da paridade: a indenização deve ser dividida entre os corresponsáveis pelo dano em partes iguais;
· Sistema do grau de culpa: no momento de distribuir o prejuízo entre os corresponsáveis pelo dano, o julgador deve atribuir parcela maior para aquele que atuou com maior grau de culpa;
· Sistema do nexo causal: a indenização deve ser dividida entre os corresponsáveis pelo dano de acordo com a eficácia causal de cada conduta, de modo que o agente cuja conduta foi mais eficiente ou determinante para a produção do dano arque com a maior parcela da indenização.
Tanto o Código Civil italiano,13 quanto o Código Civil português,14 seguem o sistema do grau de culpa. No Código Civil brasileiro não há previsão análoga; o legislador indicou apenas que “[s]e a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano” (artigo 945 do Código Civil) e, ao ver de Aguiar Dias, a referida previsão nada mais faz do que confundir culpa com causalidade.15 Já o parágrafo único do artigo 13 do nosso Código de Defesa do Consumidor estabelece que “[a]quele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso”.
Culpa não se confunde com causalidade e, em rigor, não deveria ser usada como medida de indenização, papel muito mais afeito ao nexo de causalidade. Perante a vítima (relação externa), os corresponsáveis pelo dano são solidariamente responsáveis, mas, nas suas relações internas, é a eficácia causal de cada conduta para a produção do dano, e não o grau de culpa, que deveria definir as parcelas do prejuízo que ficarão por conta de cada agente ofensor, já que à responsabilidade civil não cabe punir ofensores.16 Subsidiariamente, quando não for possível definir o grau de contribuição na produção do resultado de cada agente, o sistema da paridade viria à tona para distribuir o prejuízo em partes iguais.
No caso em análise, há duas cadeias causais que contribuíram para a ocorrência do dano. Sem a conduta ativa do ex-marido, o dano não teria ocorrido; sem a omissão da instituição financeira, também não. É realmente possível afirmar, como fez o STJ, que a conduta do ex-marido foi a causa determinante do dano, ao ponto de absorver integralmente a conduta da instituição financeira? Se assim fosse, a instituição financeira sequer deveria responder perante a mulher.
O ponto aqui parece ser outro: embora tenha verdadeiramente contribuído para a produção do dano sofrido pela mulher, a instituição financeira também foi, ela própria, vítima da fraude perpetrada pelo ex-marido. Nesse aspecto, tem razão o STJ ao afirmar que, “malgrado a indiscutível falha no sistema de segurança bancário, forçoso concluir que o único beneficiado com a fraude perpetrada foi Marcelo”,17 o ex-marido.
Diante disso, o STJ aplicou o artigo 285 do Código Civil, cuja redação, a princípio, parece ter sido cunhada para a responsabilidade contratual. A indenização, no entanto, ultrapassou o valor do benefício auferido pelo ex-marido, porque o acordo firmado pela instituição financeira abarcava não só os danos patrimoniais, mas também os danos morais (em sentido estrito) sofridos pela mulher (fixados, como apregoa o próprio STJ, pela corrente subjetiva).
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: solidariedade, regresso e causalidade. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 70, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/129247909>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 3ª T., REsp 2.069.446/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 23.05.2023, v.u., DJ 29.05.2023.
Código Civil: “Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum; II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel; III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte”.
Código Civil: “Art. 347. A sub-rogação é convencional: I - quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; II - quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito”.
Código Civil: “Art. 285. Se a dívida solidária interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este por toda ela para com aquele que pagar”. O dispositivo trata, por exemplo, do caso da sociedade que contrai um empréstimo e o credor exige que os acionistas controladores figurem como devedores solidários. A dívida interessa à sociedade (apenas, indiretamente, aos controladores). Embora tenham se responsabilizados como devedores solidários, no fundo o Direito não ignora que os controladores são meros garantes, então, se forem demandados a pagar, podem exercer o regresso contra a sociedade, cobrando integralmente o montante pago.
Código Civil: “Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz”. O dispositivo não deveria ser aplicado no caso em análise, porque a instituição financeira participou da causação do dano.
Trecho do voto do Relator.
Trecho do voto do Relator.
Gisela Sampaio, “Atrasos concorrentes e simultâneos" em construção: um problema puramente de causalidade”, AGIRE, n.º 38. Disponível em https://agiredireitoprivado.substack.com/p/38-atrasos-concorrentes-em-construcao. Acesso em 18.06.2023).
Domício Whately Pacheco e Silva, Solidariedade no direito das obrigações. São Paulo: Almedina, 2022, pp. 381-384.
Existem duas espécies de sub-rogação convencional: (i) a primeira, por iniciativa do credor, que recebe o pagamento do terceiro e lhe transfere expressamente seus direitos (art. 347, inciso I, do Código Civil); e (ii) a segunda, que deriva da iniciativa do próprio devedor: o terceiro empresta recursos ao devedor para o pagamento da dívida, convencionando-se a sub-rogação em contrapartida (art. 347, inciso II, do Código Civil).
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber. In: Álvaro Villaça Azevedo (coord.), Código civil comentado: direito das obrigações, v. 4. São Paulo: Atlas, 2008, p. 149.
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber. In: Álvaro Villaça Azevedo (coord.), Código civil comentado: direito das obrigações, v. 4, cit., p. 149.
Código Civil italiano: “Art. 2055. Responsabilità solidale. Se il fatto dannoso è imputabile a più persone, tutte sono obbligate in solido al risarcimento del danno. Colui che ha risarcito il danno ha regresso contro ciascuno degli altri, nella misura determinata dalla gravità della rispettiva colpa e dall'entità delle conseguenze che ne sono derivate. Nel dubbio, le singole colpe si presumono ugual”.
Código Civil português: “Artigo 497.º - (Responsabilidade solidária). 1. Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade. 2. O direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis”.
Na opinião de Aguiar Dias: “No art. 947 [o autor refere-se ao art. 947 do Projeto que, quando aprovado, passou a corresponder ao art. 945 do Código Civil de 2002], volta-se a considerar a gravidade da culpa concorrente, para determinar a participação na obrigação de indenizar, quando o melhor e mais exato critério, na espécie, é o da causalidade. Não é o grau de culpa, mas o grau de participação na produção do evento danoso, reduzindo-se ou até excluindo a responsabilidade dos demais, que deve indicar a quem toca contribuir com a cota maior ou até com toda a indenização” (Da responsabilidade civil, v. 1, 9. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 38).
Nesse sentido, remete-se a Gisela Sampaio da Cruz, O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 330-333.
Trecho do voto do Relator.