#77. Cláusulas resolutivas ipso facto da insolvência: natureza jurídica
Contratar é correr riscos. E um dos riscos a que todo e qualquer agente econômico está sujeito é o de insolvência da contraparte. Pelas mais diversas razões, por vezes o empresário ou a sociedade empresária se veem diante de tamanha crise econômico-financeira, que outro caminho não resta senão o da recuperação judicial, quando há a possibilidade de soerguimento do devedor e continuidade da empresa, ou o da falência, nas hipóteses em que a situação de crise é irremediável. Por isso mesmo, tem-se tornado prática comum a previsão de cláusulas contratuais voltadas à gestão de referido risco que, no mais das vezes, visam estabelecer válvula de escape em favor do credor diante do pedido de recuperação judicial ou da declaração da falência do seu devedor, resolvendo a relação obrigacional de pleno direito.
Conhecidas como cláusulas resolutivas ipso facto da insolvência, tais disposições têm suscitado diversas controvérsias, notadamente a respeito da sua natureza jurídica e da sua validade e eficácia. Esta coluna tratará apenas das possíveis qualificações das cláusulas resolutivas ipso facto, enquanto a validade e a eficácia serão o foco de uma futura AGIRE.
1. Natureza jurídica: relevância da identificação
São três as possíveis qualificações das cláusulas resolutivas ipso facto da insolvência: (i) cláusula resolutiva expressa; (ii) condição resolutiva; e (iii) cláusula resolutiva lato sensu.1
A atribuição de uma dessas qualificações independe do nomen iuris conferido pelas partes à disposição contratual, mas está ligada, sobretudo, ao impacto da recuperação judicial ou da falência na consecução do resultado útil programado pelo contrato bem como à forma pela qual se opera a resolução. A relevância em identificar a correta natureza jurídica da cláusula reside na precisa distinção dos efeitos jurídicos dela decorrentes, como se passa a demonstrar.
1.1. Cláusula resolutiva expressa
No suporte fático da cláusula resolutiva expressa podem figurar eventos disruptivos do programa contratual, que comprometem o interesse do credor na manutenção do vínculo.2 Desse modo, faculta-se às partes, por meio da cláusula resolutiva expressa, gerir não só o específico risco do inadimplemento absoluto da prestação, mas também o risco da superveniência de quaisquer eventos que incidam diretamente sobre a relação, inviabilizando a atuação do programa negocial; para tanto, esses riscos, quando externos ao negócio, devem ser a ele internalizados e alocados expressamente a uma das partes.
No plano dos efeitos, uma vez configurado o suporte fático previsto na cláusula resolutiva expressa, confere-se ao credor o direito potestativo de optar entre a resolução da relação obrigacional ou a execução pelo equivalente.3 O exercício dessa opção se dá por meio de notificação ao devedor, que veicula declaração receptícia de vontade. Significa, portanto, que a resolução não se opera automaticamente, mas requer a interpelação do devedor (o tema foi objeto da AGIRE #1 e da AGIRE #42).
Pois bem. Para que a cláusula resolutiva ipso facto da insolvência se qualifique como cláusula resolutiva expressa e franqueie ao credor a resolução do contrato com os seus precípuos efeitos, é preciso:
que a recuperação judicial e/ou a falência obstem, efetivamente, a consecução do resultado útil programado, como se passaria na hipótese de a contratação do falido ter se dado intuito personae e a massa ter perdido as características personalíssimas, obstando irremediavelmente a satisfação do interesse útil objetivo do credor; e
que a resolução não se opere de forma automática, mas dependa da notificação do devedor.
Nesse caso, resolvida a relação obrigacional, produzem-se os efeitos4 (i) liberatório – ambas as partes ficam liberadas de adimplir as prestações ainda pendentes; (ii) restitutório – ambas as partes devem restituir uma à outra tudo o que hajam recebido em razão da execução do contrato, o que abarca os frutos percebidos desde o pagamento, sem que se cogite da boa ou da má-fé dos contratantes,5 descontados os custos de produção; e (iii) indenizatório – o devedor deve indenizar a contraparte pelas perdas e danos devidamente comprovadas ou, se o caso, já pré-liquidadas em cláusula penal compensatória, cujo valor deve ser habilitado pelo credor na falência (sobre o tema, confira-se AGIRE #41, AGIRE #65 e AGIRE #76).
1.2. Condição resolutiva
Condição resolutiva é elemento acidental do negócio (o tema foi objeto da AGIRE #63), cujas características essenciais são:
voluntariedade – a condição é aposta no concreto regulamento de interesses pela vontade das partes;
futuridade – o evento condicionante há de ser futuro. No entanto, é possível que certos aspectos do evento sejam passados ou presentes, mas que a sua completa conformação dependa de alguma confirmação futura, hipótese em que esse fato futuro (fato da confirmação) pode ser qualificado como condição.
incerteza – a dúvida quanto à ocorrência ou não do evento deve ser absoluta; e
externalidade – o evento há constituir fato estruturalmente autônomo, a operar externamente ao negócio, não se relacionando diretamente à realização do programa contratual.
No que tange à forma pela qual se opera a resolução uma vez implementada a condição, prevalece no direito brasileiro o entendimento segundo o qual ela é sempre automática, independente da vontade ou mesmo do conhecimento dos contratantes. Do ponto de vista prático, significa que, uma vez implementada a condição, o contrato está definitivamente resolvido, de sorte que “as partes só poderão restabelecer as relações de direito entre elas, por via de um novo contrato, sem nenhuma referência ao primeiro, que em hipótese alguma pode ser revigorado”.6
Tem-se, portanto, que nas hipóteses em que a recuperação judicial e/ou a falência consistirem em evento externo ao negócio, não interferindo diretamente no programa econômico do contrato, e a cláusula estabelecer que a resolução se operará automaticamente pelo simples fato da recuperação judicial e/ou da falência, a cláusula resolutiva ipso facto se qualificará como condição resolutiva.
A resolução operada por meio do implemento da condição resolutiva libera as partes das prestações pendentes e não impõe a qualquer delas o dever de indenizar a contraparte. O efeito restitutório é limitado: como a retroatividade dos efeitos da condição só alcança os atos incompatíveis com o direito atribuído àquele a quem aproveita a condição, impõe-se a restituição apenas do quanto desfeito.7
1.3. Cláusula resolutiva lato sensu
Afigura-se plenamente legítima a pactuação, pelos contratantes, de cláusulas resolutivas que franqueiem a uma ou a ambas as partes a resolução da relação obrigacional diante da constatação de determinados eventos, distintos daqueles que interferem diretamente no programa econômico do contrato e que conformam, portanto, suporte fático da cláusula resolutiva expressa. Quer isso significar que eventos dos mais diversos, que não impactem imediatamente na economia contratual e, portanto, não comprometam a consecução do resultado útil programado, podem ser eleitos pelas partes como passíveis de, uma vez verificados, conferir a uma ou a ambas o direito potestativo de resolver a relação obrigacional. Também nesta hipótese, a resolução requer a notificação do devedor, não se verificando de forma automática, com a mera ocorrência do evento previsto pelas partes.
Com efeito, para que a cláusula resolutiva ipso facto da insolvência se qualifique como cláusula resolutiva lato sensu, requer-se que a recuperação judicial e/ou a falência não impeçam a consecução do resultado útil programado e que a resolução se opere mediante notificação do devedor.
Resolvida a relação obrigacional a propósito de cláusula resolutiva lato sensu, liberam-se as partes das prestações que lhes incumbem, mas não se indeniza qualquer delas por eventuais prejuízos experimentados em razão da resolução.
2. Spoiler
Identificadas as possíveis qualificações da cláusula resolutiva ipso facto da insolvência e os efeitos decorrentes de cada uma delas, resta saber se elas são, afinal, válidas e eficazes no direito brasileiro, tendo em vista, sobretudo, o disposto nos arts. 49, §2º8 e 117, caput,9 da Lei nº 11.101, de 2005. A análise requer, em primeiro lugar, que se identifique se se trata de cláusula pactuada por adesão ou livremente negociada pelas partes.
Isso, porque, cuidando-se de cláusula pactuada por adesão, não existe mesmo divergências quanto à sua invalidade, por força do art. 424 do Código Civil.10 No entanto, tratando-se de cláusulas livremente negociadas entre partes paritárias e sofisticadas, a doutrina e a jurisprudência controvertem, dividindo-se entre (i) aqueles que a reputam inválida, (ii) outros que a entendem válida, e ainda (iii) os que sustentam que, posto válida, a cláusula pode ser ineficaz em determinadas circunstâncias, como se verá na minha próxima AGIRE Em foco.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Sobre o tema, confira-se: FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Distinção entre a condição resolutiva e a cláusula resolutiva expressa: repercussões na falência e na recuperação judicial. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 20, p. 183-207, abr./jun. 2019.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, jan./ mar. 2022, p. 142.
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 18, p. 49-73, out./dez. 2018.
Para análise dos efeitos da cláusula resolutiva expressa, confira-se TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: função, estrutura e operatividade. In: SILVA, Jorge Cesa Ferreira da; BARBOSA, Henrique (coords.). A evolução do direito empresarial e obrigacional: 18 anos do Código Civil. vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 605-626.
De acordo com Pontes de Miranda, “a resolução tudo resolveu, no tocante à dívida e ao seu adimplemento”, pelo que ela “tem de apanhar os frutos do que foi recebido, sem se ter de descer à apreciação do que subjetivamente ocorreu com o possuidor, ou proprietário e possuidor, ou só proprietário do que fora recebido” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. t. 25, p. 383-384).
CARVALHO SANTOS, João Manoel de. Código Civil brasileiro interpretado. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1963. v. 8, p. 397.
Sob a égide do Código Civil de 1916, Cunha Gonçalves já afirmava que “a restituição é limitada só à cousa e ao seu preço, pois só êstes foram os objectos do contrato”. Logo, o implemento da condição resolutiva “não faz reverter as partes, em absoluto, à situação anterior como se o contrato nenhum efeito houvesse produzido, o que até seria impossível, porque até à realização do facto condicional, o comprador foi o verdadeiro proprietário da cousa; e esta situação tem de surtir, até êsse momento, todas as suas consequências, entre as quais a de lhe pertencerem os frutos” (CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Da compra e venda no Direito Comercial brasileiro. 2. ed. mel. e atual. São Paulo: Max Limonad, 1950, p. 214).
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.