#127. Atipicidade, disciplina jurídica e excepcionalidade da revisão do contrato built to suit
por Alexandre Junqueira Gomide
O built to suit é modelo contratual em que o empreendedor se obriga a construir ou reformar um imóvel para adaptá-lo às necessidades específicas de um usuário que, por sua vez, receberá o direito ao uso e/ou fruição desse bem por determinado prazo, mediante o pagamento de uma contraprestação que engloba a remuneração pelo uso e, também, a restituição e retribuição do investimento realizado.1
Embora timidamente previsto na Lei do Inquilinato (Lei 8.245/1991) a partir da edição da Lei 12.744/2012, o built to suit é inegavelmente um contrato atípico misto, não obstante a sua breve disposição conferida no artigo 54-A.2
Atipicidade contratual
A atipicidade do contrato built to suit justifica-se por alguns fundamentos. Em primeiro lugar, diante da insuficiência de o artigo 54-A da Lei 8.245/1991 disciplinar adequadamente essa complexa modalidade contratual.3 Em segundo lugar, porque avaliando-se os elementos essenciais do contrato, fácil perceber que o built to suit combina prestações distintas, afastando-se do modelo típico e tradicional da locação ou da empreitada. Assim, as prestações que qualificam o contrato built to suit são, de um lado, a construção somada à cessão do uso e fruição e, de outro, o pagamento das prestações periódicas.4
Contrariamente ao contrato típico de locação, em que a prestação do locador é nomeadamente permitir o uso e a fruição de imóvel já construído para ocupação do inquilino, no contrato built to suit, o empreendedor primeiro constrói (ou reforma substancialmente) sob medida para permitir ao ocupante usar e fruir do imóvel. Assim, a primeira prestação do contrato é a empreitada, tão relevante quanto a prestação da locação. Somente após a conclusão da obra é que o uso do espaço poderá ser conferido em favor do ocupante. Assim, em nossa opinião, inexiste uma prestação de referência dominante.5
Como se nota, a finalidade contratual envolvida no contrato built to suit extrapola os limites legais da locação ou da empreitada. Segundo Álvaro Villaça de Azevedo,6 o elemento típico, quando somado com outro elemento típico, ou mesmo atípico, desnatura-se, compondo-se esse conjunto de elementos um novo contrato, uno e complexo, com todas as suas obrigações, formando algo individual e indivisível. Assim, o contrato built to suit, apesar da previsão do artigo 54-A da Lei do Inquilinato, é contrato atípico misto, tal como defende a doutrina7 e a jurisprudência.8
A classificação da atipicidade não é uma questão meramente acadêmica, mas imprescindível para a compreensão da disciplina jurídica do contrato. A função do tipo contratual é justamente estabelecer o regime jurídico a ser aplicado. Quando os contratantes se obrigam a realizar prestações de um contrato inegavelmente típico, o regime jurídico aplicável é aquele estabelecido na lei. Quando as partes, a seu turno, combinam tipos contratuais distintos, atraindo a classificação da atipicidade, não haverá regime jurídico legal a ser aplicado imediatamente, uma vez que não compete ao intérprete simplesmente somar a disciplina jurídica de prestações diversas.
Disciplina jurídica dos contratos atípicos
Ora, a disciplina jurídica dos contratos atípicos é distinta. Maria Helena Brito9 assevera que, nos contratos atípicos, a hierarquia das fontes aplicáveis seria: (i) antes de mais nada, as regras fixadas pelos contraentes, desde que lícitas; (ii) em segundo lugar, as normas e princípios fixados na lei para categorias contratuais dentro das quais o contrato se inclua; (iii) se tal não bastar, as normas e os princípios estabelecidos na lei para a generalidade dos contratos e, em geral, para os negócios jurídicos e obrigações, (iv) ao final, só depois de esgotadas essas possibilidades se deve atender às normas reguladoras do tipo ou dos tipos contratuais com que o contrato apresente mais afinidades, aplicando-se, por analogia, as disposições não excepcionais desse ou desses tipos contratuais.
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos,10 a importância da estipulação contratual é inversa nos contratos típicos e atípicos. Nos contratos típicos, a declaração negocial serve para completar ou para alterar o modelo regulativo típico; nos atípicos, serve para constituir o próprio modelo regulativo. Nesse sentido, nos contratos típicos, as cláusulas contratuais têm papel relativamente secundário na formação do conteúdo contratual, enquanto nos contratos atípicos a estipulação contratual é o próprio modelo regulativo e, portanto, tem papel primordial. Essa hierarquia de fontes jurídicas dos contratos atípicos é acompanhada pelo recente Código Civil Argentino.11
Assim, considerando a atipicidade do contrato built to suit, a principal e mais relevante fonte jurídica é a própria estipulação contratual. Atente-se que até mesmo o artigo 54-A, da Lei 8.245/1991 assevera que prevalecem, nesse modelo contratual, “as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei”.
Excepcionalidade da revisão contratual
Considerando a atipicidade e o caráter empresarial do contrato, evidentemente a revisão é medida excepcional, devendo a alocação de riscos definida pelas partes ser respeitada, tal como determina o artigo 421-A, II e III, dó Código Civil.12 É verdade que o artigo 54-A, parágrafo 1º da Lei do Inquilinato permite aos contratantes expressamente renunciarem ao procedimento da ação revisional dos aluguéis. Contudo, tal renúncia não afasta a possibilidade de os contratantes suscitarem a revisão por outros fundamentos, tal como a onerosidade excessiva.13 Além disso, contratos firmados antes da Lei 12.744/2012 normalmente não dispunham expressamente de cláusula de renúncia à ação revisional, até porque, antes da referida Lei, inegável que os procedimentos especiais da Lei do Inquilinato eram inaplicáveis a esse modelo contratual atípico, que sequer possuía previsão legal.
Assim, vez ou outra são apreciadas demandas cujo intuito é a revisão das prestações do contrato built to suit. Não obstante adequada interpretação que tem sido conferida pelos tribunais, alguns julgados têm admitido a revisão do contrato, reduzindo a remuneração mensal inicialmente acordada pelos contratantes. Tais decisões normalmente são marcadas pela tentativa de o intérprete separar as prestações da empreitada e da locação, embora elas estejam combinadas num contrato único e indivisível.
Built to suit no STJ
Em julgado de 2023 (REsp n. 2.042.594/SP),14 após divergência iniciada pela Min. Nancy Andrighi, foi acolhida pela maioria a possibilidade de “fatiamento” das prestações que compõem o built to suit, permitindo a interpretação pormenorizada da empreitada e da locação, de modo que a remuneração mensal pudesse ser reduzida. O voto-vencido do Min. Villas Bôas Cueva, a seu turno, corretamente destacou a “impossibilidade de individualização da parcela destinada a remunerar exclusivamente o uso do imóvel” (e-STJ fl. 1.342) e negou a possibilidade de revisão do contrato. Mais recentemente, em agosto de 2024, foi julgado Agravo Interno em Embargos de Divergência, que manteve a decisão por ausência de demonstração de divergência atual (AgInt nos EREsp n. 2.042.594/SP).15
Essas breves linhas têm por intuito advertir a necessidade de a jurisprudência acatar a atipicidade e a autonomia privada dos contratos atípicos, de modo a conferi-los adequada interpretação. Como bem ressaltado,16 é inegável a tendência, por parte dos intérpretes e, sobretudo, da jurisprudência, procurar reconduzir qualquer contrato que perante eles se apresente aos esquemas de um tipo legal.17 Na realidade, reconhecendo a licitude de as partes firmarem contratos atípicos, deveria o intérprete prestigiar a sua principal fonte regulativa: a própria estipulação contratual.
Até porque, segundo Menezes Cordeiro,18 “um contrato não é um puzzle que possa ser composto pela adjunção de peças soltas, provenientes de vários tipos legais. A realidade é um todo, representando um continuum no qual só por razões de análise é possível fazer cortes”.
Alexandre Junqueira Gomide
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP.
Como citar: GOMIDE, Alexandre Junqueira. Atipicidade, disciplina jurídica e excepcionalidade da revisão do contrato built to suit. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 127, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire126>. Acesso em DD.MM.
LEONARDO, Rodrigo Xavier. O contrato built to suit. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, t. IV, p. 421.
Lei 8.245/1991. Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.
§ 1o Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
§ 2o Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.
Nesse sentido: BENEMOND, Fernanda Henneberg. Contratos built to suit. Coimbra: Almedina, 2013, p. 94.
ZANETTI, Cristiano de Sousa. Build to suit – Qualificação e consequências. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; e ALMEIDA PRADO, Maurício (org.). Construção civil e direito. São Paulo: Lex Magister, 2011. p. 113.
Como bem destacou Cristiano de Souza Zanetti[1], no built to suit a construção não é uma prestação de segunda importância. Muito ao contrário, sua devida execução é imprescindível para que seja atingido o objetivo perseguido pelas partes. ZANETTI, Cristiano de Sousa. Build to suit – Qualificação e consequências. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; e ALMEIDA PRADO, Maurício (org.). Construção civil e direito. São Paulo: Lex Magister, 2011. p. 114.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Contrato atípico misto e indivisibilidade de suas prestações. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 89, v. 773, p. 124.
Nesse sentido, cite-se, especialmente LEONARDO, Rodrigo Xavier. O contrato built to suit. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de direito empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, t. IV, p. 429 e FIGUEIREDO, Luiz Augusto Haddad. Built to suit. Revista de Direito Imobiliário. São Paulo, ano 35, n. 72, jan.-jun. 2012, p. 173; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 378; GASPARETTO, Rodrigo Ruete. Contratos built to suit – Um estudo da natureza, conceito e aplicabilidade dos contratos de locação atípicos no direito brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2009. p. 59 e GOMIDE, Alexandre Junqueira. Contratos built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
No TJSP, cite-se Apelação Cível nº 992.08.037348-7, Apelação Cível 1121329-94.2016.8.26.0100 e Apelação Cível 1056478-46.2016.8.26.0100. No TJMG, cite-se Apelação Cível nº 1.0000.22.005269-0/001 e Apelação Cível 1.0702.11.051869-4/007.
BRITO, Maria Helena. O contrato de concessão comercial: descrição, qualificação e regime jurídico de um contrato socialmente típico. Coimbra: Almedina, 1990. p. 218-220.
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 380. No mesmo sentido, vide MONTEIRO, António Pinto. Direito comercial: contratos de distribuição comercial. Coimbra: Almedina, 2002. p. 68 e ss.
Articulo 970 - Contratos nominados e innominados. Los contratos son nominados e innominados según que la ley los regule especialmente o no. Los contratos innominados están regidos, en el siguiente orden, por: a) la voluntad de las partes; b) las normas generales sobre contratos y obligaciones; c) los usos y prácticas del lugar de celebración; d) las disposiciones correspondientes a los contratos nominados afines que son compatibles y se adecuan a su finalidad.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (…)
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Nesse sentido, cite-se RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Rejeição de reformas e revisão de contrato built to suit. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-abr-24/direito-comparado-rejeicao-reformas-revisao-contrato-built-to-suit/. Acesso em 23.05.2024.
REsp n. 2.042.594/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 28/9/2023.
AgInt nos EREsp n. 2.042.594/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Corte Especial, julgado em 21/8/2024, DJe de 23/8/2024.
BRITO, Maria Helena. O contrato de concessão comercial: descrição, qualificação e regime jurídico de um contrato socialmente típico. Coimbra: Almedina, 1990. p. 156.
Essa crítica não passou incólume no direito civil italiano, tal como é possível conferir em GALLO, Paolo. Trattato di Diritto Civile: Il contrato, 2017. p. 153.
MENZES CORDEIRO, António. Código Civil Comentado. v. II (artigos 397º a 873º). Coimbra: Almedina, 2.021. p. 106.