#110. Na pauta do STJ: embate entre contrato preliminar e definitivo – uma questão de autonomia privada
Em outubro de 2023, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp nº 2.054.411/DF, decidiu que o conteúdo do contrato definitivo prevalece sobre o quanto se pactuara no contrato preliminar.1 A relevância da decisão, todavia, vai muito além de solucionar eventual conflito entre o programa negocial previsto no preliminar e aquele constante do definitivo.
O caso concreto
Em 09 de novembro de 2016, após tratativas mantidas por alguns meses, ML Alimentação e Diversões S.A. (“ML”) encaminhou “Oferta de Venda do Restaurante Piantella” a Finançair Fomento Mercantil Ltda. (“Finançair”) e Marcelo Tomé Peres (“Marcelo”). Do instrumento constou que, em contraprestação à transferência do restaurante, os compradores assumiriam “a totalidade do passivo tributário e trabalhista, já existente ou a ser apurado”, e não pagariam qualquer quantia à vendedora. Previu-se, ainda, que as partes, de comum acordo, definiriam o formato da operação jurídica para a venda do restaurante, “celebrando contrato que conter[ia] os direitos e obrigações de cada uma, com maior detalhe, observadas as condições gerais aqui propostas e aceitas”. Os compradores assinaram a proposta, aceitando-a.
Em 22 de novembro 2016, firmou-se o “Contrato Particular de Compra e Venda de Ações e Outras Avenças”. Neste negócio, figuraram como vendedores os acionistas controladores da ML (não mais a própria ML), e o objeto contratado passou a consistir nas ações da ML (não já no restaurante Piantella). Ademais, diversamente do que constou da oferta de venda, as cláusulas 4.3 e 4.3.1 deste novo instrumento previam que os vendedores seriam “os únicos e exclusivos responsáveis por todas as obrigações e débitos da ML de natureza trabalhista (...) até a data de assinatura deste Contrato”, e que deveriam reembolsar os compradores por qualquer desembolso eventualmente realizado a esse título. Da cláusula 9.2 ainda constou previsão segundo a qual o Contrato constituiria “todo o entendimento entre as partes e substitui[ria] todas as garantias, condições, promessas, declarações, contratos e acordos verbais ou escritos, anteriores sobre o objeto deste Contrato”.
Em agosto de 2020, a ML – que continuou, portanto, a ser a proprietária do restaurante – ajuizou ação de execução de título extrajudicial em face dos vendedores – seus ex-acionistas controladores –, pleiteando o reembolso de valores com os quais teria arcado em razão de demandas trabalhistas, com base na cláusula 4.3.1 do Contrato. Os vendedores opuseram embargos à execução, sustentando que, nos termos da oferta de venda inicial do restaurante, seriam os compradores, e não eles, os obrigados ao pagamento do passivo de demandas trabalhistas. Argumentaram que da “Oferta de Venda do Restaurante Piantella” teria constado todos os aspectos nucleares do negócio jurídico, razão pela qual, com a aceitação, o contrato teria sido celebrado, tornando-se definitivo e obrigatório para as partes. Nessa direção, o documento assinado em 22 de novembro teria apenas instrumentalizado o negócio que já havia sido celebrado, não podendo, portanto, alterar o quanto anteriormente contratado.
A sentença, prolatada em 2022, julgou os embargos procedente e extinguiu a execução. De acordo com o juízo, embora possível que as “partes, por ocasião da instrumentalização do negócio jurídico (...), tratem de forma diferente os elementos discutidos durante as tratativas” (...), é necessário que a modificação das condições apresentadas, oferecidas e aceitas fique explícita”. Isso, aos olhos do juízo, não teria ocorrido no caso em exame, uma vez que o “contrato não ressalvou as tratativas iniciais”.2
Em apelação, a 6ª Turma Cível do TJDFT reformou a sentença, sob o fundamento de que a oferta de venda do restaurante Piantella ostentaria, em verdade, a natureza jurídica de contrato preliminar, já que fora “acordado que seria celebrado contrato definitivo no futuro”. Ademais, o contrato definitivo teria não apenas disciplinado de forma pormenorizada a responsabilidade de cada uma das partes pelas dívidas trabalhistas, mas previsto expressamente que referido pacto prevaleceria sobre as declarações anteriores. De mais a mais, ainda que se entendesse que a oferta de venda consistiria em contrato autônomo, “outra não seria a conclusão de prevalência do último instrumento, porquanto as partes que celebram negócio jurídico podem firmar contrato posterior, modificando, confirmando e/ou extinguindo as obrigações e direitos estabelecidos no anterior. Trata-se da concretização da autonomia da vontade, prevista no art. 421, do Código Civil”.3
Os vendedores interpuseram recurso especial, sob a alegação de ofensa aos arts. 427, 428, I, 421 e 463, todos do Código Civil,4 reafirmando os argumentos já aduzidos anteriormente.
A decisão no REsp. nº 2.054.411/DF
Em outubro de 2023, a Terceira Turma do STJ negou, por unanimidade, provimento ao recurso. O Relator, Ministro Moura Ribeiro, fundamentou sua decisão em três principais argumentos:
a proposta de compra e venda formalizada em 9 de novembro não continha os exatos elementos nucleares do negócio jurídico que veio a ser celebrado no dia 22 de novembro. De fato, do contrato que foi, ao fim, celebrado, constaram vendedores e objeto diversos daqueles presentes na oferta de venda.
os recorrentes adotaram comportamento incoerente ao sustentar a exigibilidade da proposta como um todo e pleitear sua aplicação apenas na parte em que lhes interessava. De acordo com o Relator, “se a tese jurídica defendida é a de que a proposta deveria prevalecer sobre o contrato definitivo, [os recorrentes] deveriam, por coerência, perseguir a eficácia da proposta em sua integralidade, e não por capítulos. Em outros termos, deveriam pedir, por exemplo, que a compra e venda recaísse sobre o próprio estabelecimento comercial, e não sobre as ações da ML”.
“não é possível conferir eficácia ao contrato preliminar (proposta) em detrimento do definitivo, porque as partes, nessa nova avença, pactuaram obrigações diametralmente opostas e desautorizaram, expressamente, os termos do pacto original”. Conforme destacou o Ministro Moura Ribeiro, ainda que “se pudesse admitir que os elementos nucleares do negócio definitivo estivessem já indicados na proposta inicial e (...) se pudesse perdoar o comportamento contraditório” dos recorrentes, tampouco o recurso especial poderia ser provido. Isso, porque, “a destacada eficácia vinculante da proposta não se sobrepõe à autonomia da vontade das partes,” que podem alterar livremente os termos outrora pactuados.
No caso concreto, entendeu o STJ, arrimado nas conclusões alcançadas pelo TJDFT, que a vontade livre e esclarecida dos contratantes confluíra em sentido contrário ao do pacto preliminar, pelo que não haveria mais como conferir eficácia ou exigibilidade a referido ajuste. Afirmou o Relator que o contrato preliminar se reveste de função preparatória e instrumental, sendo facultado às partes modificá-lo conforme o seu interesse. E o art. 463 do Código Civil não infirma referida conclusão. De fato, como explicado no acórdão, o dispositivo se limita a autorizar o contratante a exigir a formalização do negócio definitivo com observância do que estipulado no acordo preliminar, diante de recusa ou inércia da contraparte, não impedindo as partes de, consensualmente, suplantar acordos anteriores e dispor em sentido diverso do que inicialmente ajustado por ocasião da celebração do negócio definitivo.
Ao fim, o Ministro Relator destacou que a liberdade contratual confere aos contratantes amplos poderes para alterar, por consenso, o conteúdo do contrato:
“O contrato posterior, porque estabelece norma entre as partes, também pode revogar ou derrogar ajuste anterior quando for com ele incompatível ou quando expressamente o declare. Admitindo-se que o negócio jurídico, por definição, é o ato jurídico praticado pelas partes, sob o signo da autonomia da vontade, com aptidão para criar, extinguir ou modificar relações jurídicas, nada mais natural do que admitir que ele pode incidir sobre uma relação jurídica criada por outro negócio jurídico anterior, modificando seus contornos para liberar as partes das obrigações assumidas anteriormente ou impor-lhes novos compromissos. É esse, afinal, o fundamento do instituto jurídico do distrato referenciado no art. 472 do CC”.5
Conclusões e inferências a partir da decisão
A decisão em comento permite extrair duas conclusões e uma inferência relevantes:
a execução específica do contrato preliminar nos termos então contratados, especialmente quando inexistente cláusula de arrependimento (art. 463 CC), é plenamente possível. Com efeito, havendo pedido de cumprimento específico, a declaração de vontade que será cumprida coercitivamente é aquela que já foi manifestada anteriormente, não se admitindo alteração unilateral de conteúdo no contrato definitivo. A situação do caso aqui comentado, por sua vez, é bastante diversa: foram as próprias partes que, no livre e legítimo exercício da sua autonomia privada, alteraram o conteúdo do que haviam antes contratado, o que nos leva à segunda conclusão extraída da decisão;
não viola o princípio da obrigatoriedade dos contratos a posterior alteração do programa negocial ou mesmo a sua extinção por consenso das partes antes do advento do termo pactuado. De fato, as mesmas vontades que têm o poder de contratar, têm também o poder de recontratar e de distratar; e
se a vontade das partes pode alterar o programa negocial antes contratado, com muito mais razão pode também alterar o que se combinou durante as tratativas. Com efeito, minutas, cartas de intenção ou outros instrumentos negociais pré-contratuais, posto possam eventualmente contribuir para a interpretação do contrato definitivo quando houver dúvida quanto ao seu sentido, não se sobrepõem ao que restar contratado, se com ele se chocarem.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: embate entre contrato preliminar e definitivo – uma questão de autonomia privada. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 110, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire110>. Acesso em DD.MM.AAAA.
STJ, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, REsp nº 2.054.411/DF, j. 03.10.2023, v.u.
2ª Vara de Execução de Títulos Extrajudiciais e Conflitos Arbitrais de Brasília, Juiz de Direito Substituto Carlos Fernando Fecchio dos Santos, Embargos à Execução nº 0720498-72.2021.8.07.0001, j. 07.02.2022.
TJDFT, 6ª Turma Cível, Rel. Des. Esdras Neves, AC nº 0720498-72.2021.8.07.0001, j. 15.06.2022.
Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.
Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta: I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante;
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.
Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.