# 132. O valor da obrigação principal limita a cláusula penal moratória?
Sentido e alcance do artigo 412 do Código Civil
A frequência com que a cláusula penal está presente tanto em colunas da AGIRE (#41, #65, #73, #76) quanto em contratos revela, a um só tempo, a miríade de discussões e controvérsias que o instituto suscita bem como a sua inquestionável relevância prática como instrumento de tutela imediata do interesse do credor diante do inadimplemento. O tema interessa a todos: à doutrina, a quem compete identificar o regime jurídico da cláusula penal, coerente e conforme ao sistema em que se insere; aos advogados, a quem cabe redigir cláusulas penais válidas e eficazes, aptas a tutelar adequadamente os interesses dos seus clientes; e aos juízes e árbitros, que têm a sensível missão de controlar a validade e a eficácia da cláusula penal, nos estritos limites da lei e do contrato. A coluna de hoje convida a leitora e o leitor, qualquer que seja o seu papel diante da cláusula penal, a refletir sobre aspecto que, pela primeira vez, entra Em foco na AGIRE: a aplicação da limitação constante do artigo 412 do Código Civil à cláusula penal moratória.
Sentido do artigo 412 do Código Civil: qual o valor da obrigação principal?
Nos termos do artigo 412 do Código Civil
O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.
O dispositivo suscita, de imediato, uma indagação: qual é valor da obrigação principal?
Costuma-se equiparar – não sem controvérsia – o valor da obrigação principal ao valor nominal da prestação.
Em algumas situações, não é difícil identificar referido montante, como na hipótese em que se estabelece cláusula penal para a violação da obrigação de transferir o imóvel em contratos de compra e venda mediante o pagamento de soma em dinheiro. Em outras, todavia, a tarefa pode ser bastante desafiadora, sobretudo quando se tratar de obrigação à qual não se conferiu preço; pense-se, por exemplo, em obrigações de confidencialidade ou de exclusividade, ou então na obrigação atribuída ao comprador de informar a operação aos investidores da sociedade.
Há ainda casos em que, conquanto seja possível individualizar o preço da obrigação garantida, trata-se de obrigação acessória com tamanha relevância no contexto do contrato que seu inadimplemento causa grave disrupção no programa negocial. Nesses casos, levanta-se a pergunta: deve-se tomar como parâmetro para a aplicação do artigo 412 o valor da obrigação acessória garantida ou, dada a sua importância para a execução da própria obrigação principal, há de se considerar o valor nominal da prestação principal?
Embora a análise estrutural, dirigida a verificar se a cláusula penal garante a execução da obrigação principal ou de outra obrigação contratualmente ajustada, seja o ponto de partida para identificar qual o valor a ser tomado como parâmetro para a aplicação do limite constante do artigo 412, ela não basta à conclusão definitiva. Considerando a contemporânea concepção da relação obrigacional, entendida como complexa e instrumentalizada à consecução do resultado útil programado, impõe-se também analisar a função que a obrigação garantida assume na execução do programa contratual. Essa parece ser a chave de leitura a guiar a identificação do limite imposto pelo artigo 412.
Alcance do artigo 412 do Código Civil: aplica-se às cláusulas penais moratórias?
É indisputável que o artigo 412 se aplica à cláusula penal compensatória.1 Sob essa rubrica, entende-se a cláusula penal que incide em substituição ao cumprimento específico da prestação, assumindo, em regra, a função de pré-fixar as perdas e danos sofridas pelo credor com o inadimplemento.2 Há, contudo, alguma controvérsia no que tange à sua aplicação às cláusulas penais moratórias,3 assim entendidas aquelas que incidem ao lado do cumprimento específico da obrigação e cuja função é, no mais das vezes, compelir o devedor ao cumprimento da obrigação.4 De todo modo, ainda que se admita a incidência do dispositivo às moratórias,5 o limite haveria de ser aplicado sempre ao valor cominado na cláusula penal em si, e não à soma das penalidades que se acumulam em razão do prolongamento da mora, na hipótese de a cláusula penal ter aplicação periódica. Vale dizer: é o valor estampado na cláusula penal que não pode ultrapassar o valor da obrigação principal, não já a soma das penalidades que se avolumam em razão da recalcitrância do devedor.6
A redação do artigo 412 corrobora referido entendimento. Ao estabelecer que “[o] valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal” (grifou-se), revela-se que o limite imposto atine ao quanto fixado na própria cláusula penal, e não ao eventual somatório dos montantes decorrentes da aplicação periódica da penalidade.
Com efeito, se a penalidade acaba superando o valor da obrigação principal em razão da incidência periódica da cláusula penal provocada pela mora prolongada do devedor, a causa de o valor ter atingido tamanho vulto é a inércia do devedor em cumprir a prestação que lhe incumbe, e não a exorbitância do valor da cláusula penal em si. O expressivo valor da multa não resulta, portanto, de excesso dos próprios termos da pactuação, mas da conduta morosa do devedor.
Em verdade, é mesmo inerente à cláusula penal moratória de incidência periódica o aumento progressivo da multa total vis a vis do prolongamento do atraso, como constata Antunes Varela:
“Não há, aliás, nenhuma anomalia sequer no facto de a sanção prevista na cláusula aumentar à medida que se dilata o período da mora, porque essa é a tendência natural da indemnização correspondente à mora: os danos moratórios aumentam à medida que se prolonga o período do retardamento culposo da prestação devida.”7
Aliás, a função coercitiva da cláusula penal moratória seria severamente comprometida se se entendesse que o somatório das multas por todo o período da mora não pudesse ultrapassar o valor da obrigação principal. A recalcitrância do devedor converter-se-ia em benefício a seu favor, já que, ultrapassado o momento a partir do qual a soma das diversas parcelas da multa superasse o valor da obrigação principal, lhe seria conferido um “salvo-conduto moratório”, eximindo-o da penalidade pelo atraso dali em diante. Certamente essa não foi a finalidade almejada pelo legislador ao positivar o artigo 412.
O Superior Tribunal de Justiça, em diversas oportunidades, já aplicou referida lógica à análise do valor das astreintes, que, conquanto encerre instituto diverso e inconfundível com a cláusula penal moratória, dela se aproxima funcionalmente, no sentido de buscar concitar o devedor a executar a prestação devida. Em decisão proferida neste mês de outubro de 2024 no âmbito do REsp n. 2.097.457/RJ, a Terceira Turma consignou:
“(...) a existência de exorbitância da multa cominatória por descumprimento de decisão judicial não pode ser direcionada apenas à comparação entre a quantia total da penalidade e o valor da obrigação principal, devendo ser analisado o valor estabelecido diariamente como multa à parte recalcitrante. Ou seja, deve-se considerar o quantum da multa arbitrado no momento da sua fixação, em vez de comparar o seu total alcançado com a integralidade da obrigação principal, tendo em vista que este critério prestigiaria a conduta de recalcitrância do devedor em cumprir a decisão judicial”.8
De todo modo, ainda que o valor da cominação imposta na cláusula penal moratória esteja em consonância com disposto no artigo 412, a multa pode vir a ser reduzida com base no artigo 413 do Código Civil,9 presentes os seus requisitos. Há, portanto, um duplo filtro legislativo a ser aplicado ao montante estampado na cláusula penal, que visa a resguardar uma certa proporcionalidade entre a cláusula penal e as características do negócio no qual se insere: o valor da obrigação principal (art. 412, CC) e a natureza e a finalidade do negócio (art. 413, CC). Nenhum deles, contudo, se volta a premiar a mora renitente do devedor.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. O valor da obrigação principal limita a cláusula penal moratória? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 132, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire132>. Acesso em DD.MM.AAAA.
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 754.
Sobre a distinção funcional entre cláusula penal compensatória e moratória, confira-se: “No que concerne à função desempenhada, como antes observado, pode-se afirmar que, usualmente, a cláusula penal moratória é estipulada com função coercitiva, enquanto a cláusula penal compensatória desempenha função de pré-liquidação das perdas e danos, embora, para parte da doutrina, ‘a associação não possa ser feita de maneira definitiva’” (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 355).
CASTRO NEVES, José Roberto de. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 552.
“Em face dessa multifuncionalidade, é evidente que uma cláusula penal compensatória, dotada de função substitutiva – isto é, substituirá o adimplemento da prestação que não ocorreu do modo ajustado no contrato – há de ser considerada de modo diverso do que o seria uma cláusula penal moratória, pois essa é cumulativa ao comprimento da obrigação, servindo, no comum dos casos, para penalizar ou coagir ao cumprimento ao devedor moroso ou aquele que descumpre cláusula especialmente destacadas” (MARTINS-COSTA, Judith; XAVIER, Rafael Branco. A cláusula de Wash-out. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (Coords.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. v. 2. Rio de Janeiro: Processo, 2021, p. 806).
Lembre-se que há limites legais específicos para certas relações contratuais. A cláusula penal moratória não pode ultrapassar, por exemplo, 2% do valor da prestação nas relações de consumo (CDC, art. 52, § 1.º) bem como quando aplicável à taxa condominial (art. 1.336, § 1.º, CC).
Em sentido contrário: SEABRA, André Silva. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 420.
VARELA, João de Matos Antunes. Parecer. Revista da Ordem dos Advogados, a. 45, vol. I, 1985, Lisboa, p. 194.
STJ, 3ª T., REsp n. 2.097.457/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.10.2024. Em agosto de 2023 a Terceira Turma já decidira que “é importante registrar que, no tocante ao valor da penalidade, deve ser considerado o quantum da multa diária no momento da sua fixação, em vez de comparar o seu total alcançado com a integralidade da obrigação principal, tendo em vista que este critério prestigiaria a conduta de recalcitrância do devedor” (STJ, 3ª T., AgInt no AREsp n. 2.337.905/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 28.08.2023). Em outra oportunidade, a mesma Turma afirmou que a “apuração da razoabilidade e da proporcionalidade das astreintes, não é recomendável se utilizar apenas do critério comparativo entre o valor da obrigação principal e a soma total obtida com o descumprimento da medida coercitiva, sendo mais adequado, em regra, o cotejamento ponderado entre o valor diário da multa no momento de sua fixação e a prestação que deve ser adimplida pelo demandado recalcitrante” (STJ, 3ª T., REsp n. 1.840.693/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 26.5.2020). Na mesma direção: STJ, 3ª T., AgInt no AREsp n. 2.395.218/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.02.2024; STJ, 3ª T., AgInt no AREsp n. 1.828.757/PE, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.12.2021; STJ, 3ª T., AgRg no AREsp n. 394.283/SC, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 23.02.2016; STJ, 3ª T., REsp n. 1.475.157/SC, Rel. Mi. Marco Aurélio Bellizze, j. 18.09.2014.
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.