#83. Ausência de limitação temporal para o exercício de direito formativo gerador: contrato de opção de compra e venda sem prazo de exercício contratado
Se “o mundo não é eterno e tudo tem um prazo”,1 então o que dizer de uma opção sem prazo de exercício contratado? Divergindo de Hamlet, mas não dos valores da Renascença, a AGIRE#83 indaga aos leitores qual é, afinal, a consequência jurídica de uma opção de compra sem prazo de exercício contratado. O direito formativo gerador teria que ser exercido imediatamente? Se fosse assim, qual seria o sentido dessa opção? A limitação temporal é elemento categorial inderrogável do contrato de opção,2 como o preço é também elemento essencial da compra e venda? O outorgante poderia resili-la a qualquer tempo, de forma unilateral e imotivada, como de regra acontece com os contratos firmados por tempo indeterminado? Se a finalidade do contrato de opção de compra é justamente dotar a proposta do contrato projetado de irrevogabilidade,3 para o que serviria essa opção se pudesse ser revogada de forma imediata?
O exercício do direito formativo gerador
No bojo de todo contrato de opção de compra e venda, há sempre um direito potestativo da subespécie “direito formativo gerador” e, exatamente por isso, quando a opção é exercida perante o sujeito passivo, formado já estará o assim denominado “contrato optativo” ou “contrato projetado”, que é a compra e venda. Significa dizer que, no mais das vezes, as partes não precisam firmar o contrato de compra e venda na sequência ao exercício da opção. O mero exercício da opção já forma a compra e venda,4 sendo essa, aliás, uma das diferenças entre o contrato de opção e o contrato preliminar.5 Já não é assim, porém, no caso de opção envolvendo imóveis. Isso, porque a compra e venda de imóveis acima de 30 salários-mínimos precisa ser formalizada por escritura pública, como previsto no art. 108 do Código Civil,6 então o mero exercício da opção, por si só, não basta, tornando-se necessária a celebração da compra e venda por meio de outro instrumento.7
O caráter temporário da opção
O exercício de um direito potestativo pelo seu titular impõe ao sujeito passivo (outorgante da opção) verdadeiro estado de sujeição, não podendo este mais se opor à conclusão do negócio. Os direitos potestativos submetem-se a prazos decadenciais, que, via de regra, não se suspendem, nem se interrompem, salvo disposição legal em contrário.8 As opções são instrumentos cunhados para serem temporários, porque o que as partes têm em mira é a realização do contrato projetado. A natureza preparatória da opção faz dela um contrato singular, que nasce para ser transitório.
No mais das vezes, o valor patrimonial atribuído à posição jurídica ativa é proporcional à duração da situação de sujeição do outorgante, isto é, a tendência é que, quanto maior for o período de exercício da opção, maior será o seu preço de outorga. Afirma-se, por isso mesmo, que “[a] limitação temporal está aliada ao preço determinado no contrato optativo vis-à-vis a probabilidade e intensidade de influência de fatores externos sobre o objeto mediato, seja no que tange ao seu valor, seja no que se refere à conveniência ou utilidade do mesmo para o benefício ao longo do tempo”.9
O exercício como declaração receptícia de vontade
As opções precisam ser exercidas dentro do prazo. O exercício da opção, assim como de qualquer direito formativo gerador, é considerado uma declaração receptícia de vontade, o que, por outras palavras, equivale a dizer que o outorgante (sujeito passivo da opção) precisa, de fato, tomar conhecimento da declaração de vontade emitida pelo beneficiário (sujeito ativo da opção). Assim, “[a] partir do momento em que a manifestação da vontade do exercício do direito formativo gerador é recebida pelo outorgante, reputa-se que tenha havido a formação do contrato de compra e venda optativo”.10
O exercício extemporâneo
Por outro lado, findo o prazo sem o exercício da opção, libera-se o outorgante, que readquire a liberdade de contratar com quem bem entender. O exercício extemporâneo da opção não gera qualquer efeito em termos de vincular o outorgante, porque o sujeito passivo da opção não se encontra mais em estado de sujeição.
Prazos expressos ou tacitamente acordados
O prazo de exercício do contrato de opção normalmente vem previsto no contrato de forma expressa e determinada. No entanto, casos há em que a limitação temporal não é previamente determinada pelas partes, o que não chega a ser um problema. Nada impede que o prazo de exercício seja apenas determinável – afinal, até mesmo na compra e venda, que tem o preço como elemento essencial, o fato de este ser apenas determinável não invalida o negócio. Da mesma forma, o prazo de exercício da opção pode ser também tacitamente acordado, hipótese em que não virá estampado no contrato, mas será aferível a partir das circunstâncias negociais.
Na ausência de um prazo expresso, os usos e costumes também podem servir para preencher a lacuna deixada pelas partes. O que não se deve admitir, de forma alguma, é a perpetuidade do direito formativo gerador. Assim, na ausência de prazo de exercício – expresso ou tácito – e na impossibilidade de se integrar o contrato com os usos e costumes, ainda assim a opção não poderá viger ad aeternum.
A solução de outros sistemas jurídicos
A doutrina italiana entende, com fundamento no artigo 1.331 do Código Civil italiano,11 que na falta de um prazo de exercício este pode ser fixado pelo juiz. Daí se extrai que, para efeitos da configuração do contrato de opção, é irrelevante a fixação prévia de um prazo, não sendo, portanto, o prazo de exercício considerado elemento essencial do contrato de opção.12 Na Espanha, igualmente, também se atribui ao juiz a tarefa de fixar o prazo para o exercício da opção,13 se as partes não dispuserem a seu respeito (o fundamento é o art. 1.128 do Código Civil espanhol).14 Na França, a doutrina também tem entendido que o contrato de opção pode ser estipulado sem termo específico ou até mesmo sem duração.15 Aplica-se, de forma analógica, o art. 1.117 do Código Civil francês,16 que, ao tratar da oferta e da aceitação, estipula a necessidade de fixação de um prazo razoável quando não tiver sido estabelecido prazo específico para aceitação da oferta realizada pelo proponente.
A experiência internacional revela, portanto, que a falta de prazo para o exercício da opção por seu titular não macula o contrato, cabendo ao juiz (ou ao árbitro) fixar o prazo para o exercício da opção tendo em vista as especificidades do caso concreto. No Brasil, em parecer proferido na década de 60, Pontes de Miranda já sustentava exatamente essa solução.17
O mundo não é eterno, nem as opções
Embora nem tudo tenha prazo, as opções realmente precisam de um prazo de exercício. Apesar disso, o contrato de opção sem prazo de exercício contratado não é inexistente ou inválido. Não se trata de um problema de existência ou de validade, mas antes de uma lacuna que precisa ser preenchida para garantir a sua eficácia, considerando, especialmente, a vontade e o comportamento das partes, a fim de averiguar qual era a sua real intenção, e os usos e costumes do mercado em que se insere o contrato de opção.
O prazo de exercício poderá ser fixado identificando-se as razões que levaram à própria outorga da opção, especialmente as razões econômicas e as finalidades do negócio, para tentar aferir se a intenção dos contraentes era ligar o direito potestativo a certa situação de fato ou jurídica.18 Se não for possível estabelecer uma ligação significativa entre a celebração da opção e as razões que ajudem a fixar o seu prazo de exercício, isso não pode conduzir à conclusão de que as partes pretenderam criar um vínculo temporal perpétuo. No limite, será necessária uma intervenção corretiva pelo juiz ou árbitro, facultando-se à parte interessada a possibilidade de pleitear, por meio de uma ação declaratória, a integração do contrato com a fixação de um termo final.19
Pensando melhor, pelo menos em relação às opções, a frase de Hamlet faz todo sentido.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Ausência de limitação temporal para o exercício de direito formativo gerador: contrato de opção de compra e venda sem prazo de exercício contratado. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 83, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/137122917>. Acesso em DD.MM.AA.
Para os leitores cativos da AGIRE: a frase é de Shakespeare, extraída de um dos monólogos de Hamlet (Ato III, Cena II). O trecho maior da estrofe diz assim: “O mundo não é eterno e tudo tem um prazo. Nossas vontades mudam nas viradas do acaso; Pois esta é uma questão ainda não resolvida: A vida faz o amor, ou este faz a vida?”.
Essa é a opinião de Felipe Campana Padin Iglesias (Opção de compra ou venda de ações no direito brasileiro: natureza jurídica e tutela executiva judicial. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Comercial no Curso de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011, pp. 183-185, cuja banca de defesa tive o prazer de integrar). A dissertação deu origem a um livro, publicado pela editora Almedina, em 2018.
Em síntese: “(...) a opção constitui um pacto que transforma em irrevogável a proposta e confere ao optante a faculdade de constituir definitivamente o contrato por sua exclusiva declaração de vontade” (Martinho Garcez Neto, Temas atuais de direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 85).
O posicionamento do STJ é, inclusive, no sentido de que cabe adjudicação compulsória, caso a transferência da propriedade não se dê de forma espontânea. Nesse sentido: STJ, Segunda Seção, REsp. 1161522/AL, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 12.12.2012, DJe 21.11.2013.
Como explica Luiza Bianchini: “A parte vinculada à opção fica na posição de sujeição em relação ao optante, pois o contrato definitivo será concluído com a mera manifestação de vontade deste último, independentemente de qualquer atividade por parte do outro contratante. Diversamente, o contrato preliminar unilateral não enseja o mesmo tipo de relação que o pacto de opção, marcado pela contraposição entre um direito potestativo e uma situação de sujeição. O beneficiário da promessa adquire o direito subjetivo e exigir que a outra parte celebre o contrato prometido, que apenas será concluído se esta última prestar uma nova declaração de vontade nesse sentido” (Contrato preliminar: conteúdo mínimo e execução, Porto Alegre: Arquipélago, 2017, p. 116). No direito português, vale conferir: Ana Prata, O contrato-promessa e o seu regime civil, 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 402.
Código Civil: “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
Até porque o art. 167, inciso I, da Lei n.º 6.015/73, que dispõe sobre os registros públicos, especifica os títulos que podem ser levados a registro.
Código Civil: “Art. 207. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição”.
Felipe Campana Padin Iglesias, Opção de compra ou venda de ações no direito brasileiro: natureza jurídica e tutela executiva judicial, cit., pp. 183-185.
Felipe Campana Padin Iglesias, Opção de compra ou venda de ações no direito brasileiro: natureza jurídica e tutela executiva judicial, cit., pp. 240-242. No mesmo sentido: “Advirta-se que essa manifestação do titular da opção consiste numa declaração receptícia de vontade que só produz efeito quando chega ao conhecimento do destinatário” (Luiz Gastão Paes de Barros Leães, Pareceres, v. 2, São Paulo: Singular, 2004, p. 1.135). E também: Rafael Villar Gagliardi, Contratos preliminares. In: Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni (coords.), Teoria geral dos contratos, São Paulo: Atlas, 2011, p. 557. Na jurisprudência, vale conferir: TJ/SP, 11ª CDPriv., AC 1017164-53.2020.8.26.0068, Rel. Des. Gilberto dos Santos, j. 17.01.2022, v.u.. Na doutrina estrangeira: Camino Sanciñena Asurmendi, La opción de compra, 2 ed. Madrid: Dykinson, 2007, pp. 218-230; Pedro González Poveda, Compraventa y opción de compra, Madrid: Actualidad Editorial, 1984, p. 173; Rocco Favale, “Opzine”. In: Donato Busnelli (coord.), Il codice civile comentário, Milano: Giuffrè, 2009, pp. 120-121.
Código Civil italiano: “Art. 1.331 Opzione. Quando le parti convengono che una di esse rimanga vincolata alla propria dichiarazione e l'altra abbia facoltà di accettarla o meno, la dichiarazione della prima si considera quale proposta irrevocabile per gli effetti previsti dall'art. 1329. Se per l'accettazione non è stato fissato un termine, questo può essere stabilito dal giudice (1183)”.
Nesse sentido: Giorci Cian e Alberto Trabucchi, Commentario breve al codice civile, 4.ed., Milão: Dott. Antonio, 1996, p. 1331.
Veja-se, a esse respeito: Camino Sanciñena Asurmendi, La opción de compra, 2 ed., Madrid: Dykinson, 2007, pp. 218-230.
Código Civil espanhol: “Art. 1.128. Si la obligación no señalare plazo, pero de su naturaleza y circunstancias se dedujere que ha querido concederse al deudor, los Tribunales fijarán la duración de aquél. También fijarán los Tribunales la duración del plazo cuando éste haya quedado a voluntad del deudor”.
Por todos: Marc Mousseron, Michel Guibal e Daniel Mainguy, L’avant contrat, Levallois: Éditions Francis Lefebvre, 2001, pp. 334-335.
Código Civil francês: “Article 1117. L'offre est caduque à l'expiration du délai fixé par son auteur ou, à défaut, à l'issue d'un délai raisonnable. Elle l'est également en cas d'incapacité ou de décès de son auteur, ou de décès de son destinataire”.
Nas palavras de Pontes de Miranda: “O prazo para o exercício do direito de opção é o usual. Não é porém, elemento essencial. Se prazo não foi estabelecido, cumpre ao interessado pedir ao juiz que, dispositivamente, fixe prazo razoável. Se os usos e costumes determinaram prazo, o pedido ao juiz não tem cabimento. Também se pode pensar ou ter sido implícita ou tácita a determinação pelos contraentes ou pelos interessados, ou pelo titular do direito de opção. Em todo o caso, mesmo se os usos e costumes fixam prazo, ou se há divergência quanto à interpretação de alguma cláusula sobre o prazo, os interessados podem exercer a pretensão à tutela jurídica propondo a ação declaratória (Código de Processo Civil, art. 2.º, parágrafo único)” (Pontes de Miranda, “Parecer sobre diminuição de prazo para a existência de sociedade por cotas, de responsabilidade limitada, e cláusulas contratuais que têm de ser respeitadas (10 de janeiro de 1969)”. In: Dez anos de pareceres, v.7, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 7).
Como explica Agostinho Cardoso Guedes: “Saber se a cessação ou frustração das razões que levaram à outorga do direito de preferir determinam a caducidade imediata do respectivo pacto ou apenas conferem ao promitente a faculdade de se desvincular do mesmo é ainda matéria de interpretação das declarações negociais; a resposta a esta questão dependerá, entre outros aspectos, da maior ou menor intensidade da ligação estabelecida pelas partes entre a subsistência do pacto e as razões que lhe deram origem (O exercício do direito de preferência, Porto: Publicações Universidade Católica, 2006, pp. 416-418). Nessa passagem, o autor refere-se ao direito de preferência, mas a lição é de todo aplicável às opções.
Essa é também a solução proposta por Carla Wainer Chalréo Lgow, embora também pensando no direito de preferência (Direito de preferência, São Paulo: atlas, 2013, pp. 20-21).