#136. Locações: benfeitorias vs. acessões
por José Roberto Trautwein
Em recente decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no julgamento do Recurso Especial nº 1.931.087-SP, concluiu-se que “a renúncia expressa à indenização por benfeitorias e adaptações realizadas no imóvel não pode ser interpretada extensivamente para a acessão.”
Esse posicionamento produz efeitos em contratos que fazem parte do cotidiano das pessoas envolvidas em uma relação locatícia, especialmente se for considerado que a Lei nº 8.245/1991 se destina, em síntese, a incentivar construções visando ampliar a disponibilidade de imóveis para moradia e/ou para o desenvolvimento da atividade empresarial.
Daí a necessidade de se compreender os institutos da acessão e benfeitoria, a fim de que haja conhecimento das consequências das cláusulas estipuladas nos contratos de locação sobre o assunto e que se possa delimitar adequadamente os riscos, evitando eventuais surpresas com o reconhecimento ou a perda do direito de retenção e de indenização por construções e benfeitorias realizadas no imóvel locado.
Acessão vs. benfeitoria
A aquisição de propriedade por acessão tem fundamento no princípio de que o acessório acompanha o principal. A construção segue o solo, gerando uma presunção relativa, ou seja, que admite prova em sentido contrário, de ter sido edificada pelo proprietário.1
A comprovação de que o locador não utilizou seus recursos resulta na incidência do art. 1.255 do Código Civil, que estabelece que “aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito à indenização.”
O parágrafo único do mencionado dispositivo legal assevera que “se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.” É o que se convencionou chamar de “acessão inversa”.
Evidencia-se, assim, ser a boa-fé requisito fundamental para o recebimento da indenização por quem edificou, já que o construtor efetivamente perderá os materiais utilizados na construção, que passará a integrar o patrimônio do proprietário.2
Nas relações locatícias, a boa-fé poderá ser verificada, por exemplo, no cumprimento de cláusula contratual que autoriza o locatário a realizar edificações no imóvel, com a autorização por escrito do locador e conformidade com as normas legais.
A benfeitoria, por sua vez, é definida como “ obras ou despesas feitas na coisa, com o fim de conservá-la, melhorá-la ou embelezá-la”.3 Nela não se incluem os melhoramentos ou acréscimos naturais (art. 97 do Código Civil4).
Classificam-se, nos termos do art. 96 do Código Civil5, em (a) voluptuárias, assim compreendidas as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem; (b) úteis, conceituadas como as que aumentam ou facilitam o uso do bem; e (c) necessárias, que se caracterizam por conservar o bem ou evitar que se deteriore.
Diferentemente das acessões, a Lei de Locações contempla tratamento das benfeitorias e dispõe, em seu artigo 35, que “salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção”. Já o artigo 36 prevê que “as benfeitorias voluptuárias não serão indenizáveis, podendo ser levantadas pelo locatário, finda a locação, desde que sua retirada não afete a estrutura e a substância do imóvel.”
A regra é dispositiva, como se vê do entendimento do Superior Tribunal de Justiça que editou o enunciado da Súmula 335, que afirma: “nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfeitorias e ao direito de retenção.”
As acessões equiparam-se às benfeitorias nas relações locatícias?
A Lei de Locações disciplinou apenas a possibilidade de o inquilino renunciar expressamente ao direito de indenização e de retenção pelas benfeitorias realizadas no imóvel.6 Nada dispõe, como se viu, a propósito das acessões.
Assim, passou-se a questionar se as acessões seriam equiparadas às benfeitorias, aplicando-se o art. 35 da Lei de Locações ou se incidiria o Código Civil. Trata-se de ponto que foi analisado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento mencionado no início do texto, no qual foi consignado expressamente na ementa do julgado:
“(...) 1. O propósito recursal consiste em definir se houve ofensa ao princípio do devido processo legal e se a cláusula de renúncia às benfeitorias constante em contrato de locação pode ser estendida às acessões. (...).”
No acórdão, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça ressaltou a relevância da autonomia privada nos contratos de locação, apontando o art. 35 como uma das hipóteses de sua incidência. Concluiu-se pela licitude da cláusula contratual na qual o locatário renunciou ao direito de indenização por benfeitorias e adaptações. E, ao tratar da existência de nova construção no imóvel, realizou-se a diferenciação entre benfeitoria e acessão, apontando-se a primeira como “um melhoramento realizado em coisa já existente, da qual é, portanto, acessório. Já os bens imóveis por acessão são aqueles que resultam de acréscimos ao solo e pode dar-se por (...) construções.”
Ao final reconheceu-se o direito do locatário ao recebimento de indenização sob o fundamento de que a obra feita no imóvel se caracteriza como acessão, que notadamente não pode receber tratamento idêntico ao da benfeitoria “e, por isso, mostra-se inviável estender a previsão contratual de renúncia à indenização por benfeitoria também à acessão, notadamente porque o art. 114 do CC determina que ‘os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente’.”7
Outro fundamento para o reconhecimento do dever de indenizar residiu na boa-fé do locatário que construiu em imóvel alheio – reconhecida pelas instâncias ordinárias, já que a edificação foi antecedida de autorização do locador.
Questão resolvida?
A despeito da decisão mencionada, ainda subsiste expressiva divergência acerca da possibilidade de se equiparar (ou não) acessão à benfeitoria para fins do art. 35 da Lei de Locações. Com efeito, os julgados mais antigos do Superior Tribunal de Justiça apontam a existência de um entendimento, de certo modo, pacificado de que a acessão se equipara à benfeitoria e assegura o direito de indenização e retenção.
No julgamento do Recurso Especial nº 739-RJ , de 21/08/1990, de relatoria do Ministro Athos Carneiro, a Quarta Turma posicionou-se no sentido de que as “edificações, conquanto acessões industriais, equiparam-se às benfeitorias úteis, admitida a pretensão a retenção.”
No julgamento do Recurso Especial nº 98.191-SP, de 04/12/1997, sob a relatoria do Ministro Waldemar Zveiter, a Terceira Turma fez menção ao julgamento do Recurso Especial nº 739-RJ e equiparou a acessão à benfeitoria. O acórdão afirma que o “ponto nodal da questão reside em reconhecer-se ou não indenização por construção de imóvel em área que veio a ser arrecadada em processo falimentar, tendo-se em conta que tal construção foi efetivada por possuidor de boa-fé. Sobre a tese, o douto Subprocurador-Geral da República, arrimando-se em orientação jurisprudencial e doutrinária acolhida pela Corte, assim se pronuncia (...) ‘De fato, ambas as Colendas Turmas da Seção de Direito Privado desse Superior Tribunal de Justiça vêm decidindo pela ‘inexistência de razão para tratamento diferenciado de acessões e benfeitorias’, no que concerne ao direito de retenção, embora se distingam uma e outra (REsp 27.255/RJ). É que o ‘possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias. As edificações, ou construções, ‘conquanto acessões industriais, ou construções, benfeitorias úteis’ (REsp 739/RJ); quanto a elas, cabe também, indenização ao possuidor de boa-fé (REsp’s 31.708/SP, 59.669/RS)’.”
Por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 565.483-SP, ocorrido em 08/11/2005, sob a relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, a Terceira Turma afirmou que “é possível equiparar as acessões artificiais às benfeitorias necessárias, porquanto podem representar instrumento adequado para a conservação da coisa, evitando que se deteriore.”
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.191.862/PR, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 08/05/2014, afirmou que “assim, embora o art. 34 da Lei Lehmann [Lei nº 6.766/1979] faça menção apenas a benfeitorias e, este relator já tenha se manifestado sobre a distinção entre benfeitorias e acessões quando da análise de artigos do Código Civil de 2002 (REsp n. 1.109.406-SE), parece que o dispositivo tido por violado abarca tanto benfeitorias como acessões.”
No julgamento do Recurso Especial nº 1.643.771/PR, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, ocorrido em 18/06/2019, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, concluiu que “de fato, o art. 34 da Lei 6.766/79 prevê que o direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis levadas a efeito no lote, na hipótese de rescisão contratual por inadimplemento do adquirente, regra essa aplicada também à acessão (art. 1.255 do CC/02).”
Na doutrina, a justificativa para essa equiparação é apresentada pelo Desembargador Sylvio Capanema de Souza, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que sustenta que “a Lei do Inquilinato não se refere, em seu art. 35, às acessões, limitando-se ao campo das benfeitorias. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, entretanto, estendem a regra, para também alcançar as acessões feitas pelo locatário. Nada mais correto, até porque, na prática, não se faz nítida distinção entre acessão e benfeitoria, sendo comum que se aluda a benfeitorias, quando se trata de acessão, ou vice-versa”.8
Em suma, a despeito da decisão proferida no Recurso Especial nº 1.931.087-SP ser um indicativo da posição mais atual da Corte, entende-se que não se está diante de uma efetiva alteração na jurisprudência, de modo a se afastar a equiparação entre benfeitorias e acessões que já vinha sendo adotada pelo STJ. Em especial, a afirmação se justifica porque os Tribunais estaduais têm, de certo modo, como pacificado o entendimento em sentido contrário, inclusive em um julgamento realizado após a publicação do acordão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça.
É o que se verifica, por exemplo, em dois julgamentos recentes. Na Apelação Cível nº 0005556-52.2005.8.24.0005 , julgada em 07/02/2023, a Terceira Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina concluiu-se que “O artigo 35 da Lei n. 8.245/91 prevê a possibilidade de indenização pelas benfeitorias realizadas no imóvel pelo locatário, desde que não haja disposição contratual expressa em sentido contrário. Nesse contexto, apesar da redação do artigo 35 da Lei de Locações não mencionar as acessões, limitando-se ao campo das benfeitorias, tal dispositivo a elas se estende, conforme atual entendimento doutrinário e jurisprudencial’ (AC n. 2013.043636-0, de Joinville, rel. Sebastião César Evangelista, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 12-11-2015; grifou-se).” A Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no julgamento da Apelação Cível nº 1.0000.23.230290-1/001, realizado em 07/02/2024, afirmou que “Acresça-se, ainda que a súmula nº 335 do STJ dispõe que ‘nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfeitorias e ao direito de retenção’. Além disso, é necessário pontuar que, para os fins de indenização em contrato de locação, as benfeitorias devem ser entendidas em sentido amplo, abrangendo também as acessões.”
Em conclusão...
A definição acerca da equiparação (ou não) das acessões às benfeitorias para fins de incidência do art. 35 da Lei de Locações e, consequentemente, da Súmula 335 do Superior Tribunal de Justiça, é imprescindível para que as partes envolvidas na relação locatícia possam estabelecer os riscos a serem assumidos e os investimentos que eventualmente realizarão no imóvel locado à título de acessões, cientes de que será ou não necessária a previsão contratual de que essas importâncias serão restituídas ao final da locação ou mediante a isenção do pagamento parcial ou total dos alugueres por um determinado lapso temporal.
Entende-se inexistirem razões para se equiparar a acessão à benfeitoria, pois o Código Civil as distingue e o recebimento da construção realizada pelo locatário no imóvel do locador poderia levar ao enriquecimento injustificado. Embora haja situações em que a diferença entre benfeitorias e acessões possa ser turva, as provas a serem produzidas em cada caso, especialmente a pericial, terão condições de diferenciá-las e estabelecer o dever de indenizar a partir do que as partes convencionarem, dentro de sua autonomia privada, no contrato de locação.
Diante da acesa controvérsia, recomenda-se cautela aos inquilinos e aos locadores, evitando-se surpresas decorrentes, por exemplo, do não recebimento de expressiva quantia investida, ou de se ter que aguardar permanência do locatário no imóvel até que façam o pagamento de eventuais acessões. Nesse sentido, a indicação precisa no contrato de locação a propósito do tratamento de benfeitorias e de acessões é bem-vinda.
José Roberto Trautwein
Doutor e Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pelo UniBrasil. Professor convidado no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito do Consumidor e Compliance nos Mercados na PUC/PR. Sócio de Dotti Advogados, em Curitiba.
Como citar: TRAUTWEIN, José Roberto. Locações: benfeitorias vs. acessões. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 136, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire136>. Acesso em DD.MM.AA.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 1Como citar: COELHO, Fábio Ulhoa. O princípio da indiferença das vias. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 112, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire112>. Acesso em DD.MM.AA.9ª ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1982 e 183.
VIANA, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Novo Código Civil, volume XVI: dos direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 154.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atualizadora: Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: 2004, p. 437 e 438.
Art. 97. Não se consideram benfeitorias os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor.
Art. 96. As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias.
§ 1 o São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor.
§ 2 o São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem.
§ 3 o São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.
BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 169.
Dispõe o art. 114 do Código Civil: “os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.”
SOUZA. Sylvio Capanema de. Da locação do imóvel urbano: direito e processo. Rio de Janeiro: Revista Forense, 2001, p. 226.