#115. A hipertrofia do adimplemento substancial: nem todo curativo é band-aid
Por Carlos Nelson Konder
Considera-se um grande sucesso publicitário – embora seja também um problema concorrencial – uma marca conseguir causar tamanho impacto junto aos consumidores que é confundida com o próprio gênero de produto que se vende. Assim, toma-se lâmina de barba por Gillette, esponja de aço por Bombril, hastes flexíveis por cotonetes, fita adesiva por durex e, entre tantos outros, poliestireno expandido (EPS) por isopor.
No âmbito do direito, todavia, onde se deve zelar por precisão e rigor científico para garantir segurança jurídica, esse tipo de confusão está longe de ter um lado bom. Ao revés, é motivo somente para alerta, pois prejudica a clareza do intérprete em reconhecer as distinções e peculiaridade entre as categorias, de modo a forçar os fatos para dentro de uma roupagem jurídica que não lhes serve.
Quando se trata de instituto estrangeiro, então, a gravidade do problema é maior, já que as dificuldades existentes com a importação se acentuam pela falta de precisão técnica. O fascínio por aquilo que “vem de fora” propiciou que testemunhássemos a transformação de diversos institutos jurídicos estrangeiros em “ideias fora de lugar”.1 Esse processo, impelido pela inadequada utilização de princípios entre nós, parece atingir, mais recentemente, a teoria do adimplemento substancial.
Originada das cortes inglesas do século XVIII, a teoria preconiza que, diante de um inadimplemento insignificante, que não prejudique o interesse do credor, seria descabida a pretensão resolutória, cabendo ao credor somente a pretensão à execução forçada, com os consectários da mora.2 Explicam Aline Terra e Gisela Guedes: “a Teoria do Adimplemento Substancial protege o devedor, ao impedir que o credor lhe imponha remédios que lhe causarão sacrifícios desproporcionais à lesão que o descumprimento causou ao seu interesse na prestação”.3 Entre nós, costuma-se fundamentar sua aplicação no princípio da boa-fé.4 O adimplemento substancial seria, assim, um mecanismo de controle do direito à resolução do contrato para a tutela da legítima expectativa do devedor que, tendo cumprido substancialmente sua prestação, pretende purgar sua mora.5
Em sede jurisprudencial, todavia, é comum encontrar sua fundamentação conjugando boa-fé e função social do contrato.6 Isso normalmente ocorre de forma genérica e indistinta, em criticada tendência à invocação dos princípios contratuais em bloco, sem precisar os traços distintivos de cada um – apartar a tutela da confiança da proteção a interesses metaindividuais – nem sua ligação específica com o caso concreto.7
Ilustrativamente, no TJSP, entre os 5519 julgados que contém “adimplemento substancial” na ementa, 3316 resultados indicam conter “boa-fé” na pesquisa livre (isto é, em qualquer parte da decisão) e 1398 “função social do contrato”, dos quais 1355 contém ambas as expressões. Dos 43 julgados que se referem somente à função social do contrato, sem referência à boa-fé (cerca de 3%), somente em cinco (0,3%) se encontrou explicação sobre sua ligação com o caso – dois a associando ao direito à moradia veiculado pelo contrato8 e três a associando ao “princípio da conservação”.9 Nos demais a expressão aparece somente como argumento das partes ou é referida na fundamentação da decisão sem explicação com sua relação com o caso.
Na doutrina são poucos os estudos que buscam aprofundar essa relação de forma mais explícita. Nessa linha, Bruno Terra defende que em contratos relativos, por exemplo, a acesso à moradia e à atividade laborativa, tendo em vista a “significativa carga de interesse público” neles contida, o interesse social na manutenção do contrato permitiria considerar adimplemento substancial um pagamento de percentual inferior do que em um contrato que não tivesse a mesma intensidade do interesse social.10 Em linha similar, para Bárbara Naves “nos contratos existenciais, como seguro de vida e saúde e compromisso de compra e venda de imóvel residencial, a aplicação da teoria do adimplemento substancial é muito mais frequente e o percentual médio em que a substancialidade do adimplemento foi reconhecida é um pouco mais baixo do que nos casos que envolviam contratos de lucro, como leasing e alienação fiduciária”.11
A posição dos autores, contudo, é controversa, pois, de outro lado, a doutrina defende “descarta[r]-se, peremptoriamente, a função social como fundamento da Teoria do Adimplemento Substancial, que se ocupa apenas dos interesses das partes contratantes”.12 Com efeito, há aqui uma dificuldade latente, decorrente do fato de os interesses metaindividuais, embora idôneos a justificar a conservações dos efeitos do contrato, não interferirem a rigor com a “substancialidade” do adimplemento.
A origem do problema parece residir no protagonismo que a doutrina do adimplemento substancial assumiu, em virtude de sua ampla acolhida em doutrina e jurisprudência, o que ocasionou relativa sobreposição entre ela e o próprio controle de abusividade do exercício do direito de resolução. Ou seja, toma-se uma categoria de controle da resolução do contrato pelo todo, contaminando todas as hipóteses desse controle pelo olhar da substancialidade.
Em contraponto, parece salutar reconhecer que esse controle pode ser exercido de forma independente do controle de substancialidade do adimplemento, com base em fundamentos e critérios normativos distintos. Mesmo no âmbito da incidência do princípio da boa-fé reconhece-se sua atuação sobre o exercício do direito resolutório por meio de outras figuras parcelares, como o venire contra factum proprium: há muito decidiu-se que era abusivo o exercício do direito à resolução porque a conduta anterior do credor levara o devedor a crer em sentido contrário, sem qualquer referência na fundamentação à substancialidade do adimplido até aquele momento.13
Assim, é possível – e salutar – conceber também o controle do direito à resolução por meio da função social do contrato, mas somente quando a extinção da relação contratual acarrete prejuízo a interesses extracontratuais merecedores de tutela, portanto fora do âmbito da doutrina do adimplemento substancial, e mesmo da boa-fé.14 Afirma Mariana Siqueira que, nesses casos, “a conservação da relação obrigacional não terá por fundamento o adimplemento substancial, mas a consecução de determinado interesse extracontratual”.15 Com efeito, a distinção entre as hipóteses, de modo a assegurar uma “livre-concorrência” das categorias jurídicas, permite ao intérprete maior clareza e precisão na sua atuação, de modo a evitar a banalização dos princípios que abre portas para a arbitrariedade, e assegurando, consequentemente, maior coerência e segurança ao ordenamento.
Carlos Nelson Konder
Professor Titular do Departamento de Direito Civil da UERJ. Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutor e mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito civil pela Universidade de Camerino (Itália). Sócio de Konder Sociedade de Advogados, onde atua como árbitro e parecerista.
Como citar: KONDER, Carlos Nelson. A hipertrofia do adimplemento substancial. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 115, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire115>. Acesso em DD.MM.
A expressão foi consagrada pelo ensaio “As ideias fora de lugar” (SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2012) acerca da disparidade entre as ideias do liberalismo europeu e as peculiaridades da sociedade escravista brasileira.
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 60 e ss..
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Adimplemento substancial e tutela do interesse do credor: análise da decisão proferida no REsp 1.581.505. Revista brasileira de direito, v. 11. Belo Horizonte: jan.-mar./2017, p. 105.
Nesse sentido, BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 60; MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação, 2. ed.. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 759.
Em oposição ao entendimento predominante, Aline Terra e Gisela Guedes defendem que o adimplemento substancial situa-se ainda na verificação dos requisitos para a titularidade do direito resolução, e não sobre o controle do seu exercício: “Em presença de adimplemento substancial, a resolução é afastada justamente porque de inadimplemento absoluto não se trata, pois a prestação ainda é útil para o credor” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Adimplemento substancial e tutela do interesse do credor: análise da decisão proferida no REsp 1.581.505. Revista brasileira de direito, v. 11. Belo Horizonte: jan.-mar./2017, p. 110).
Nesse sentido, também, o enunciado n. 361 das Jornadas de Direito Civil (CEJ/CJF): “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.
Sobre a perigosa tendência, permita-se remeter TERRA, Aline de Miranda Valverde; KONDER, Carlos Nelson; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa. Boa-fé, função social e equilíbrio contratual: reflexões a partir de alguns dados empíricos In: Princípios contratuais aplicados: boa-fé, função social e equilíbrio contratual à luz da jurisprudência. Indaiatuba, SP: Foco, 2019, p. 1-22.
TJSP, 8ª C.D.P., Ap. Cível 10339947520198260506, Rel. Des. Alexandre Coelho, julg. 03/08/2021, e TJSP, 3ª C.D.P., Ap. Cível 10060481720158260071, Rel. Des. Carlos Alberto de Salles, julg. 08/03/2017.
TJSP, 27ª C.D.P., Ap. Cível 40020132120138260624, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, julg. 11/09/2017; TJSP, 30ª C.D.P., Ap. Cível 10050577720168260565, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, julg.17/05/2017; TJSP, 27ª C.D.P., Ap. Cível 92147153220088260000; Rel. Des. Berenice Marcondes Cesar, julg. 22/11/2011.
MORAES, Bruno Terra de. A função social do contrato como fundamento da aplicação da teoria do adimplemento substancial: quando ocorre e quais as repercussões práticas. In: TEPEDINO, G.; MENEZES, J. B. (org.). Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 658-659.
NAVAS, Bárbara Gomes. O abuso do direito de resolver: análise da teoria do adimplemento substancial no direito brasileiro. Revista de direito civil contemporâneo, v. 11. São Paulo: abr.-jun./2017, p. 79-102, recurso eletrônico.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Adimplemento substancial e tutela do interesse do credor: análise da decisão proferida no REsp 1.581.505. Revista brasileira de direito, v. 11. Belo Horizonte: jan.-mar./2017, p. 107.
STF, 1ª T., RE 67205, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, julg. 06/04/1973.
Seja consentido remeter a KONDER, Carlos Nelson. Função social na conservação de efeitos do contrato. Indaiatuba (SP): Foco, 2024, p. 113.
SIQUEIRA, Mariana Ribeiro. Adimplemento substancial: parâmetros para sua configuração. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 46.