#75. O que é imputar?
Por Catarina Monteiro Pires
1. Imputar é atribuir a uma pessoa (ou, pensando na automação, a um “centro de atribuição”) (i) declarações de vontade (por exemplo, certas condutas de uma sociedade-mãe nas negociações de um contrato subscrito pela sociedade-filha ou da cláusula compromissória deste), (ii) estados subjetivos (por exemplo, conhecimento e desconhecimento de um auxiliar da negociação), (iii) vícios da vontade (por exemplo, o erro do representante) (iv) situações jurídicas ativas, maxime direitos subjetivos (por exemplo, direitos de voto) e (v) situações jurídicas passivas, maxime deveres (o dever de contraprestar, o dever de indemnizar, o dever de reparar e o dever restituir) ou ónus (por exemplo, imputação invertida do ónus da prova).
2. A imputação em Direito é funcional: a criação de um nexo de atribuição para fins de certas normas jurídicas ou de certos efeitos jurídicos.
3. A imputação em Direito é normativa, e não naturalística: por um lado, parte de um critério fixado por uma regra jurídica (ou por várias regras jurídicas) ou veiculado por um princípio jurídico e, por outro lado, fundamenta-se em considerações axiológicas ou valorativas. Tais considerações podem variar dependendo da função da imputação e mudam ainda no tempo e no espaço, acompanhando o momento histórico de cada ordenamento jurídico. A imputação implica uma questão-de-direito, mas não pode ser concretizada sem elementos de facto.
4. Certas imputações legais podem ser afastadas pela autonomia privada das partes, em medida variável, outras não. Os critérios legais de imputação podem ser supletivos ou injuntivos, dependendo da valoração que é feita. Assim, por exemplo, o axioma do direito contratual empresarial é a liberdade contratual, mas existem modelações contextuais; já em outros contextos, como os de consumo ou contratação de massas, o modelo axiomático deverá ser diferente, assumindo-se uma relação de inferioridade como ponto de partida. A injuntividade só pode ser discernida em relação ao contexto de referência e à norma de referência.
5. No “direito das perturbações da prestação”, a imputação pode ligar-se funcionalmente a quatro polos: ao dever de contraprestar (por exemplo, pagar o preço da obra), ao dever de indemnizar (por exemplo, compensar o credor pelo dano emergente ou pelos lucros cessantes do ilícito contratual), ao dever de reparar (por exemplo, entregar um bem sem defeito) e o dever restituir (por enriquecimento sem causa, por resolução do contrato e outros).
6. Dedicaremos este texto à imputação ao credor.
Se o credor provocar a realização do seu interesse executando ele próprio a atividade visada com a prestação ou contratando um terceiro para o efeito, desrespeitando o acordado com o devedor, não oferecerá grandes dúvidas ao jurista o entendimento segundo o qual a melhor solução é a da manutenção da contraprestação. Contudo, há casos que oferecem maior complexidade. Se, por exemplo, a fábrica onde a obra deveria ser realizada arder num incêndio ateado por um terceiro? Ou se o dono da obra não realizou a receção provisória da obra, porque ainda não estava em condições técnicas de o fazer, por doença grave do engenheiro que o deveria fazer, embora a obra pudesse já ser abstratamente recebida? Ou se o empreiteiro não cumpriu uma etapa da obra, porque o dono da obra não forneceu certos elementos, por exemplo desenhos técnicos ou estudos geológicos do local da obra. Os exemplos podem multiplicar-se.
7. O problema pode tocar, por exemplo, casos de impossibilidade definitiva da prestação, de impossibilidade temporária da prestação (incluindo mora) ou de concurso de condutas que tenham por resultado a falta de cumprimento. Em todas estas perturbações do programa obrigacional, a questão é: qual o sentido e limites da imputação ao credor?
8. O Código Civil brasileiro não contempla uma resposta direta a esta questão. O Código Civil refere-se às consequências da mora do credor, mas não a define. O mesmo Código alude em várias passagens a circunstâncias que não são imputáveis ao devedor, mas não recorta um círculo de imputação ao credor (por exemplo, o artigo 2351 sobre deterioração da coisa sem culpa do devedor, artigos 2382 e 240,3 perda da coisa antes da tradição sem culpa do devedor, artigo 248,4 impossibilidade de prestação de fato sem culpa do devedor, artigo 2565 impossibilidade de prestações alternativas sem culpa do devedor), nem estabelece uma regra geral atributiva do “risco de contraprestação” ao credor.
Finalmente, as regulações setoriais de contratos em especial não oferecem regras que pareçam poder constituir bases de imputação gerais.
9. Sobrevoando a “paisagem” do civilismo e simplificando, conhecem-se quatro orientações centrais de enquadramento do problema.
Uma primeira orientação procura construir, em relação ao credor, um título de imputação que valore a sua conduta, mesmo que esta não se trate de um dever, mas de um ónus. São imputáveis ao credor falhas de atos de cooperação.
Uma segunda orientação imputa ao credor os atos que este voluntariamente pratica, sejam censuráveis ou não (a “culpa” seria apenas do devedor), sejam de cooperação ou não.
Uma terceira perspetiva constrói o título de imputação a partir da fonte da conduta ou do acontecimento, independentemente de considerações éticas. Nesta seara, uma teoria divulgada é a teoria das esferas de risco: cada sujeito da relação obrigacional suporta o risco de contraprestação sempre que o evento causador da perturbação do cumprimento se relacione com a sua pessoa, com as suas coisas ou com a sua empresa, mesmo que não haja um concreto “ato do credor”.
Uma quarta orientação, próxima da anterior, imputa ao credor as contingências relativamente à sua esfera de controlo. O sujeito que controla a fonte ou origem é aquele que dispõe de informação e poder de decisão sobre a mesma.
10. À luz do exposto, uma proposta possível de modelo de enquadramento no Direito brasileiro será a seguinte. Caso haja um acordo das partes, deverá prevalecer esse título de imputação (artigo 4216). O acordo das partes traduzir-se na previsão de um dever de cooperação do credor, mas também na atribuição ao credor de um risco ou de uma garantia.
Não havendo acordo, há que procurar uma solução dogmática dentro das coordenadas do sistema. Ora, aqui parece ser de fixar alguns pontos: (i) não se encontra base no Código Civil para acolher uma teoria de esferas de risco (ii) não há razões para entender que o credor tem um dever geral de cooperação, mas, em diversas situações, o cumprimento do dever de prestar não pode ser isolada ou autonomamente cumprido pelo devedor sem que o credor disponibilize um ato de colaboração (iii) essa colaboração pode implicar atos do credor com vista à determinação da prestação, atos dirigidos à preparação do cumprimento da prestação debitória, atos de aceitação da prestação e até atos destinados à cooperação na superação de impedimentos (iv) A boa-fé e a confiança contratual permitem fundamentar e modelar os termos dessa cooperação (artigo 4227), justificando-se uma imputação ao credor por falha de atos de cooperação. Havendo imputação ao credor, haverá motivo para lhe imputar o “risco” em causa: por exemplo, o risco de contraprestação.
Catarina Monteiro Pires
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Concluiu o Doutoramento em Direito (Impossibilidade da Prestação, 2016), o Mestrado em Direito (Alienação em Garantia, 2008) e a Licenciatura em Direito (2001). Autora de vários livros. Advogada e árbitra.
“Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu”.
“Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda”.
“Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art. 239”.
“Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos”.
“Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação”.
“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.