#121. Empresas e Direitos Humanos: novas perspectivas e regulamentação crescente
por Melina Girardi Fachin
Localizando o tema: BHR
Nos últimos anos, a relação entre empresas e direitos humanos – business and human rights (BHR) como geralmente referenciado no âmbito internacional dos direitos humanos – tem recebido crescente atenção da comunidade internacional. As globalizações1 trouxeram consigo a necessidade, para além da obrigação estatal clássica, de as empresas se envolverem na proteção dos direitos humanos.
Definir direitos humanos pode ser um desafio devido à sua abrangência e complexidade.2 Todavia, se pensarmos em termos de violação, não se torna difícil identificar contextos em que os direitos humanos são desrespeitados e violados. Tradicionalmente, a responsabilidade de garantir esses direitos recai sobre o Estado. No entanto, com as divisões cada vez mais porosas entre as searas público e privadas (se é que essa divisão ainda caiba), aliada à crescente influência das empresas na vida cotidiana e nas economias globais, a responsabilidade de respeitar e promover os direitos humanos está se expandindo para incluir também as entidades privadas.3
As empresas desempenham um papel significativo na promoção ou violação dos direitos humanos, dependendo de suas práticas e políticas. Casos de abusos trabalhistas, degradação ambiental e envolvimento em conflitos armados têm levantado preocupações sobre a responsabilidade das empresas em respeitar os direitos humanos.4 Em resposta a essas preocupações, a comunidade internacional tem buscado desenvolver mecanismos para prevenir e responsabilizar as empresas por suas ações.5
Ainda que, à luz do direito internacional dos direitos humanos, o foco recaia majoritariamente sobre os aspectos da responsabilização, o campo preventivo merece destaque ao promover a internalização desses deveres nas suas práticas contratuais e operacionais. Em termos contratuais, isso significa que as empresas são incentivadas a incluir cláusulas específicas em seus contratos com fornecedores e parceiros comerciais, exigindo o cumprimento de normas de direitos humanos. Estas cláusulas contratuais servem como mecanismos de devida diligência (due diligence), obrigando todas as partes envolvidas a adotar práticas que respeitem os direitos humanos. Além disso, a implementação de políticas internas robustas e a realização de auditorias periódicas garantem que essas obrigações contratuais sejam efetivamente cumpridas, promovendo uma cultura corporativa de responsabilidade e sustentabilidade.6
O avanço do tema na agenda internacional
Várias iniciativas internacionais têm sido fundamentais para esta transição, criando frameworks e diretrizes que buscam responsabilizar as empresas não só por violações de direitos humanos, mas também por promover a internalização desses deveres em suas operações.
Na gênese destes movimentos estão os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, estabelecidos pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2011.
Esses Princípios Orientadores fornecem um marco global para prevenir e enfrentar os impactos negativos das atividades empresariais sobre os direitos humanos. Eles são baseados em três pilares: proteger, respeitar e remediar. Enquanto os Estados têm a responsabilidade de proteger os direitos humanos, as empresas devem respeitá-los, e ambos devem garantir acesso a mecanismos de remediação para as vítimas de abusos.7
A partir desse marco inicial dos princípios orientadores, diversas organizações internacionais têm sido protagonistas nesse processo. As Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais são recomendações dirigidas pelos governos aos negócios internacionais, fornecendo princípios e normas voluntárias para condutas empresariais responsáveis em áreas como direitos humanos, trabalho, meio ambiente e combate à corrupção. Essas diretrizes incentivam as empresas a realizarem a devida diligência (due diligence) para identificar, prevenir, mitigar e responder aos impactos adversos de suas operações.
Mais recentemente, a União Europeia adotou a Diretiva sobre Devida Diligência Corporativa em Sustentabilidade, que exige que as empresas realizem avaliações rigorosas do impacto de suas operações nos direitos humanos e no meio ambiente. Esta diretiva possui uma aplicação extraterritorial, significando que empresas não europeias, mas que operam no mercado europeu, também devem cumprir com essas regulamentações.
Essas iniciativas internacionais têm desenvolvido diretrizes e frameworks que orientam as empresas a operar de maneira responsável e transparente. Esses estandartes geralmente se enquadram na categoria de soft law8 o que significa que são instrumentos jurídicos não vinculantes que influenciam o comportamento das empresas através de recomendações, boas práticas e expectativas de conformidade, ao invés de imposições legais diretas. Embora não sejam leis obrigatórias, estabelecem padrões que podem ser adotados voluntariamente pelas empresas e, em alguns casos, integrados às legislações nacionais pelos governos.
Paralelamente, a sociedade civil e movimentos ativistas têm intensificado a pressão sobre as corporações para que adotem práticas sustentáveis e éticas, demonstrando um esforço colaborativo entre diferentes setores para promover a responsabilidade corporativa em escala global. Empresas que não seguem práticas responsáveis podem ter sua imagem pública prejudicada. Similarmente ao que ocorre em alguns setores do comércio internacional, onde a adesão a normas não obrigatórias é motivada pelo desejo de manter uma boa reputação entre parceiros e consumidores, as empresas são levadas a alinhar suas práticas com os padrões éticos estabelecidos pela sociedade para evitar críticas e boicotes.
Nota-se aqui um verdadeiro somatório de forças entre o âmbito nacional e internacional, entre diversos atores – Estados, empresas e sociedade civil – impulsionando este novo horizonte protetivo numa paisagem multinivelada.9
A Diretriz europeia
Reconhecendo a importância de garantir que as atividades empresariais não contribuam para violações, mas sim promovam o respeito, aos direitos humanos e danos ambientais, a União Europeia (UE) tem desempenhado um papel proeminente.10
A recente nova diretriz sobre devida diligência em direitos humanos e ambientais exige que as empresas realizem uma avaliação cuidadosa do impacto de suas operações nos direitos humanos e no meio ambiente. Além disso, a diretriz propõe uma maior transparência nas atividades corporativas, exigindo que as empresas divulguem publicamente suas políticas e ações de devida diligência.
Recentemente, a UE também introduziu a Diretiva sobre Devida Diligência Corporativa em Sustentabilidade, que possui uma aplicação extraterritorial, significando que empresas não europeias, mas que operam no mercado europeu, também devem cumprir com essas regulamentações. Empresas brasileiras, por exemplo, que exportam produtos para a UE ou que fazem parte de cadeias de suprimentos de empresas europeias, devem aderir a essas normas. Isso impõe às empresas brasileiras a necessidade de alinhar suas práticas de gestão e operações com os padrões europeus, assegurando que não estejam envolvidas em violações de direitos humanos ou danos ambientais, mesmo que suas operações principais ocorram fora da Europa.
A diretriz europeia sobre devida diligência em direitos humanos e sustentabilidade ambiental é aplicável principalmente a grandes empresas, definidas com base em critérios específicos como faturamento anual significativo e número substancial de funcionários, geralmente excedendo 500 empregados. Estes critérios ajudam a identificar empresas com uma presença relevante no mercado e que têm um impacto potencialmente maior sobre os direitos humanos e o meio ambiente. Focando em grandes empresas, a diretriz visa assegurar que entidades com maior capacidade de recursos e influência adotem práticas robustas de devida diligência, incluindo a avaliação, prevenção e mitigação dos impactos negativos de suas operações. Mas também estabelece um padrão que incentiva pequenas e médias empresas a adotarem práticas similares, fortalecendo a cultura de responsabilidade corporativa e sustentabilidade em todas as esferas empresariais.
Essas iniciativas não apenas aumentam a accountability das empresas perante a sociedade, mas também promovem uma maior consciência e engajamento dos consumidores, investidores e outras partes interessadas em práticas de negócios responsáveis.
Dentro dessa perspectiva, as empresas devem identificar, prevenir, mitigar e remediar quaisquer impactos negativos que suas atividades possam ter sobre os direitos humanos. À luz da diretriz europeia sobre devida diligência em direitos humanos e sustentabilidade ambiental, essa responsabilidade abrange não apenas as operações diretas das empresas, mas também suas cadeias de suprimentos globais. A diretriz exige que as empresas conduzam avaliações rigorosas e contínuas dos riscos e impactos de suas atividades, assegurando que todos os fornecedores e parceiros comerciais também estejam conforme os padrões estabelecidos.
Como consequência, faz-se necessário investir em sistemas robustos de monitoramento e avaliação para garantir o cumprimento das normas de direitos humanos em todas as etapas de suas operações. Esses sistemas devem incluir a revisão e atualização regular de políticas internas, a implementação de programas abrangentes de treinamento para funcionários sobre práticas de direitos humanos e sustentabilidade, e o estabelecimento de mecanismos eficazes de reclamação e remediação para partes interessadas afetadas. Além disso, a diretriz europeia enfatiza a importância da transparência, exigindo que as empresas divulguem publicamente suas políticas, ações e resultados de devida diligência, fortalecendo assim a accountability corporativa.
Para as empresas brasileiras, cumprir com essas exigências implica não apenas alinhar suas práticas internas, mas também garantir que seus fornecedores, especialmente aqueles que fazem parte de cadeias de suprimentos voltadas para o mercado europeu, sigam os mesmos padrões rigorosos. Isso pode envolver a realização de auditorias independentes, a criação de sistemas de rastreamento de fornecedores e o engajamento contínuo com stakeholders para identificar e resolver problemas de direitos humanos. Em última análise, a adesão a esses padrões não só ajuda a evitar sanções e danos reputacionais, mas também promove uma cultura de responsabilidade corporativa que pode resultar em benefícios competitivos no mercado global.
Cenas dos Próximos capítulos
Apesar dos claros benefícios de incorporar a promoção dos direitos humanos em suas operações, as empresas enfrentam desafios significativos que complicam essa integração. Entre esses desafios, destacam-se as questões de conformidade regulatória, que podem variar amplamente entre diferentes jurisdições e exigir um investimento considerável em recursos para garantir que todas as operações globais estejam alinhadas com as normas aplicáveis. Além disso, os custos adicionais associados à conformidade, como aqueles decorrentes da implementação de sistemas de monitoramento e auditoria eficazes, bem como da adaptação de práticas empresariais para atender aos padrões éticos, podem ser substanciais. Esses custos podem representar um obstáculo particularmente desafiador para pequenas e médias empresas. Adicionalmente, a resistência cultural dentro das organizações, que pode manifestar-se através de uma relutância em mudar práticas estabelecidas ou uma falta de sensibilização sobre a importância dos direitos humanos, representa um obstáculo à implementação efetiva de práticas de negócios responsáveis.
No entanto, adotar práticas responsáveis de negócios apresenta às empresas uma série de oportunidades significativas que vão além da simples conformidade com as regulamentações. Uma dessas oportunidades é o fortalecimento da reputação corporativa. Empresas reconhecidas por suas práticas éticas e pelo respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente podem se diferenciar no mercado, atraindo consumidores, investidores e talentos que valorizam a sustentabilidade e a responsabilidade social. Além disso, a adoção de práticas de negócios responsáveis pode significar uma mitigação substancial dos riscos operacionais. Empresas que proativamente identificam e abordam possíveis impactos negativos de suas operações evitam riscos legais, financeiros e reputacionais, contribuindo para a estabilidade e previsibilidade de suas atividades a longo prazo.
A diretriz europeia sobre devida diligência em direitos humanos e sustentabilidade ambiental tem implicações significativas para empresas brasileiras que operam ou pretendem operar no mercado europeu, bem como para aquelas que são partes de cadeias de suprimentos que servem a este mercado. Estas novas regulamentações representam um marco importante na abordagem das relações entre empresas e direitos humanos. Ao colocar a responsabilidade sobre as empresas para garantir o respeito pelos direitos humanos em todas as suas operações, incentiva-se uma cultura de responsabilidade corporativa e sustentabilidade. Empresas que aderem a essas práticas não só cumprem com as expectativas regulatórias, mas também contribuem para um ambiente empresarial mais justo e ético, fortalecendo suas posições no mercado global e promovendo um desenvolvimento econômico mais sustentável.
Melina Girardi Fachin
Professora e Diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Advogada.
Como citar: FACHIN, Melina Girardi. Empresas e Direitos Humanos: novas perspectivas e regulamentação crescente. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 121, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire121>. Acesso em DD.MM.AA.
“Globalização significa o assassinato da distância, o estar lançado a formas de vida transnacionais, muitas vezes indesejadas e incompreensíveis” (BECK, 1944, p. 47). BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo: respostas a globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, pág. 47.
“Os direitos humanos, então, devem ser vistos como a convenção terminológica e político-jurídica a partir da qual se materializa essa vontade de encontro que nos induz a construir tramas de relações – sociais, políticas, econômicas e culturais – que aumentem as potencialidades humanas. ” HERRERA FLORES, J. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, pág. 107. Disponível em:< https://www.patriciamagno.com.br/wp-content/uploads/2017/05/A-reinven%C3%A7%C3%A3o-dos-DH-_-Herrera-Flores.pdf >. Acesso em: 29 jul. 2024.
“Pretendeu, portanto, o constituinte, com a fixação da cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana acima aludida e mediante o estabelecimento de princípios fundamentais introdutórios, definir uma nova ordem pública, da qual não se podem excluir as relações jurídicas privadas, que eleva ao ápice do ordenamento a tutela da pessoa humana, funcionalizando a atividade econômica privada aos valores existenciais e sociais ali definidos. Propriedade, empresa, família, relações contratuais tornam-se estruturas jurídicas funcionalizadas à realização da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo central da Constituição brasileira de 88.” In: TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. Revista Jurídica, n. 341, 11-26, março, 2006, pág. 26.
Exemplos notáveis incluem: (a) abusos trabalhistas: O caso da Nike nos anos 1990, onde a empresa foi acusada de explorar trabalhadores em fábricas no sudeste asiático. Fonte: Klein, Naomi. No Logo. Knopf Canadá, 2000; (b) degradação ambiental: O caso da Chevron no Equador, onde a empresa foi acusada de causar danos ambientais significativos na região amazônica. Fonte: Kimerling, Judith. "Indigenous Peoples and the Oil Frontier in Amazonia: The Case of Ecuador, ChevronTexaco, and Aguinda v. Texaco." International Law and Politics, vol. 38, no. 3, 2006, pp. 413-664 e (c) envolvimento em conflitos armados: O caso da Unilever na República Democrática do Congo, onde a empresa foi acusada de financiar grupos armados. Fonte: Global Witness. "Congo's Gold: Who Benefits?". Global Witness Publishing. Inc. 2016.
“Quando há condições, as empresas nacionais podem ser responsabilizadas na jurisdição doméstica. Se as condições ainda não são as ideais, o Estado pode trabalhar para aprovar leis e/ou criar políticas públicas que permitam a responsabilização. Todavia, quando se tratam de empresas transacionais, a responsabilização por qualquer conduta desviante do contrato ou não é feita em face da empresa-matriz. Esta, por sua vez, será facilmente acionada na jurisdição de sua sede. ” PAMPLONA, Danielle Anne. Um projeto comum para a América Latina e os impactos das empresas em direitos humanos. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, p. 289, 2019. Disponível em:< https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/issue/view/295 >. Acesso em: 29 jul. 2024.
PIMENTEL, Marina Barsaglia. O contrato como instrumento de proteção e promoção dos direitos humanos no âmbito empresarial: as cláusulas éticas. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, pág. 81. 2018.
“É aqui que o BHR oferece uma alternativa, um foco no estabelecimento de uma obrigação central de empresas de respeitar os direitos humanos onde quer que operem, de não causar danos e, quando o dano for causado, de fornecer uma solução significativa para as vítimas. ” RAMASASTRY, Anita. Corporate Social Responsability Versus Business and Human Rights: Bridging the Gap Between Responsibility and Accountability. University of Washington School of Law. 2015. Pág. 240. Tradução livre.
“Soft law é "soft" no sentido de que não cria, por si só, obrigações vinculantes. Sua força normativa deriva do reconhecimento e das expectativas sociais dos Estados e de outros atores centrais.” UN. Report of the Special Representative of the Secretary-General on the issue of human rights and transnational corporations and other business enterprises, John Ruggie. A/HRC/4/35. 45-62. Tradução livre.
Para mais, ver: FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo multinível: diálogos e(m) direitos humanos. Revista Ibérica do Direito, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 8, 2021. Disponível em:< https://www.revistaibericadodireito.pt/index.php/ >capa/article/view/26. Acesso em: 29 jul. 2024.
Vide, a título de exemplo: Pacto Ecológico Europeu: Tem como objetivo limitar o aquecimento global reduzindo os gases do efeito estufa até 2050. Disponível em:< https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20200618STO81513/pacto-ecologico-essencial-para-a-sustentabilidade-na-ue > Acesso em: 30 jul. 2024.