#112. O princípio da indiferença das vias
Por Fábio Ulhoa Coelho
Uma das passagens mais ligeiras e obscuras da obra de Pontes de Miranda passou recentemente a frequentar decisões judiciais. Trata-se de um argumento que ele denominou de “princípio da indiferença das vias”. Não é, decididamente, nenhum conceito difundido na doutrina civilista, muito menos uma noção que desfrute do reconhecimento como um princípio da disciplina. Além disso, consultada a única fonte primária do assunto, isto é, o isolado parágrafo do Tratado de direito privado, não há como não perceber uma boa distância entre o que Pontes de Miranda tinha em mente ao criar a figura e o sentido sugerido nas decisões judiciais em que é citada.
O meu objetivo aqui é conferir o exato conteúdo do princípio da indiferença das vias, na obra de seu criador, para verificar se o apelo à figura poderia fundamentar, como tem sido, a existência de uma pretensão extrajudicial. Essa consulta à fonte primária demonstra que o exercício da pretensão não se submete ao “princípio da indiferença das vias”.
O princípio da indiferença das vias foi formulado por Pontes de Miranda. Ele o emprega ao tratar não do exercício da pretensão pelo credor, mas sim do exercício da exceção pelo devedor. Em virtude do princípio em tela, de acordo com a síntese de que Pontes de Miranda concebeu, “as exceções podem exercer-se extrajudicial ou judicialmente, pelo ato de recusa (ato jurídico stricto sensu e não negócio jurídico)”.1 O referido princípio é apresentado por Pontes de Miranda no § 650.7 do seu Tratado de direito privado, cujo título é: “Exercício das exceções; Princípio da indiferença das vias.” Trata-se, portanto, de uma proposição jurídica destinada a elucidar questões relacionadas ao exercício da exceção pelo devedor, entre as quais se inclui a de suscitar a prescrição da pretensão do credor. Confira-se a passagem no § 650 do Tratado de direito privado:
7. EXERCÍCIO DAS EXCEÇÕES; PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA DAS VIAS. – As exceções podem exercer-se extrajudicial ou judicialmente, pelo ato de recusa (ato jurídico stricto sensu e não negócio jurídico). Sempre que o titular exerce o direito, a pretensão, ou a ação, ou a exceção, extrajudicialmente, também o titular da exceção ou da réplica pode opô-la extrajudicialmente, por meio de manifestação de vontade ao obrigado, o exercício da exceção, ou da réplica, segue a mesma via, em manifestação de vontade ao exercente do direito, pretensão, ação, ou exceção. A lei não exige forma especial.2
É curioso que nesse título do subparágrafo 7 do parágrafo 650 encontra-se a única vez, em todos os 6.024 parágrafos dos 60 volumes do Tratado de direito privado, em que há menção ao propalado “princípio da indiferença das vias”. Mais curioso ainda é o fato de a menção se encontrar apenas no título do subparágrafo e não é de maneira nenhuma retomada na exposição das ideias ao longo do texto que o segue e o qual titula.
A implicação extraída por Pontes de Miranda do referido princípio diz respeito unicamente às vias de exercício, pelo devedor, da exceção relacionada à prescrição da pretensão pelo credor: se o devedor já suscitou a exceção extrajudicialmente, entende o autor, não será necessário renová-la em juízo quando o credor exercitar a pretensão. Confira-se:
Não é preciso que a exceção, se a prestação foi exigida extrajudicialmente, se exerça imediatamente a essa, salvo regra jurídica especial. A eficácia retroativa da exceção tem ensejo de operar-se, até que ela se extinga, ou, sobrevindo processo, tenha precluído o prazo para a sua oposição. Oposta, extrajudicialmente, a exceção, ou a réplica, – a pretensão, a ação e a exceção ficam encobertas em sua eficácia. Se o credor vai a juízo e já discute a exceção oposta extrajudicialmente, negando-lhe a existência, ou a extensão, ou a eficácia, o réu não precisa rearticulá-la, pois está implícita na petição do autor; se fala no processo, há de aludir a tê-la oposto, e não mais a poder opô‑la. Aliás, no exame do caso, há de o juiz atender à exceção, se está implícita nas afirmações do autor. Se o autor nega que tenha havido exercício extrajudicial da exceção, ou o réu afirma e prova o contrário, ou afirma e não prova tê-la exercido, ou de novo a opõe, o que é superposição do exercício judicial ao exercício extrajudicial duvidoso.3
Ao propor esse princípio, Pontes de Miranda não está de modo nenhum pensando no exercício da pretensão pelo titular do direito ao crédito. Ele está tratando, isto sim, do exercício da exceção pelo devedor do crédito, isto é, das vias em que pode transitar a alegação da prescrição que extingue a pretensão. Somente se a fattispecie for o meio de o devedor exercitar a exceção relativa à prescrição é que tem aplicação o “princípio da indiferença das vias” sugerido por Pontes de Miranda.4 Ele, aliás, admite expressamente o direito de o credor interpelar o devedor mesmo se for titular de créditos inacionáveis, isto é, de “direitos sem pretensão”.5 Essa delimitação do princípio da indiferença das vias ao exercício da exceção pelo devedor é reconhecida pela doutrina.6
Em Pontes de Miranda, uma hipotética noção de pretensão pela via extrajudicial seria inafastavelmente incongruente com o conceito de pretensão, que ele define como “a posição subjetiva de poder de exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa”.7 Ora, se pretensão é, como Pontes de Miranda entende (e, de resto, está pacificado na doutrina8), o poder de obter a satisfação forçada de uma obrigação inadimplida, então, por definição, ela diz respeito unicamente à via judicial. Não há pretensão exercitável pela via extrajudicial. Isso é assim por decorrência natural, lógica e jurídica do monopólio do uso da força legítima pelo Estado. Ninguém pode exigir nada diretamente, devendo sempre buscar uma prestação jurisdicional se deseja quebrar a resistência do obrigado em cumprir a obrigação. Em função da própria definição de pretensão, quando ela se extingue pela prescrição, deixa de existir apenas uma das vias de cobrança, a judicial. A outra via de cobrança, a extrajudicial, permanece aberta ao credor.
Saliento o cuidado que Pontes de Miranda tem ao delimitar a questão, no início do § 650.7 do Tratado. Com acuidade, ele fala em “prestação exigida extrajudicialmente” e não em “pretensão exercida extrajudicialmente”, até mesmo porque, mais uma vez, esta hipótese não seria congruente com o próprio conceito por ele aceito de pretensão.
Pelo que denominou de “princípio da indiferença das vias”, Pontes de Miranda pretendeu esclarecer uma questão relativamente aos meios à disposição do devedor para suscitar a prescrição; não estava em questão para ele os meios à disposição do credor para cobrar o seu crédito. O que Pontes de Miranda afirmou, a partir desse princípio por ele inventado, foi que o devedor cobrado extrajudicialmente pode suscitar a exceção da prescrição extrajudicialmente, não precisando valer-se necessariamente de qualquer ação declaratória para excepcionar.
Em suma: (i) “princípio da indiferença das vias” é uma criação, no plano doutrinário, de Pontes de Miranda; (ii) Pontes de Miranda utilizou a categoria uma única vez em toda a sua extensa obra; (iii) o referido princípio é sugerido por Pontes de Miranda exclusivamente para cuidar das vias de arguição de exceções, entre as quais a exceção da prescrição; e (iv) não há nenhum outro autor que se refira a esse princípio, a não ser para traduzir o entendimento de Pontes de Miranda especificamente nessa passagem acerca da arguição da exceção.
Por isso, não foi uma criação de Pontes de Miranda a proposição de um “princípio da indiferença das vias” dissociando o exercício das pretensões da via da cobrança judicial, para vislumbrar também a hipótese do exercício da pretensão na cobrança extrajudicial. Essa conclusão não seria congruente com o restante da obra de Pontes de Miranda no que concerne ao conceito de pretensão e às interpelações em obrigações inacionáveis.
Deste modo, em Pontes de Miranda, como em toda a doutrina nacional, a extinção da pretensão pela prescrição não é nada indiferente às vias de cobrança, limitando-se, ao contrário, à judicial.
Fábio Ulhoa Coelho
Advogado e Professor da PUC-SP.
Como citar: COELHO, Fábio Ulhoa. O princípio da indiferença das vias. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 112, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire112>. Acesso em DD.MM.AA.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 6, 3.ed. São Paulo: RT, 1984, p. 74.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 6, 3.ed., cit., pp. 74-75. Desse trecho, note-se, não se pode concluir que, pelo princípio da indiferença das vias criado por Pontes de Miranda, uma pretensão poderia ser exercida extrajudicialmente, porque deveríamos forçosamente também concluir que uma ação (ressalvada a hipótese de autotutela) poderia ser exercida extrajudicialmente, o que é um absurdo.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 6, 3.ed., cit., pp. 75-76.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 6, 3.ed., cit., pp. 72 e 74-76.
Em suas palavras: “Se a dívida pertence à classe daquelas de que a mora só se estabelece pela interpelação (art. 960, parágrafo único, verbis ‘desde a interpretação, notificação ou protesto’), surge a questão da interpelabilidade: aqueles que não distinguiam a pretensão inacionável do direito contemporâneo e a obligatio naturalis do direito romano foram levados a citar o ‘nulla mora ubi nulla petitio’ de Cévola (L. 88, D., de diversis regulis uiris antiqui, 50, 17: ‘nulla intellegitur mora ibi fieri, ubi nulla petitio est’) e às vezes a ter a interpelação como forma de ação (aliás seria outra ação, e não a que se cortou), recorrendo-se à L. 127, D., de verborum obligationibus, 45, 1 (H. A. Schwnert, Die Naturalobligationen, 169 s.); aqueles que distinguem o conceito de dever só moral (= não jurídico) e de obrigação sem exposição à ação do credor (= jurídico deficiente) têm por interpelável o devedor inacionável (assim Hans Reichel, Unklagbare Ansprüche, Jherings Jahrbücher, 60, 55 s.). O problema circunscreve-se à interpelação judicial, porque a outra é evidentemente exercício do direito do credor, independentemente da ação. Quando à interpelação judicial, se é certo que o devedor moral não-jurídico não daria base a ela, não se pode dizer o mesmo onde há direito, embora mutilado, ou pretensão, embora mutilada” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 6, 3.ed., cit., pp. 64-65). Não restam dúvidas, a partir do trecho grifado, que, para Pontes de Miranda, mesmo quando se trata de obrigação inacionável, porque exclusivamente moral ou porque prescrita (mutilada) a pretensão, a interpelação extrajudicial é in litteris “evidentemente exercício do direito do credor”.
Como esclarece Otavio Luiz Rodrigues Jr.: “superados os problemas de conceituação e de classificação das exceções, interessa cuidar dos relativos a seu exercício. No § 632, do tomo 6 do Tratado, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda é enfático ao conceder que as exceções podem ser exercidas em juízo ou fora dele, uma consequência do reconhecimento de que a EDM ‘não poderia ser dependente de intentação de pleito’. Em suas palavras, ‘[a] exceção é res in iudicium deducta, se há processo; se não há, opõe-se cá fora, na vida extrajudicial’. É o chamado ‘princípio da indiferença das vias’” (Prescrição e decadência: estudos em homenagem ao professor Agnelo Amorim Filho. In: MIRANDA, Daniel Gomes de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Salvador: Juspodivm, 2013, pp. 417-418).
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 5, 3.ed. São Paulo: RT, 1984, p. 451.
THEODORO JR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. Vários autores. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 162; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 378; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código civil interpretado conforme a Constituição da República. 2.ed., Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, pp. 353-354; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 1. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 514‑515; DINIZ, Maria Helena. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Código civil comentado. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 171; LEONARDO, Rodrigo Xavier. “A prescrição no Código Civil brasileiro (ou o jogo dos sete erros)” . Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n.º 51, p. 107; MENKE, Fabiano. In: NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 311; Renan Lotufo. Código civil. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 519; e Carlos A. Dabus Maluf. Código civil comentado. Diversos autores. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2009, vol. III, p. 12.