#100. Em Festa: em defesa do interesse negativo (Parte II)
Por Aline Terra e Gisela Sampaio
Na primeira parte da coluna, subscrita por quem abre, une e completa a A.GI.RE., o tema da festa foi “resolução por inadimplemento contratual”, um dos remédios ao inadimplemento absoluto cumulável com o pedido de perdas e danos, como visto. Já agora nesta segunda parte, assinada apenas por quem abre e une a A.GI.RE – já que não pensamos igual (e, como dito na inauguração da newsletter, é exatamente essa independência que nos aproxima) –, a questão que se põe é outra. Embora não haja dúvida de que da resolução pode despontar um efeito indenizatório provados os elementos da responsabilidade civil, qual é, afinal, o objetivo desse efeito? Situar o credor no cenário hipotético em que estaria no presente se não tivesse firmado o contrato descumprido pelo devedor (interesse negativo) ou colocá-lo na situação em que estaria se o contrato firmado tivesse sido perfeitamente cumprido (interesse positivo)?
A lógica da resolução
Ao optar pela resolução – deixando para trás o caminho da execução pelo equivalente –, o credor revela, de forma clara, que não deseja manter o vínculo obrigacional, mas, antes, extingui-lo. Assim, se o credor elege a resolução como “remédio” do inadimplemento, a nosso ver não faz sentido que, via de regra, possa sempre exigir do devedor o ressarcimento correspondente ao benefício que normalmente lhe traria a execução do negócio descumprido. Afinal, se desejasse obter a vantagem econômica proveniente do contrato, então que tivesse optado pelo caminho da execução pelo equivalente. Com a resolução o que pretende o credor “(...) é antes a exoneração da obrigação que, por seu lado, assumiu (ou a restituição da prestação que efectuou) e a reposição do seu patrimônio no estado em que se encontraria, se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo)”.1 A resolução libera, portanto, o credor do vínculo obrigacional, possibilitando que ele retorne ao mercado em procura de outro parceiro.
Tal qual uma engrenagem de efeitos...
..., cujas roldanas se movimentam em conjunto e na mesma direção, devem girar todos os efeitos da resolução. Se a resolução libera as partes de cumprirem as prestações porventura ainda não cumpridas (efeito liberatório) e impõe que devolvam, uma à outra, o que houverem recebido por força da relação inadimplida (efeito restitutório), há o nítido escopo de conduzi-las à situação hipotética em que estariam se não tivessem celebrado o contrato, isto é, ao status quo ante. Nesse cenário, até por uma questão de coerência sistemática, o efeito ressarcitório deve seguir no mesmo sentido, pelo menos como regra. Afinal, “seria, de certa forma, até meio incongruente pleitear o credor a extinção do vínculo com a volta ao status quo anterior e, ao mesmo tempo, requerer indenização que o coloque na mesma situação que estaria se o contrato tivesse sido cumprido”.2 A situação hipotética que o efeito indenizatório busca reconstruir é aquela que, assim como o efeito restitutório, ignora a existência do contrato descumprido, ou seja, é aquela situação que teria se concretizado caso esse contrato sequer tivesse sido firmado. Trata-se, por conseguinte, de indenizar o credor tomando como parâmetro o seu interesse negativo – ora referido pela alcunha “interesse de confiança” –,3 não já o positivo.
Tome-se o exemplo acadêmico formulado por Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria, envolvendo contrato de permuta em que se troca um vaso artístico por um piano.4
(i) se ainda tiver interesse em receber o vaso, a situação é de mora (inadimplemento relativo) e ele pode, entregando o piano, exigir a execução específica da prestação e, paralelamente, pleitear uma indenização pelo interesse positivo, provados os elementos da responsabilidade civil. Na mora, mantido o vínculo obrigacional, faz todo sentido que o credor obtenha a vantagem econômica proveniente do referido ajuste (interesse positivo);
(ii) se não tiver mais interesse no vaso (por exemplo, porque o contrato tinha um termo essencial: um evento festivo em que o vaso seria exposto, mas cuja data já decorreu) ou este simplesmente se houver quebrado por culpa do seu titular (devedor do vaso), configura-se o inadimplemento absoluto, e duas são as possibilidades:
(ii.a) na hipótese de o credor do vaso ainda desejar manter o vínculo obrigacional (porque, por exemplo, deseja mais se livrar do piano do que, propriamente, obter o vaso), poderá cumprir com a entrega do piano, exigindo a execução pelo equivalente (ao vaso). Nesse caso, fará jus a perdas e danos, também pelo interesse positivo, desde que provados os elementos da responsabilidade civil. Isso, porque, assim como na execução específica, também na execução pelo equivalente o credor deixa claro que deseja manter o vínculo, pelo que se afigura coerente que ele obtenha a integralidade da vantagem econômica proveniente do ajuste descumprido; ou
(ii.b) caso não tenha mais interesse no vínculo obrigacional, pode o credor do vaso exercer o seu direito potestativo de resolver a relação obrigacional. Nesse cenário, se o credor ainda não tiver cumprido sua contraprestação (a entrega do piano), poderá retê-la; se a tiver efetuado, poderá exigir sua restituição. Paralelamente a isso, o credor também poderá exigir perdas e danos, mas a indenização, nesse caso, se destinará a recompor apenas o interesse negativo,5 de modo a permitir efetivamente a recondução do credor ao status quo ante.
A dinâmica da resolução: o status quo não é estático
Como já se teve oportunidade de afirmar em outra sede, também em coautoria,6 o pretendido retorno ao status quo ante não é estático, e sim dinâmico: procura-se colocar o credor na situação econômico-jurídica em que estaria no presente, caso o contrato jamais tivesse sido firmado. Não se quer simplesmente devolver o credor para a situação em que estava antes de celebrar o contrato, mas conduzi-lo à posição hipotética em que poderia estar caso não tivesse celebrado o indigitado contrato, e houvesse ingressado, por exemplo, em outra relação contratual que se lhe apresentava, ou mesmo dado continuidade a negócio que já desenvolvia antes de decidir encerrá-lo para adentrar no que fora descumprido. E essa percepção se revela fundamental para a análise composição do interesse negativo.
Interesse negativo: lucro cessante e dano emergente
O interesse negativo, tal qual o positivo, é composto pelas duas facetas do dano patrimonial: dano emergente e lucro cessante.
No entanto, diversamente do que se passa quando se tem em conta o interesse positivo, o lucro cessante aqui não corresponde àquilo que o lesado razoavelmente deixou de ganhar com aquele negócio em particular, que fora descumprido, mas sim o que ele deixou de auferir por ter firmado o tal contrato, isto é, o que ele ganharia, por exemplo, se tivesse dado continuidade a outro negócio já em curso e interrompido em razão do novo.
Pense-se na situação de próspero comerciante que decide desenvolver novo negócio – menos lucrativo, de acordo com o plano de negócios, mas também menos trabalhoso e demandante – em parceria com um amigo. Como não teria condições de cuidar de ambos simultaneamente, o comerciante decide encerrar as atividades de seu negócio primitivo. Se o amigo incorre em inadimplemento absoluto no âmbito do novo negócio e o comerciante decide exercer seu direito de resolução, a indenização que lhe será devida, voltada a recompor seu interesse negativo, deve considerar os lucros que deixou de auferir com o encerramento das atividades do primeiro negócio. Não se trata aqui, frise-se, de situação de perda da chance, mas sim de lucro cessante. O postulado normativo da razoabilidade indica que o comerciante continuaria percebendo referido lucro se não tivesse encerrado as atividades, até porque já os vinha auferindo há anos e continuadamente. O interesse negativo nesse caso atinge cifras mais elevadas do que o próprio interesse positivo, já que, como destacado, o próprio plano de negócios da nova atividade já indicava que sua lucratividade seria inferior ao negócio antecedente.
Como não é difícil antever, o interesse negativo pode, portanto, alcançar cifras bastante expressivas. Boa parte da doutrina, com razão, entende que o interesse negativo pode até ultrapassar o positivo – embora não seja o mais frequente –,7 o que decorre, no mais das vezes, do caráter dinâmico que deve ostentar o retorno ao status quo ante. Desde que devidamente demonstrado em toda a sua extensão, ligado que esteja por um nexo causal direto e imediato, o dano deverá ser reparado em sua integralidade.
Advertência necessária: excepcionalmente, o interesse positivo entra em cena
Embora o cálculo da indenização se paute pelo interesse negativo, não se trata de regra absoluta. Excepcionalmente, apenas a indenização calculada com base no interesse positivo será capaz de ressarcir o dano sofrido pelo credor com o inadimplemento. É o que ocorre, por exemplo, em contratos de execução diferida com prestação parcialmente executada pelo credor e por ele inaproveitável após a resolução.
Tome-se a hipótese em que se contrata marceneiro para construir certo armário sob medida, a ser embutido em espaço específico de determinado imóvel. Em situações como essas, a indenização devida diante do inadimplemento do cliente, se pautada pelo interesse negativo, não será suficiente para reparar o marceneiro por todo o esforço e recursos despendidos em vão, tendo em vista a impossibilidade de o mercado reabsorver o trabalho até então desenvolvido. Nesse caso, o marceneiro certamente fará jus a uma parcela do interesse positivo.
Em definitivo, portanto, revela-se possível admitir que se “(...) poderá flexibilizar o critério defendido, quando assim for exigido pelos interesses em presença”.8
Fogo amigo
Como sempre acontece no Direito – e mais ainda na academia –, existe também uma corrente contrária, nesse caso muito bem defendida por voz amiga. A opção da A.GI.RE foi deixar aquela que completa a newsletter completar também o texto. Afinal, quem melhor poderia expor os argumentos a favor do interesse positivo do que ela, a A.GI.RE, que escreveu sua tese de doutorado exatamente sobre o tema?
Aline de Miranda Valverde Terra
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London. Árbitra e Parecerista.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Diretora de arbitragem do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Em Festa: em defesa do interesse negativo (Parte 2). In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 100-2, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire100-2>. Acesso em DD.MM.AA.
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. v. 2, 7. ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 109. E também: LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações. v. 2, 3. ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 260; MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão da posição contratual. Coimbra: Almedina, 1970, p. 412; MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Direito das obrigações. Coimbra: Editora Policop, 1973, p. 294; XAVIER, Vasco da Gama Lobo. “Venda a prestações: algumas notas sobre os artigos 934.º e 935.º do Código Civil”. Separata da RDES. Coimbra, a. XXI, 1977, p. 262; RICHTER, Giorgio Stella. La responsabilità precontrattuale. Torino: Utet, 1996, pp. 112-113.
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 139-140.
Nesse sentido: PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. XXV, atualizado por Vilson Rodrigues Alves, Campinas: Bookseller, 2003, pp. 393-394; AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum”. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 183; LÓPEZ, María Medina. “La ruptura injustificada de los tratos preliminares: notas acerca de la naturaleza de la responsabilidad precontractual”. Revista de Derecho Privado, Madrid, mai.-jun./2005, pp. 79-105; MARTINS-COSTA, Judith. “Responsabilidade civil contratual. Lucros cessantes. Resolução. Interesse positivo e interesse negativo. Distinção entre lucros cessantes e lucros hipotéticos. Dever de mitigar o próprio dano. Dano moral e pessoa jurídica”. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (Coords.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: Reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012, p. 563; ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 150-151; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 133-134 e p. 138; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 200 et. seq.
FARIA, Jorge Leite Areias Ribeiro de. Direito das obrigações, v. 2, Coimbra: Almedina, 2001, pp. 425-426.
A diferença entre os montantes indenizatórios na resolução e na execução pelo equivalente decorre, na realidade, da diversidade de escopo dos dois instrumentos de tutela: enquanto na resolução o credor pretende extinguir o vínculo obrigacional e se exonerar da obrigação a que se comprometeu, reposicionando seu patrimônio na situação hipotética em que se encontraria se nunca tivesse celebrado o contrato inadimplido, na execução pelo equivalente o credor busca manter o vínculo obrigacional e se colocar na situação de vantagem em que estaria se tivesse havido o cumprimento do contrato conforme originalmente pactuado.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. “Efeito indenizatório da resolução por inadimplemento”. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios, v. 1, Rio de Janeiro: Processo, 2020, pp. 391-415.
De fato, há vários autores que não aceitam a limitação do interesse negativo pelo positivo. Nesse sentido, cf. Forchielli, Paolo. “Responsabilità civile”. In: VILLANI, Alberto (Coord.). Lezioni. v. 3. Padova: Cedam, 1968, pp. 15, 27-28 e 122-128; BENATTI, Fracesco. A responsabilidade pré-contratual, tradução de A. Vera Jardim e Miguel Caeiro, Coimbra: Almedina, 1970, pp. 168-174; CUFFARO, Vincenzo. “Responsabilità precontrattuale”. In: Enciclopédia del Diritto. v. 39. Milano: Giuffrè, 1988, p. 1.274; RICHTER, Giorgio Stella. La responsabilità precontrattuale. Torino: Utet, 1996, p. 110; FRANZONI, Massimo. Trattato della responsabilità civile: il dano risarcibile, Milano: Giuffrè, 2004, pp. 91-92.
PROENÇA, José Carlos Brandão. A resolução do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 196. No mesmo sentido: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Forum, 2018, p. 202, nota 97; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 139-140.