#72. Compensação de créditos regidos por leis de países diferentes
por Daniel Gruenbaum
A compensação é modo de extinção de obrigações recíprocas. Mas qual direito a rege? Quando os dois créditos estão submetidos a um mesmo direito, não há dúvida de que a compensação legal também será por ele regida. Mas o que ocorre quando os créditos estão sujeitos a ordens jurídicas distintas? Qual delas regerá a compensação legal, ou seja, os seus pressupostos, modo de operação e consequências?1
Se “A” é titular de crédito em face de “B” regido pelo direito brasileiro, e “B” é titular de crédito em face de “A” regido pelo direito inglês, como se opera a compensação legal? Automaticamente, tal como previsto no direito brasileiro; ou apenas mediante provimento judicial, como previsto no direito inglês? E qual o termo inicial da eficácia extintiva: desde o momento em que satisfeitos os pressupostos legais (ex tunc) como no direito brasileiro, de modo que as consequências da mora, inclusive juros de mora, também são extintas desde aquele momento; ou apenas prospectivamente (ex nunc), como no direito inglês, de modo que os juros continuam a acrescer ao principal até a decisão judicial que decretar a compensação?2
Diversidade dos Regimes Jurídicos da Compensação
O regime jurídico material da compensação legal não é uniforme, havendo variações entre os sistemas jurídicos quanto aos seus pressupostos, modo de operação e consequências.3 Para ficarmos apenas com uma diferença (a magna quaestio)4: o modo pelo qual se opera a compensação.
Em um primeiro grupo, a compensação legal se opera automaticamente (ipso iure compensatur). Assim ocorre no direito espanhol (art. 1202 CC), bem como no direito brasileiro (art. 368 CC)5, ainda que, para parte da doutrina, seja necessária a iniciativa do credor em alegá-la para que a compensação produza os seus efeitos retroativamente (ex tunc).6
Em um segundo grupo, a compensação depende de declaração unilateral do credor. Assim ocorre no direito português (art. 848, §1o CC), no direito alemão (§388 BGB) e, depois da reforma de 2016, no direito francês (art. 1347, §1o CC). É digno de nota que, mesmo nesses sistemas, feita a declaração pelo credor, os créditos são extintos retroativamente desde o momento em que se tornaram compensáveis (art. 854 CC port, §389 BGB e art. 1347, §1o CC fr).7
Em um terceiro grupo, a compensação legal só pode ser arguida judicialmente, de modo que a extinção do crédito depende de provimento judicial. Assim ocorre no direito inglês (de difícil sistematização), particularmente com relação à legal set-off,8 cuja eficácia extintiva só se opera por força e a partir de provimento judicial.9Já a equitable set-off10 (também chamada de transactional set-off11)– que possui pressupostos mais rígidos (por exemplo, a exigência de conexão estreita entre os créditos) – independe de intervenção judicial.12
Três Principais Possíveis Soluções
Há no mínimo três soluções defendidas no direito internacional privado para determinar o direito aplicável à compensação de créditos sujeitos a ordens jurídicas distintas.13
A primeira solução é aplicar à compensação o direito que rege o crédito contra o qual se invoca a compensação ou, visto por outro ângulo, o direito que rege a dívida que a parte quer extinguir. Essa é a solução do art. 17 do Regulamento (CE) n.o 593/2008 (Roma I), que rege a lei aplicável às obrigações contratuais nos Estados-membros da União Europeia (menos na Dinamarca) e, mesmo após o Brexit, também no Reino Unido.14 Essa é igualmente a solução do direito internacional privado suíço (art. 148, §2o LDIP).
A segunda solução é aplicar cumulativamente os direitos que regem os dois créditos. A compensação só seria possível, então, quando estivessem satisfeitos os pressupostos previstos por ambos ordenamentos jurídicos. Essa solução – que parece ter perdido prestígio nas últimas décadas – já foi defendida, por exemplo, por parte da doutrina francesa,15 japonesa16 e alemã.17
A terceira solução é aplicar à compensação legal a lei do foro onde em curso o processo (lex fori), independentemente do direito que reja as obrigações. Essa solução já foi defendida no direito inglês.18
Direito Internacional Privado Brasileiro
No direito internacional privado brasileiro, não há norma que resolva o problema da lei aplicável à compensação de créditos sujeitos a ordens jurídicas diferentes. Diante da lacuna, quid iuris?
Qualificar a compensação legal como questão processual – e, por força da regra de conexão do art. 13 do CPC, sujeitá-la sempre às normas nacionais – é incompatível com o direito internacional privado brasileiro, no qual o instituto, por ter a função de extinção das obrigações, é claramente classificável como pertencente ao direito material. A circunstância de um processo estar pendente perante tribunal brasileiro não implica, portanto, que a compensação legal será necessariamente regida pelo direito brasileiro.
Já subordinar a compensação legal cumulativamente aos direitos que regem as obrigações recíprocas, apesar de teoricamente concebível, é uma solução ruim. Primeiro, porque aumenta a complexidade da resolução (que passa a depender da consulta a duas ordens jurídicas distintas) e consequentemente os custos de transação, algo que a compensação visa justamente diminuir. Segundo, porque dificulta desnecessariamente a compensação, o que vai contra o propósito do instituto, que é – por razões práticas e de equidade – favorecer a extinção de créditos recíprocos.19
Parece, então, que a melhor solução é a aplicação do direito que rege a dívida que se quer extinguir, ou seja, do direito que rege o crédito contra o qual se invoca a compensação. Abonada pela doutrina internacional privada brasileira clássica (e.g. Espínola,20 Campos Batalha,21 Pontes de Miranda22), essa solução tem a vantagem de ser mais simples e de não dificultar a extinção das obrigações recíprocas, promovendo justamente a função do instituto.
Essa solução também tem a vantagem de tutelar as expectativas da parte que não tomou a iniciativa da compensação, porque o credor que será afetado pela compensação consegue razoavelmente antever em quais situações seu crédito poderá ou não ser extinto de acordo com a mesma lei com base na qual busca a sua satisfação. Afinal, pode-se esperar que quem tomou a iniciativa da cobrança de um crédito regido por uma ordem jurídica consiga razoavelmente avaliar em quais hipóteses a cobrança não será bem sucedida em razão da extinção da obrigação com base nessa mesma ordem jurídica.
No exemplo dado anteriormente: se, no foro brasileiro, “A” tomar a iniciativa de cobrar seu crédito oriundo do contrato regido pelo direito brasileiro, e “B” alegar como defesa a sua extinção por compensação com base no crédito oriundo do contrato regido pelo direito inglês, então é o direito brasileiro que será aplicado aos pressupostos, modo de operação e consequências da compensação legal. Já se “B” tomar a iniciativa de cobrar no foro brasileiro seu crédito oriundo do contrato regido pelo direito inglês, e “A” alegar como defesa sua extinção por compensação com base no crédito oriundo do contrato regido pelo direito brasileiro, então é o direito inglês que será aplicado aos pressupostos, modo de operação e consequências da compensação legal.
Nada disso é realmente singelo. Mas, se serve de consolo, a dificuldade começou na vida, e não no direito internacional privado, ao se tornarem as partes reciprocamente titulares de créditos sujeitos a ordens jurídicas distintas.
Daniel Gruenbaum
Professor Adjunto de Direito Internacional Privado e Vice-Chefe do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel (2004) e Doutor em Direito (2010) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Sócio de Gruenbaum Advocacia.
No direito brasileiro, além da compensação legal, há também a compensação convencional e a compensação judicial (Gustavo Tepedino / Anderson Schreiber, Fundamentos do Direito Civil, vol. 2, 3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2022, p. 289). No texto, cuida-se apenas da compensação legal. A compensação convencional e a compensação judicial estão sujeitas a outra ordem de considerações.
Para não complicar demasiadamente o exemplo com outras questões de direito internacional privado que atormentam a compensação em contratos internacionais, pressupõe-se que os créditos estão sujeitos à jurisdição de um mesmo foro e que a moeda da dívida também é a mesma. Também não se cuida no texto de eventuais aspectos cambiais que a compensação pode suscitar se envolver residentes e não residentes (art. 12 da Lei n.o14.286/21).
Para um apanhado de mais de 30 sistemas, William Johnston, Thomas Werlen, Frederick Link (eds.), Set-Off Law and Practice: An International Handbook, 3rd. ed., Oxford, OUP, 2018. Veja-se também R. Zimmermann, Comparative Foundations of a European Law of Set-Off and Prescription, Cambridge, Cambridge University Press, 2002.
Reinhard Zimmermann, The Law of Obligations: Roman Foundations of the Civilian Tradition, Oxford, OUP, 1996, p. 760.
Cario Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. II, 27a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2015, para. 163, p. 244; Anderson Schreiber, Compensação de Créditos em Contrato de Empreitada e Instrumentos Genéricos de Quitação [Parecer], Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9 (jul.-set. 2016), p. 140, esp. p. 142-143; Nelson Rosenwald / Felipe Braga Netto, Código Civil Comentado, 2a ed., Salvador, JusPodivm, 2021, art. 368, p. 488.
Notadamente, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, t. XXIV, Rio de Janeiro, Borsoi, 1959, §2969, p. 326; Judith Martins-Costa, Comentários ao Código Civil, vol. V, t. I, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 629.
Ao menos especificamente quanto ao modo de operação da compensação, a diferença entre os dois primeiro grupos perde um pouco da importância prática, na medida em que, dependente ou não de declaração do credor, os efeitos da compensação são retroativos (ex tunc). No mesmo sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12a ed., 2a reimp., Coimbra, Almedina, 2013, p. 1100, nota de rodapé n.o 2.
Stein v Blake, [1995] UKHL 11, [1996] 1 AC 243, para. 4 (Lord Hoffmann).
Rory Derham, Derham on the Law of Set-Off, 4th, ed., Oxford, OUP, 2010, n. 2.38, p. 24; Fearns (t/a Autopaint International) v Anglo-Dutch Paint & Chemical Co Ltd [2010] EWHC 2366(Ch), [2011] 1 WLR 366, para 15; Nils Jansen / Reinhard Zimmermann, Set-Off, in Commentaries on European Contract Laws, Oxford, OUP, 2018.
Geldof v Simon Carves Ltd [2010] EWCA Civ 667, [2010] 4 All ER 847.
Philip R. Wood, The Law and Practice of International Finance Series, vol. 6 (Set-Off and Netting, Derivatives, Clearing Systems), 3rd. ed., London, Sweet & Maxwell, 2019, n. 4-017.
Rory Derham, Derham on the Law of Set-Off, 4th, ed., Oxford, OUP, 2010, n. 4.29, p. 99-100; Fearns (t/a Autopaint International) v Anglo-Dutch Paint & Chemical Co Ltd [2010] EWHC 2366(Ch), [2011] 1 WLR 366, para. 21.
Em perspectiva comparada, com referência a outras soluções, dentre outros, Jan Lieder, Die Aufrechnung im Internationalen Privat- und Verfahrensrecht, RabelsZ 2014, p. 809; Christiana Fountoulakis, Set-off Defences in International Commercial Arbitration: A Comparative Analysis, Oxford, Hart, 2011, p. 160 et seq.; Ernst Rabel, The Conflict of Laws: A Comparative Study, vol. 3, 2nd ed., Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1964, p.470-486.
The Law Applicable to Contractual Obligations and Non-Contractual Obligations (Amendment etc.) (EU Exit) Regulations 2019 (SI 2019/834), disponível em https://www.legislation.gov.uk/uksi/2019/834.
Paul Lagarde, Le nouveau droit international privé des contrats après l'entrée en vigueur de la Convention de Rome du 19 juin 1980, Rev. crit. DIP., vol. 80 (1991), p. 287, esp. p. 333; Jean-Pierre Rémery, L'opposition de la compensation aux créanciers d'une faillite ouverte en Italie s'apprécie selon la loi italienne, D. 1991, p. 137; Paul Lagarde, Remarques sur la proposition de règlement de la Commission européenne sur la loi applicable aux obligations contractuelles (Rome I), Rev. Crit. DIP 2006, p. 331, esp. p. 346 ; Pierre Mayer / Vincent Heuzé, Droit international privé, 9e éd., Paris, Montchrestien, 2007, para. 749, p. 559.
Aki Kitazawa, Assignment of Receivables and Set-off, Japanese Annual of International Law, vol. 50 (2007), p.77, esp. p. 85.
Mais recentemente, B. Jud, Die Aufrechnung im internationalen Privatrecht,, IPRax 2005, p. 104. Com referências a autores mais antigos, Ernst Rabel, The Conflict of Laws: A Comparative Study, vol. 3, 2nd ed., Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1964, p.470-486.
Meyer v Dresser (1864) 16 CB(NS) 646, 665 = 143 ER 1280, 1287 (Willes, J). Veja-se também Rory Derham, Derham on the Law of Set-Off, 4th, ed., Oxford, OUP, 2010, n. 2.55, p. 32; Paul Torremans (ed.), Cheshire, North & Fawcett: Private International Law, 15th ed., Oxford, OUP, 2017, p. 91.
Segundo explicação corrente, a compensação possui função não só prática – evitar pagamentos recíprocos simultâneos –, mas de “tutela da equidade, na medida em que a compensação evita que aquele que efetua o pagamento acabe sem receber aquilo que lhe é devido” (Gustavo Tepedino / Anderson Schreiber, Fundamentos do Direito Civil, vol. 2, 3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2022, p. 290). Em sentido similar, Judith Martins-Costa, Comentários ao Código Civil, vol. V, t. I, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 627; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12a ed., 2a reimp., Coimbra, Almedina, 2013, p. 1099.
Eduardo Espinola, Elementos de Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, p. 685-686; Eduardo Espinola / Eduardo Espinola Filho, A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro comentada na ordem dos seus artigos, vol. 2o, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1944, art. 9, n. 264, p. 624-625.
Wilson de Souza Campos Batalha, Tratado Elementar de Direito Internacional Privado, vol. II, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1961, n. 145, p. 198.
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Internacional Privado, vol. II, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1935, p. 233.