#81. As regras de conexão do direito internacional privado em matéria contratual
Por Ricardo Ramalho Almeida
1. Cada sistema de direito internacional privado (ou conflito de leis) define uma regra de conexão para a determinação da lei aplicável às relações contratuais internacionais. Entre as diversas regras possíveis, as mais comuns, tradicionalmente, são a lex loci contractus – lei do local da celebração do contrato – e a lex loci solutionis (também chamada lex loci executionis) – lei do local do cumprimento das obrigações contratuais. Há, não obstante, outros elementos de conexão possíveis, tais como (i) a lei do local da nacionalidade comum das partes, (ii) a do local do domicílio ou do principal estabelecimento comum às partes, (iii) a do local do domicílio ou do principal estabelecimento do devedor da prestação característica do contrato, (iv) ou a do local do pagamento.
2. Para que um dado elemento de conexão possa ser considerado relevante normativamente, é necessário que respeite a chamada “regra primária” do direito de conflitos, a saber, “a quaisquer fatos apenas podem ser aplicadas as leis que com eles estejam em contato”, “[visando a] prevenir ou resolver concursos de normas entre as leis ‘interessadas’ e potencialmente aplicáveis”.1 Ou seja, é requisito de eficácia de determinada lei, apta a reger materialmente uma determinada situação fática, que elas – lei e situação – estejam “em contato”, vale dizer, que entre elas exista um vínculo de proximidade caracterizado pela presença de elemento de conexão suficientemente relevante, apto a fundamentar a competência in concreto daquela lei.
3. Justamente em razão da exigência de prévio contato entre a lei e a situação jurídica que demanda regulação conflitual exige-se, para a determinação da eficácia concreta da lei (ou competência normativa), que as partes interessadas a tenham podido levar em consideração como potencialmente aplicável à regulação jurídica de sua situação fática, por terem estado – ou estarem – expostas ao seu âmbito espacial de potencial eficácia, delimitado pela existência de um ou mais elementos de conexão. Trata-se justamente de se poder considerar a lei mais ligada aos fatos e que os tenha impregnado de valorações jurídicas, conforme a perspectiva e avaliação das próprias partes. E tal se dá em benefício dos valores da segurança e certeza jurídicas, especialmente caros ao direito internacional privado.
4. Um esquema visual – um triângulo ou pirâmide – pode ser útil à apreensão do que se vem de dizer. Na base do triângulo figuram, de um lado, a regra básica de conflitos – a existência de contato significativo entre a lei e a situação fática pertinente – e, de outro, a correspondente expectativa dos interessados, no sentido de que a lei que impregnou os fatos será aplicada para a valoração e apreciação de sua conduta. No ápice do triângulo situa-se o objetivo e resultado prático buscados pelos princípios de base: a obtenção de segurança e certeza jurídicas, ou seja, “confiança na manutenção dos efeitos de um ato pretérito como a vedação da surpresa quanto aos efeitos de um ato no futuro”.2
6. Os elementos de conexão e as regras conflituais podem e devem ser ponderados em função da proximidade (intensidade do contato entre lei e situação fática) e da legítima expectativa dos interessados (intensidade da confiança que depositaram em determinada lei como norma agendi), visando à tutela da segurança e da certeza jurídicas – e, portanto, da previsibilidade da norma decidendi a ser empregada pelo julgador. Especialmente nas relações jurídicas do comércio internacional, esses são os principais valores a serem tutelados pelo direito de conflitos, pois não há, em princípio, partes vulneráveis a serem protegidas, nem tampouco (ao menos ordinariamente) interesse dos Estados em impor suas leis, ressalvadas as normas internacionalmente imperativas e o respeito à ordem pública.
7. Ora, a escolha contratual da lei aplicável confere às partes do contrato internacional o grau máximo possível de certeza e segurança jurídicas quanto à definição do direito material aplicável. Daí a hodierna prevalência absoluta do princípio da autonomia da vontade como regra fundamental do direito internacional privado dos contratos, sem prejuízo de sua aplicabilidade em outros ramos, como por exemplo a responsabilidade civil e o direito de família.
8. Já no que respeita às regras de conexão determinadas por lei, a doutrina argumenta que a certeza e segurança jurídicas como interesses fundamentais do direito internacional privado conduzem à prevalência da conexão mais próxima. Por exemplo, segundo Dário de Moura Vicente, “[a]s relações jurídicas plurilocalizadas encontram-se por natureza em situação de grande instabilidade, dado que, achando-se em contato com vários ordenamentos, as regras por que hão-de dirimir-se os litígios delas emergentes não são conhecidas desde o momento da respectiva constituição. Cabe ao Direito Internacional Privado minorar essa instabilidade, sujeitando tais relações ao sistema jurídico com cuja aplicação as partes razoavelmente poderiam contar: justamente o que possuir com a situação litigiosa a conexão mais íntima”.3
9. Ocorre que, sendo a conexão mais íntima uma “mágica fórmula”, de “valor puramente heurístico”,4 cumpre retornar aos elementos de conexão, para, à luz dos critérios e princípios acima mencionados, avaliar o mérito de cada um, com vistas a concretizar a determinação de uma conexão mais próxima para a regência da substância e efeitos dos contratos. Naturalmente, essa análise pode ser feita em tese, pelas características próprias de cada elemento de conexão, ou em concreto, à vista das peculiaridades de cada caso litigioso. A primeira, como tarefa da doutrina, pode e deve servir de orientação à segunda, que é realizada pelo julgador.
10. Como se disse ao início, as duas regras de conexão que tradicionalmente figuravam como as mais usadas em matéria contratual, seja como regras principais, seja como subsidiárias à autonomia da vontade, eram a lex loci solutionis e a lex loci contractus. No entanto, a partir da celebração da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, em 1980, no âmbito da então Comunidade Econômica Europeia, ganhou maior relevância a regra conflitual da lei do local da residência permanente ou administração central do devedor da prestação característica, a título de presunção juris tantum de conexão mais próxima. Regra similar já constava da Convenção da Haia de 1955 sobre a Lei Aplicável às Vendas de Caráter Internacional de Objetos Móveis Corpóreos, cujo artigo 3º, alínea 1, estipula como primeira regra de conexão subsidiária à lex voluntatis, conquanto sujeita a exceções, a lei do local da residência do vendedor no momento do recebimento do pedido, ou do local do estabelecimento que recebeu o pedido.
11. A lex loci solutionis, por sua vez,é aderente à clássica concepção savigniana do local do cumprimento das obrigações como sede da relação jurídico-contratual. De fato, o contrato tem seu centro de interesses no adimplemento das prestações que constituem o respectivo objeto; portanto, normalmente, o seu centro de gravidade espacial é o local onde é devido o adimplemento da prestação, cuja lei se considera modernamente a proper law para a regência da substância e dos efeitos das obrigações, bem como das consequências do inadimplemento.5
12. No entanto, existe a possibilidade, não incomum, de que o contrato internacional contemple mais de um local de cumprimento das prestações características dele decorrentes; por exemplo, quando for o caso de se principiar o cumprimento em determinada jurisdição, visando à final entrega de bens ou prestação de serviços em outra, ou quando existirem dois ou mais locais de entrega de bens ou prestação de serviços, contratualmente previstos ou naturalmente decorrentes das estipulações do contrato, ou dois ou mais locais de exercício de direitos decorrentes do contrato, entre outras hipóteses. Com efeito, nenhum elemento de conexão é isento de inadequações ou apresenta vantagens incontestáveis.
13. O local da residência permanente (domicílio) ou principal estabelecimento do devedor da prestação característica do contrato, regra consagrada pela Convenção de Roma de 1980 e pelo Regulamento Roma I e que ganhou grande prestígio na Europa – ao menos como presunção inicial, sujeita a ser afastada pela prova da existência de vínculo mais próximo com outra lei – adota a lei do fornecedor, considerando-se como prestação característica de cada tipo contratual aquela que consiste no fornecimento do bem ou serviço, ao qual se opõe como contraprestação o pagamento – este, geralmente, não caraterístico de nenhum tipo contratual em particular, pois presente em quase todos, entre os contratos onerosos.
14. Tal regra buscou afastar-se do vínculo mais natural e previsível com o local de cumprimento da prestação característica, justamente para fugir da possibilidade de existirem dois ou mais lugares para tal cumprimento, exatamente a mesma dificuldade que se opunha, anteriormente, à lex loci solutionis. Ao mesmo tempo, prestigiou o local do estabelecimento do empresário, cuja lei é naturalmente a referência principal para todas as suas atividades.
15. Em fecho destas breves reflexões, conclui-se ser natural que o direito internacional privado tenha evoluído para a prevalência de regra flexível e conceitual, pela adoção da lei que apresentar maior proximidade com a situação fática relevante em cada caso concreto, pois, nas palavras de Jacob Dolinger, embora “[a] fórmula da proximidade [tenha trazido] preocupações de que poderia causar incerteza, [é] evidente que, do ponto de vista da previsibilidade, não se pode comparar a proximidade às rígidas regras da lex contractus e lex solutionis, mas, por outro lado, a nova abordagem elimina o velho debate sobre qual destes dois é o correto elemento de conexão, porque agora se entende que em determinados casos será o lugar onde o contrato foi assinado, em outros será o lugar onde o contrato tem que ser cumprido, e em outros ainda, será um terceiro lugar com mais íntima conexão do que estes dois locais”.6
Ricardo Ramalho Almeida
Doutor e Mestre em Direito Internacional pela USP.
Advogado e árbitro.
MACHADO, João Batista. Âmbito de eficácia e âmbito de competência das leis. Coimbra: Almedina, 1998 (reimpressão), pp. 5 e 106.
RAMOS, André de Carvalho. A construção do direito internacional privado: heterogeneidade e coerência. Salvador: JvsPodivm, 2021, p. 107.
VICENTE, Dário Moura. Da arbitragem internacional. Coimbra: Coimbra Editora, 1990, p. 242.
CORREIA, António Ferrer. A codificação do direito internacional privado: alguns problemas. Coimbra, separata dos volumes LI, LII, LIII e LIV da Revista da Faculdade de Direito de Coimbra, 1970, p. 102.
No que respeita à forma extrínseca dos atos, a regra tradicional, em âmbito universal, é o locus regit actum.
DOLINGER, Jacob. Direito civil internacional: contratos e obrigações no direito internacional privado. v. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 245.