#138. A repercussão jurídica da conduta dos "influenciadores digitais" no mercado de capitais
É inegável que os influenciadores digitais desempenham papel importante para o desenvolvimento do mercado de capitais,1 disseminando informações sobre investimentos financeiros por meio de vídeos e podcasts compartilhados em redes sociais. Em estudo publicado em 2022, a Organização Internacional de Comissão de Valores (“OICV”) apontou o uso do marketing de influência como a principal tendência para anunciar produtos e serviços financeiros.2 Se, por um lado, são atores cuja atuação fomenta a democratização do acesso ao mercado de capitais, expandindo a educação financeira especialmente para jovens investidores; por outro lado, o poder de influência que exercem suscita algumas preocupações. A AGIRE#138 volta seus holofotes para o tema,3 que já se encontra também sob a mira da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).
O que preocupa?
Em pesquisa realizada pela B3,4 foi constatado que é expressivo o percentual de investidores que confessadamente aprenderam a investir com a ajuda de “finfluencers”:
De acordo com a CVM, o principal problema reside na falta de transparência no relacionamento entre os influenciadores digitais e os participantes do mercado. Em outra pesquisa recente, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (“ANBIMA”) destacou que as colaborações entre influenciadores e instituições de mercado – tais como corretoras, bancos e casas de análise – funcionam em dinâmica de benefício mútuo. Dos 515 influenciadores acompanhados pela ANBIMA, 252 têm parcerias comerciais, são sócios ou funcionários de instituições financeiras – contra 122 na edição anterior da pesquisa –, mas suas relações comerciais não são divulgadas de forma clara.5
Outro problema reside na necessidade de monitorar centenas de influenciadores em grupos fechados de certas redes sociais ou a publicação de conteúdos que desaparecem rapidamente ou que podem ser facilmente apagados. Além disso, dependendo das circunstâncias, o conteúdo apresentado pelos “finfluencers” pode chegar mesmo a configurar uma recomendação de investimento, devendo, como tal, sujeitar-se às normas regulatórias em vigor. Em certos casos, pode também gerar situações de conflito de interesses ou até indícios de manipulação de preços, aproveitando-se da capacidade dos influenciadores de efetivamente influenciar as decisões dos investidores por meio da exploração de vieses comportamentais.
Quem é quem: analista de mercado v. “finfluencer”
Analista de valores mobiliários “é a pessoa natural ou jurídica que, em caráter profissional, elabora relatórios de análise destinados à publicação, divulgação ou distribuição a terceiros, ainda que restrita a clientes” (art. 1º, §1º, da ICVM n.º 598). Assim, somente quem atua em caráter profissional é que necessita de prévio credenciamento, na forma da ICVM n.º 598. Segundo o Ofício-Circular n.º 13/2020/CVM/SIN, além da habitualidade, “ajudam a caracterizar o serviço profissional quaisquer benefícios, remunerações ou vantagens que se obtenham, de forma recorrente, na oferta dessas recomendações, envolva ou não diretamente numerários, como, por exemplo, a cobrança de taxas de assinatura ou adesão, mensalidades ou anuidades, receitas indiretas recebidas em função dos acessos de terceiros, ou quaisquer outras, que assim, podem atrair a competência da CVM e demarcar esse caráter profissional da atividade”.6
Postagens em redes sociais que contenham opiniões sobre valores mobiliários, desde que não evidenciem o exercício desse ofício de forma profissional, não exigem prévio credenciamento como analista. Apesar disso, a CVM alerta que o uso de expressões “não se trata de uma recomendação de investimento” ou “são opiniões apenas pessoais” serão ponderadas com a linguagem utilizada nas manifestações a respeito dos valores mobiliários. A moderação da linguagem utilizada serve como parâmetro para avaliar o conteúdo da manifestação e se há ou não serviço profissional prestado. Afinal, “mensagens de teor mais assertivo ou apelativo reforçam a configuração de uma tentativa do agente de convencer e induzir os destinatários a segui-lo, de forma que eles ‘possam auxiliar ou influenciar investidores no processo de tomada de decisão de investimento’”.7 Por outro lado, esclarece também a CVM que a “oferta e prestação de serviços educacionais que tenham por objetivo ensinar conceitos sobre operações no mercado de valores mobiliários sem que se trate de recomendações de investimento não estão sob regulação da CVM”.8
Joio e trigo
Em termos práticos, dentro da rubrica dos “finfluencers”, é um desafio distinguir a conduta legítima, que facilita o acesso ao mercado de capitais, de uma infração real às normas de mercado. Tal distinção dependerá de uma análise minuciosa das circunstâncias específicas do caso concreto — por exemplo, se a recomendação apresentada difere da atuação efetiva do influenciador ou “se este atua como contraparte de seu público, especialmente quando a liquidez do ativo ou outros fatores determinam sua capacidade efetiva de influenciar as cotações”.9 A mensagem para os reguladores do mercado de capitais é a seguinte: não tentem arrancar desde logo o joio, porque, ao fazê-lo, podem dar cabo do trigo, que é importante para o desenvolvimento do mercado de capitais, mas, após a colheita, saber distinguir e separar bem o joio do trigo é fundamental.
“Quando você não paga é porque você é o produto"
O ditado cai como uma luva em casos recentes, como o da “GameStop”10 e outros golpes envolvendo investimentos em criptomoedas, que acenderam o alerta sobre como o mundo virtual pode influenciar o funcionamento regular do mercado.11 Embora os influenciadores digitais não sejam especificamente regulamentados, a sua atuação pode constituir infração administrativa, nos termos da Resolução CVM n.º 62/2022, que revogou a Instrução CVM n.° 8/79, e estar sujeita às sanções penais previstas no artigo 27-C da Lei n.° 6.385/76,12 caso tenha o objetivo de criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, viabilizar práticas iníquas, realizar operações fraudulentas ou manipular preços, com o intuito de obter vantagem para si ou para terceiros.
Normas de conduta
Em setembro de 2023, a BSM Supervisão de Mercados emitiu uma nota de orientação, com o escopo de estabelecer “as melhores práticas a serem adotados pelos participantes dos mercados organizados administrados da B3 na relação contratual estabelecida com influenciadores”.13 Já a ANBIMA criou o regramento n.º 10, de 13.10.2023, cujo objetivo foi formular regra expressa sobre a obrigatoriedade de os “finfluencers” deixarem claro quando a dica de investimento se trata de publicidade de algum produto financeiro, também tornando obrigação o ato de o influenciador digital exercer as ações de publicidade com boa-fé, transparência e diligência, empregando o cuidado que toda pessoa prudente e diligente costuma dispensar à administração de seus próprios negócios.
A consulta pública conceitual da CVM
Em dezembro de 2022, a CVM incluiu em seu Plano Bienal de Supervisão Baseada em Risco 2023-2024 uma supervisão temática sobre influenciadores digitais.14 Assim, desde 2022, o tema está presente na agenda regulatória da CVM, inicialmente por meio da elaboração de um estudo de Análise de Impacto Regulatório (“AIR”), realizado pela Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Riscos (“ASA”) e divulgado em abril de 2023.15
Além disso, mais recentemente, para ouvir o mercado a respeito, a CVM realizou uma consulta pública sobre a regulação dessa atividade, que ficou aberta até março de 2024, mas não nos moldes habituais. O Edital de Consulta Pública SDM n.º 04/23 foi no formato de uma consulta pública conceitual, que não estava vinculada à elaboração de normas. Na esteira dessas providências, a CVM buscou colher as impressões do mercado sobre três eixos temáticos.
Contratação e transparência: “regras de conduta a serem observadas quando do estabelecimento de parcerias de agentes diversos do mercado de valores mobiliários, como emissores, distribuidores, gestores, analistas, intermediários, com influenciadores digitais para promoção de seus serviços ou de valores mobiliários específicos por eles emitidos, distribuídos, analisados ou intermediados”.
Promoção e divulgação de conteúdos por meio de plataformas de mídia e redes sociais: “possíveis atualizações regulatórias para modernizar as normas existentes no tocante às atividades reguladas pela CVM, isto é, as alterações regulatórias apropriadas para atualizar as cautelas necessárias quando da divulgação de informações e realização de promoção por meio de plataformas de mídias e redes sociais”.
Influenciadores atuando como analista de valores mobiliários: “tratamento regulatório adequado à atuação de influenciadores digitais ao se manifestarem sobre valores mobiliários específicos, quando tais profissionais tenham, ou não, autorização para atuar como analista de valores mobiliários”.
Quais cuidados os “finfluencers” devem ter?
Em linhas gerais, para evitar danos aos investidores, os influenciadores digitais não podem extrapolar o seu papel, exercendo atividades privativas de agentes regulados, como a de realizar indicação ostensiva de rentabilidade histórica de fundo, por exemplo, nem indicar momentos precisos de entrada ou saída de fundos. Também não devem fazer falsas promessas de resultados financeiros ou rentabilidade garantida, nem assegurar ou sugerir isenção de risco para o investidor, tampouco agir em conflito de interesses. O ideal é fazer uso de linguagem clara, serena e moderada, apresentando informações sempre consistentes e verdadeiras, cuidando para nunca induzir o investidor a erro e, tanto quanto possível, deixando claro que suas opiniões e análises não constituem uma recomendação de investimento e incentivando os investidores a conduzir sua própria pesquisa ou a buscar orientação profissional.
Embora possam vir a responder pelos danos causados a investidores, no plano da responsabilidade civil a prova do nexo de causalidade será sempre um desafio. No entanto, presentes os pressupostos da responsabilidade civil, não só poderão vir a responder, como, dependendo das circunstâncias, tal responsabilidade poderá recair também sobre a instituição a que estiverem vinculados.16
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora Associada de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Diretora de arbitragem do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. A repercussão jurídica da conduta dos “finfluencers” no mercado de capitais. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 138, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire138>. Acesso em DD.MM.AA.
A alcunha “finfluencer” remete à atuação desses influenciadores no campo das finanças.
Disponível em: <https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD695.pdf>. Acesso em 1.12.2024.
A convite dos Professores Caio Machado Filho e Fernanda Mitsuya, tratamos do tema no “XV Seminário de Direito Empresarial da PUC-Rio” (fazendo bom uso da nossa “cadeira cativa” na semana de Direito Empresarial), ao lado dos Professores Pablo Renteria e Caitlin Mulholland.
Gráfico disponível em: <https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/20230418-air-influenciadores.pdf>. Acesso em 01.12.2024.
O relatório da Anbima encontra-se no seguinte link: https://www.anbima.com.br/data/files/AE/21/61/48/467298102BCCAE88B82BA2A8/Relatorio-FInFluence-4ed.pdf. Acesso em 01.12.2024. A informação referida no texto consta da página 30.
Ofício-Circular n.º 13/2020/CVM/SIN, item 3.
Ofício-Circular n.º 13/2020/CVM/SIN, item 6.
Ofício-Circular n.º 13/2020/CVM/SIN, item 8.
COSTA, Isac. “Influenciadores financeiros: conselho bom se dá ou se vende?”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-abr-03/influenciadores-financeiros-conselho-bom-se-da-ou-se-vende/>. Acesso em 01.12.2024.
No caso “GameStop”, o movimento planejado de compra em massa, levado a cabo por um por um influenciador, fez as ações dessa sociedade dispararem de US$ 19 para US$ 380 – uma alta de mais de 1.800% –, na máxima registrada pela Bolsa de Nova York.
A BSM Supervisão de Mercados já recebeu denúncias relacionadas a opiniões veiculadas nas mídias sociais, incluindo indicações indevidas de investimentos, disseminação de informações falsas e atuação irregular de influenciadores contratados ou mandatados por participantes do mercado da B3.
Art. 27-C da Lei n.º 6.385/76 (“Manipulação do Mercado): “Art. 27-C. Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros: Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime”.
Disponível em: <https://www.bsmsupervisao.com.br/documents/d/guest/no-bsm-20-2023-influenciadores-digitais>. Acesso em 01.12.2024.
CVM, Plano Bienal SBR, 2023-2024: <https://www.gov.br/cvm/pt-br/acesso-a-informacao-cvm/acoes-e-programas/plano-de-supervisao-baseada-em-risco/2023-2024/Plano%20Bienal%20CVM%20SBR%202023-2024/view>. Acesso em 01.12.2024.
AIR, Influenciadores digitais e o mercado de capitais brasileiro, abril de 2023: Disponível em: <https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/20230418-air-influenciadores.pdf>. Acesso em 01.12.2024.
Sobre a incidência do Código de Defesa do Consumidor e do Código de Autoregulamentação Publicitário na relação influenciador-investidor: LEITE, Ricardo Rocha. “A responsabilidade civil e os influenciadores digitais”. Revista Síntese Direito Civil e Processo Civil, n.º 1, São Paulo: Síntese, jul./1999, pp. 13-17; SOARES, Flavianna Rampazzo; BECKER, Maria Alice. “Influenciadores digitais e responsabilidade civil”. Revista Síntese Direito Civil e Processo Civil, n.º 151, São Paulo: Síntese, set.-out./2024, pp. 82-88; AZEVEDO, Marina Barbosa; MAGALHÃES, Vanessa de Pádua Rios. “A responsabilidade civil dos influenciadores digitais pelos produtos e serviços divulgados nas redes sociais”. Revista Eletrônica do Ministério Público do Estado do Piauí, ano 1, edção 2, jul.-dez./2021, pp. 112-120; GASPARATTO, Ana Paula Gilio; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; EFING, Antônio Carlos. “Responsabilidade civil dos influenciadores digitais”. Revista Jurídica Cesumar, v. 19, n. 1, jan.-abr./2019, pp. 65-87; SQUEFF, Tatiana Cardoso; BURILLE, Cíntia; RESCHKE, Ana Júlia de Campos Velho. "Desafios à tutela do consumidor: a responsabilidade objetiva e solidária dos influenciadores digitais diante da inobservância do dever jurídico de informação", Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 140, mar./abr., 2022, pp. 313-332.