#78. Vacinas contra a COVID-19 e os riscos do desenvolvimento
Por Marcelo Junqueira Calixto
Alguns sites noticiaram recentemente que o BioNTech, – laboratório que em conjunto com a Pfizer desenvolveu uma vacina contra a COVID-19 aplicada em milhões de pessoas ao redor do mundo –, está sendo demandado, na Alemanha, por consumidores que teriam sofrido danos decorrentes deste imunizante. A primeira audiência sobre o tema ocorreu no último dia 12 de junho na cidade de Hamburgo e ainda não foi proferida nenhuma decisão. De todo modo, o laboratório já adiantou que os efeitos adversos são “muito raros” e estão listados na bula do produto. Também destacou o fato de os benefícios alcançados serem muito superiores aos danos que estão sendo alegados pelos consumidores.1
A análise da questão, do ponto de vista estritamente jurídico, permite afirmar que, ou se está perante um caso de responsabilidade civil objetiva por defeito de informação, – caso não seja verdade que todos os riscos estão precisamente informados na bula –, ou o laboratório busca se eximir de responsabilidade pela alegação dos “riscos do desenvolvimento”. Estes podem ser definidos como os riscos desconhecidos pelo mais avançado estado da ciência e da técnica, no momento da introdução do produto no mercado, e que só vêm a ser descobertos mais tarde, por força do desenvolvimento científico.
Trata-se de um dos temas mais angustiantes da responsabilidade civil e não foi por outra razão que a própria Diretiva 85/374/CEE, que regula a “responsabilidade civil do produtor” no âmbito do mercado comum europeu, não conseguiu alcançar a almejada uniformização legislativa, permitindo que cada país do bloco europeu dispusesse, em sua lei nacional, acerca do assunto.2 Certo é que muitos países optaram pela exclusão da responsabilidade, nesta hipótese, internalizando o disposto no art. 7º, alínea “e”, da norma comunitária.3 Outros, porém, em menor número, consagraram a responsabilidade, fazendo uso da previsão contida no art. 15, número 1, alínea “b”, do mesmo diploma.4 Por fim, alguns países, como Alemanha, França e Espanha, passaram a prever que, para certos produtos, não poderá o fornecedor se valer da exclusão, sendo a hipótese mais recorrente, justamente, aquela relativa aos medicamentos.5 Esse parece ser o principal fundamento para o ajuizamento das citadas demandas na Alemanha.6
No Brasil, porém, a questão dos riscos do desenvolvimento segue marcada por um intenso debate doutrinário. De um lado, estão aqueles que defendem a inexistência de defeito no produto, pois este é um conceito relativo e necessariamente dependente do conhecimento científico. Seria possível, em suma, falar que a legítima expectativa do consumidor é dependente do avanço obtido pela ciência.7
Outros autores, porém, entendem que esta hipótese pode ser considerada como uma nova espécie de defeito – o defeito do desenvolvimento –, pois parece inquestionável a reversão da expectativa de segurança do consumidor, critério suficiente para a afirmação do caráter defeituoso do produto.8 Também semelhante a esta última visão seria o tratamento da questão como uma nova espécie de fortuito interno, uma vez que se trata de um risco inerente ao produto, o qual, portanto, deve ser suportado pelo fornecedor e não pelo consumidor.9
Certo é que os riscos do desenvolvimento continuam se mostrando presentes em novos medicamentos, tal como se observa no recente episódio do SIFROL.10
O caso versava sobre uma consumidora do Rio Grande do Sul que, em 1997, foi diagnosticada como portadora do Mal de Parkinson. Como forma de tratamento foi indicado o uso do medicamento SIFROL, fabricado e comercializado, com exclusividade, pela Boehringer Ingelheim do Brasil Química e Farmacêutica Ltda. Segundo narrado nos autos do processo, no período de julho de 2001 a setembro de 2003, enquanto a consumidora fazia uso do produto, ela também desenvolveu uma “compulsão para o jogo”, a qual cessou após a suspensão dessa medicação.
A sentença prolatada julgou improcedentes os pedidos de reparação dos danos extrapatrimoniais e de indenização dos danos materiais. A apelação da autora foi, porém, provida pelo TJRS, tendo sido determinada a indenização dos danos materiais, na espécie “danos emergentes”, no montante de R$ 524.760,89 e também a reparação dos danos extrapatrimoniais no valor de R$ 20.000,00. O fundamento utilizado pelo TJRS foi o disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, tendo, igualmente, sido destacado que os valores fixados decorreram do reconhecimento da “culpa concorrente” da vítima, a qual se revelava em uma superdosagem do SIFROL, “bem como o seu emprego com o CRONOMET”.
As duas partes interpuseram recursos especiais para o STJ, tendo sido desde logo admitido o recurso do réu e inadmitido o da autora. Esta veio a falecer, mas o agravo interposto foi provido para determinar a sua conversão em recurso especial, sendo parte, doravante, o espólio da falecida consumidora. No julgamento dos recursos pela Terceira Turma do STJ houve o desprovimento do recurso interposto pelo réu e o provimento parcial do recurso interposto pela autora, justamente para que se afastasse a sua “culpa concorrente”, uma vez que, na visão do Tribunal Superior, a situação narrada configura, em verdade, uma violação ao art. 12 do CDC, ou seja, uma hipótese de responsabilidade civil objetiva do fabricante por fato do produto, tendo a consumidora feito uso do produto segundo a dosagem indicada, não tendo ingerido, “por conta própria, dosagem superior à recomendada pelo laboratório ou à prescrita por sua médica”.11
Na fundamentação de seu voto a Ministra Relatora inicialmente recorda que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o “jogo patológico” como uma “doença” e que uma “simples pesquisa na rede mundial de computadores revela a existência de diversos estudos científicos sobre a possível relação do uso de agonistas da dopamina (como o Sifrol), prescritos para o tratamento da doença de Parkinson, com o desenvolvimento de jogo patológico pelos pacientes”. Recorda, ainda, que em 14/12/2007 a ANVISA emitiu um alerta destacando a possível relação entre o uso de medicamentos para o tratamento do Mal de Parkinson e as Desordens do Controle do Impulso.
A seguir, a Ministra Nancy Andrighi entende ser fato incontroverso, no caso concreto submetido a julgamento, que o jogo patológico foi reconhecido como um dos efeitos colaterais do uso do SIFROL, muito embora o laboratório réu não tenha feito constar da bula deste medicamento referido efeito. Esse alerta só teria sido inserido posteriormente ao início do tratamento da autora, o que caracterizaria o caráter defeituoso do produto por infração do “dever de informar”.
Aqui se encontra a questão central do julgado, uma vez que o laboratório argumenta que a bula já trazia, de todo modo, um alerta de que se tratava de “medicamento novo” e que poderiam ocorrer “reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas”, tendo, ainda, seguido “todas as regras farmacovigilância do setor” e adotado “os trâmites legais da ANVISA para a atualização da bula do SIFROL”.
Referida argumentação é, realmente, decisiva para que se possa enquadrar a situação como hipótese de riscos do desenvolvimento. Em verdade, se o laboratório tinha ciência dos riscos decorrentes do uso do produto e não informou os consumidores, estará patente a colocação no mercado de um produto defeituoso, nos termos do CDC (art. 12, § 1º), seja sob a espécie de “defeito de concepção”, seja na modalidade “defeito de informação”.12 Em tal circunstância, não há espaço para que se possa invocar os chamados “riscos do desenvolvimento” como possível excludente da responsabilidade civil.
Contudo, caso o laboratório réu conseguisse demonstrar que, ao tempo da introdução do produto no mercado, não havia nenhum estudo científico que demonstrasse o nexo causal entre o uso do SIFROL e o “jogo patológico”, estaria, em tese, presente a situação de “riscos do desenvolvimento”. A Ministra Relatora, porém, rechaçou a possibilidade de se invocar os riscos do desenvolvimento como uma excludente, tratando tal situação, ao contrário, como uma hipótese de fortuito interno gerador da responsabilidade civil do fabricante. Afirma, de fato, a Ministra Nancy Andrighi em seu voto condutor do julgamento:
Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno (grifou-se).
Em conclusão, se as vacinas receberem o mesmo tratamento dado aos medicamentos, os tribunais alemães deverão julgar as demandas à luz dos riscos do desenvolvimento, com a possibilidade, portanto, de condenação do fabricante. O mesmo pode ser dito em caso de eventual demanda ajuizada por consumidor domiciliado no Brasil, – apesar do silêncio legislativo –, considerando-se o precedente citado.13
Marcelo Junqueira Calixto
Doutor em Direito Civil (UERJ). Professor Adjunto da PUC-Rio (Mestrado e Graduação). Advogado, parecerista e árbitro.
Estas notícias foram veiculadas, dentre outros, nos seguintes endereços eletrônicos: https://canaltech.com.br/saude/biontech-vira-alvo-de-processos-devido-a-vacina-contra-covid-252544/; https://www.dn.pt/sociedade/biontech-enfrenta-primeiro-processo-por-alegados-efeitos-colaterais-da-vacina-covid-19-16512242.html e https://www.terra.com.br/byte/biontech-vira-alvo-de-processos-devido-a-vacina-contra-covid,e1ab96c3b5ec519c4319b9e421d62dcbz0d748qz.html, todos acessados em 15 de junho de 2023.
Essa é a razão pela qual João Calvão da Silva, estudioso da matéria (Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, p. 150), diz ter sido adotada uma “solução de compromisso” para que pudesse, enfim, ser adotada a Diretiva 85/374/CEE, cujo projeto estava sendo discutido desde 1979.
Afirma o art. 7º, alínea “e”, na tradução portuguesa: “Art. 7º. O produtor não é responsável nos termos da presente directiva se provar: (...); e) Que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação em circulação do produto não lhe permitiu detectar a existência do defeito”. Países como Portugal e Itália, por exemplo, consagraram a exclusão da responsabilidade nos termos deste dispositivo.
Eis a redação do dispositivo: “Art. 15. 1. Qualquer Estado-membro pode: (...); b) Em derrogação da alínea e) do artigo 7º, manter ou, sem prejuízo do procedimento definido no nº 2, prever na sua legislação que o produtor é responsável, mesmo se este provar que o estado dos conhecimentos científicos e técnicos no momento da colocação do produto em circulação não lhe permitia detectar a existência do defeito”. Consagram a responsabilidade, para todas as espécies de produtos, Suécia e Luxemburgo.
O fundamento normativo da responsabilidade, no caso da Alemanha, seria uma Lei Federal de Medicamentos de 1976, a qual teria sido elaborada a partir da trágica experiência vivenciada com a Talidomida, fabricada, dentre outros laboratórios, pela Bayer. Para os demais produtos a Alemanha seguiu a isenção de responsabilidade ao internalizar a Diretiva 85/374/CEE (sobre o tema pode ser visto o artigo “Product Liability and Safety in Germany: Overview”, da autoria de Philipp Behrendt e Henning Moelle, disponível em https://uk.practicallaw.thomsonreuters.com/w-012-7118?transitionType=Default&contextData=(sc.Default)&firstPage=true, acesso em 16 de junho de 2023). Para um estudo mais aprofundado das leis nacionais europeias seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, pp. 183-190.
Interessante observar que, em 28 de setembro de 2022, foi apresentada uma proposta de nova Diretiva Europeia para regular a responsabilidade civil por danos decorrentes de produtos defeituosos, a qual pretende revogar a Diretiva ainda em vigor. No diploma projetado é mantida a isenção de responsabilidade do fornecedor pelos riscos do desenvolvimento, não havendo, porém, a possibilidade de sua derrogação pelos Estados Membros (sobre o tema pode ser visto o artigo de Giuseppe PROIETTI, “Responsabilità per danno da prodotti difettosi alla luce degli ultimi sviluppi tecnologici”, publicado em 27 de outubro de 2022, e que pode ser encontrado em www.dirittobancario.it, acesso em 06 de junho de 2023).
Veja-se, nesse sentido, Gustavo TEPEDINO, “A Responsabilidade Médica na Experiência Brasileira Contemporânea, in Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 02, Rio de Janeiro, PADMA, abr./jun. de 2000, pp. 41-75.
É o que se lê em Antônio Herman de Vasconcelos e BENJAMIN et al., Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, pp. 67-68.
É a tese defendida por Sérgio CAVALIERI FILHO, “Responsabilidade civil por danos causados por remédios”, in Revista de Direito do Consumidor, n. 29, São Paulo, Revista dos Tribunais, jan./mar. de 1999, pp. 55-62.
Recurso Especial n. 1.774.372/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/5/2020, DJe de 18/5/2020.
Dispõe o art. 12, caput, do CDC: “Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos”. Por ter afastado a culpa concorrente da consumidora o Tribunal da Cidadania também majorou a reparação do dano extrapatrimonial para R$ 30 mil.
Recorde-se o disposto no art. 12, § 1º, do CDC: “§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação”. Sobre as espécies de defeitos dos produtos já se escreveu em outra sede (Marcelo Junqueira CALIXTO, A Responsabilidade Civil, cit., pp. 141-143).
Oportuno observar que, no caso brasileiro, esteve em vigor, entre 10 de março de 2021 e 15 de junho de 2022, a Lei 14.125/2021 que dispunha sobre a “responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado”, tendo fixado uma assunção de responsabilidade pela pessoa jurídica de direito público que adquirisse e aplicasse as vacinas. Esta Lei foi revogada pela Medida Provisória 1.126/2022, de 15 de junho de 2022, posteriormente convertida na Lei 14.466/2022, de 16 de novembro de 2022. Os motivos apontados para a revogação foram a mudança do “cenário epidemiológico” e o estoque de vacinas contra a COVID-19.