#139. Notas sobre o âmbito de incidência da cláusula anticorrupção
Por Pedro Guilhardi
Tendo como pano de fundo a controvérsia que eclodiu recentemente entre o Sport Clube Corinthians Paulista (“Corinthians”) e a casa de apostas VaideBet (“VaideBet”), decorrente de contrato de patrocínio firmado entre os envolvidos, pretende-se, sem intenção de discutir a resolução por VaideBet, apresentar percepções a respeito da assim denominada cláusula anticorrupção, que supostamente ensejou a decisão por VaideBet de extinguir o vínculo jurídico com o Corinthians.
Em especial, a discussão focará nos diferentes domínios de incidência de tais pactuações, que podem estabelecer padrões de comportamento a serem observados no estrito cenário do cumprimento do escopo do contrato ou, de maneira mais ampla, impor condutas a serem seguidas no seio de todas as operações e relações mantidas pelo devedor em suas atividades empresariais e sociais.
O tema traz à luz importantes considerações sobre os interesses perseguidos pelos contraentes ao estabelecerem pactos traduzindo deveres laterais, que estão à margem do dever de prestação. Consequentemente, poderão auxiliar o intérprete na determinação da existência, ou não, do interesse útil do credor à prestação, tão relevante para fins de diferenciar a mora do inadimplemento absoluto ensejador do direito resolutivo pelo credor, a teor do artigo 395, parágrafo único do Código Civil.
O objetivo do texto não é discutir o episódio Corinthians vs. VaideBet em concreto, que serve apenas como referência para as presentes notas.
A denúncia
O Corinthians e a VaideBet assinaram, em janeiro de 2024, contrato de patrocínio, em que VaideBet se comprometeu, até o fim do ano de 2026, a investir R$ 370 milhões no Corinthians, maior acordo de patrocínio da história do futebol brasileiro (“Contrato”), segundo se relata. Rede Social Media Design Ltda. (“Rede Social”) participou como intermediadora do Contrato.
Em 20 de maio de 2024, quando o Corinthians já havia recebido mais de R$ 60 milhões em decorrência do Contrato, o "Blog do Juca Kfouri"1 denunciou a existência de suposto “laranja” na intermediação efetuada por Rede Social.
Explica o colunista que, entre os dias 18 e 21 de março de 2024, Rede Social recebeu R$ 1.4 milhão do Corinthians.
Por sua vez, Rede Social, em 25 e 26 de março de 2024, teria realizado Pix nas cifras de R$ 580 mil e R$ 464 mil, respectivamente, a Neoway Soluções Integradoras em Serviços Ltda. (“Neoway”).
Neoway é sociedade que teria como sócia Edna Oliveira dos Santos (“Edna”), a reputada “laranja”, e estaria sediada em um espaço de coworking, mas apenas para fins fiscais, pois Neoway, por seus colaboradores, jamais teria frequentado a sede indicada.
Rede Social, de outro lado, pertenceria a Alex Fernando Cassundé (“Cassundé”), que teria integrado a equipe de comunicação do atual presidente do Corinthians, Augusto Melo, durante a campanha eleitoral realizada em 2023.
Em 7 de junho de 2024, VaideBet resolveu o Contrato, à luz das denúncias veiculadas pela imprensa em geral.
VaideBet, após a decisão de extinguir o Contrato, informou que, “desde o início de abril a marca acompanha e solicita esclarecimentos sobre as suspeitas levantadas, tendo já realizado reuniões, comunicações formais e notificação extrajudicial”, sem nenhuma “resolutividade”.2
Ademais, “avalia que não se pode manter a parceria enquanto pairar sobre o acordo qualquer suspeita em relação a condutas que fujam à conformidade com a ética e [a]os preceitos legais. Só a dúvida, no crivo ético da marca, já é suficiente para determinar a rescisão”.
De outro lado, em sua nota oficial, o Corinthians destacou que a decisão da VaideBet teria sido precipitada, tendo VaideBet se beneficiado da relação de patrocínio para alçar posição de destaque no mercado de casas de aposta, lamentando o ocorrido que, não fossem as circunstâncias investigativas, teria sido rentável a ambos os contraentes.3
Quanto aos fatos imputados ao Corinthians, afirmou que a atuação da empresa intermediadora “é de prática habitual do mercado, (...) e sem a qual não teria sido possível celebrar o maior acordo de patrocínio da história do futebol brasileiro.4
As cláusulas contratuais invocadas e o campo de incidência da obrigação
Segundo o apurado pela imprensa5, VaideBet invoca como violadas pelo Corinthians as cláusulas 12.1 e 12.1 do Contrato, aqui transcritas parcialmente, na parte que interessa às presentes notas, com especial destaque aos grifos:
“12.1 As partes declaram neste ato que tem conhecimento da legislação brasileira anticorrupção, de prevenção à lavagem de dinheiro e antitruste, incluindo, mas não se limitando, às leis nº 12.846, de 1º de agosto de 2012 (‘Lei Anticorrupção’), decreto federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (‘Lei de Improbidade Administrativa’), lei nº 12.529 de 30 de novembro de 2011 (‘Lei do CADE’), lei nº 12.813 de 16 de maio de 2013 (‘Lei de Conflitos de Interesses’), em conjunto denominadas as ‘Regras Anticorrupção Brasileiras’, e suas respectivas regulamentações, conforme em vigor nesta data, obrigando-se a cumprir integralmente com seus dispositivos, mediante a abstenção de qualquer atividade que constitua ou possa constituir a violação das Regras Anticorrupção.
12.2 (...). Na execução deste contrato, as partes declaram e garantem que nenhum de seus conselheiros, diretores, empregados, agentes, representantes, ou quaisquer outros terceiros irão dar, oferecer, prometer, pagar, ou autorizar o pagamento de, direta ou indiretamente, dinheiro ou qualquer coisa de valor a (...) consultores, representantes, parceiros, ou quaisquer terceiros, com a finalidade de influenciar (...)”. (negritou-se).
Focando, por ora, na cláusula 12.2, nota-se que partes se comprometem, isto é, garantem, o cumprimento do pactuado não só por si, mas também por terceiros que a elas se relacionem (conselheiros, diretores etc.). Tem-se a promessa, pelo devedor, de realização de prestação por terceiro, sem estar autorizado a agir como seu representante, ao que incide, como regra legal, o artigo 439 do Código Civil.6
Não há vinculação do terceiro, estranho à relação, mas o promitente obriga-se a responder por que esse terceiro efetue a prestação. Há obrigação do devedor de um fato próprio: conseguir o fazer do terceiro, pois prometeu e garantiu a realização da prestação.7
Sob outro olhar, as condutas vedadas devem ter relação com a “execução deste contrato”, isto é, não abrangem outros negócios jurídicos ou relações mantidas pelo Corinthians.
Diferente é a hipótese contemplada pela cláusula 12.1 do Contrato, que não limita os comportamentos proibidos ao domínio do Contrato. Significa que, no seio de toda a sua operação e atuação, nas mais diferentes frentes, há o dever do contraente de abster-se de qualquer atividade que constitua ou possa constituir a violação das Regras Anticorrupção, tal como definidas no Contrato. Resulta que, se os fatos imputados ao Corinthians tivessem ocorrido na esfera de outro negócio jurídico envolvendo o clube, que não o Contrato, haveria, ainda assim e em tese, violação específica da obrigação contraída.
Mas, note-se. Diferentemente do mais restrito campo de aplicação da cláusula 12.2, no caso da regra constante da cláusula 12.1, apenas Corinthians e VaideBet figuram como destinatários da vinculação, não assumindo a obrigação de fazer com que terceiro atue conforme a conduta prevista no Contrato.
Avaliar o antagonismo entre as diferentes tipologias (de incidência ampla ou de incidência restrita ao contrato) pode auxiliar no trabalho de averiguação do interesse perseguido pelos contraentes nessas modalidades contratuais. Explica-se.
Ao instituir que as partes não podem agir em desconformidade com condutas de probidade, especificamente das Regras Anticorrupção definidas contratualmente, no seio de todas as suas atuações, sem vinculação de tal dever ao ambiente e ao escopo do Contrato, tem-se contratação que busca estabelecer certo perfil mínimo de probidade da contraparte contratual.
Em tal cenário, o dever lateral de conduta desnuda interesse do credor de que, da contratação, não lhe resulte danos reputacionais por ter se vinculado a pessoas, instituições e sociedades sem probidade e desatentas às exigências éticas, morais, sociais etc. Assim, tanto quanto interessa os termos comerciais dos negócios, cada vez mais importa a pessoa com quem se contrata. Isso se explica porque a conduta da contraparte contratual pode aniquilar, a reboque, a reputação do credor e parceiro contratual.
Para ilustrar a proposição, cabe fazer brevíssima menção às moral clauses, também denominadas no direito norte-americano de morality clauses, ou good conduct clauses.
São pactos que, como o nome sugere, impõem padrões comportamentais por grandes companhias para proteger a imagem de sua marca de sofrer dano reputacional em caso de má-conduta pelo “embaixador da marca”, garantindo-se o direito de resolver o contrato nas hipóteses de referida pessoa comportar-se de maneira a atingir negativamente sua imagem e, consequentemente, a reputação do titular da marca ou do produto.8
Conquanto tenha surgido, nos Estados Unidos da América, no ano de 1920, na indústria de Holywood, é no contrato do jogador de beisebol Babe Ruth, do New York Yankees, em 1922, que o campo de aplicação da cláusula teve maior debate. A moral clause em questão exigia que o atleta se abstivesse de ingerir bebidas alcoólicas, bem assim que fosse dormir até 1 hora da manhã durante a temporada, isto é, impôs restrições comportamentais ao jogador para além de suas obrigações no estádio9, ao que se denominou obrigações off-field, isto é, fora de campo.
Tais pactuações de incidência ampla têm por pressuposto que os deveres do ente que expande a marca ou que representam a instituição vão além do ambiente de trabalho (no caso de atletas profissionais, das quadras, das pistas; no caso dos influenciadores digitais, suas redes sociais; etc., conforme o caso), ditando a maneira como a pessoa deve portar-se em todos os momentos.
Ao estabelecer, portanto, que as moral clauses regulam o comportamento off-field, tem-se larga similaridade com os interesses que permeiam as contratações que exigem das partes, como no caso da cláusula 12.1 do Contrato, que, entre outras condutas, não corrompam no amplo espaço de suas atuações, ainda que sem relação alguma com o contrato em que inserido o dever lateral.
Conclusão
O episódio envolvendo Corinthians e VaideBet serve ao propósito de discutir alguns elementos da cláusula denominada anticorrupção, alegadamente violada pelo Corinthians, consoante suscitado por VaideBet.
Trata-se de cláusula de conduta, impondo dever lateral aos contraentes, apenas remotamente relacionadas ao interesse e correspectivo dever de prestação.
Em suas estipulações, cláusulas de conduta podem fixar o escopo de sua incidência, significando o ambiente em que a atuação do devedor conforme o contrato é exigível. Podem expandir o dever de conduta a todas as relações estabelecidas pelo devedor ou limitá-lo ao objeto do contrato.
O antagonismo pode auxiliar no exercício de averiguação do interesse perseguido pelos contraentes nessas modalidades contratuais e, por conseguinte, da própria existência de violação apta à resolução contratual.
A ampliação do dever de conduta para toda e qualquer relação envolvendo o devedor pode denotar que o interesse perseguido pelo credor é de proteger-se de contratações com pessoas ou instituições que, não atentas às exigências éticas e morais de condução de negócios, possam ter sua imagem maculada e, por associação, afetar significativamente a reputação do credor. É dado enfoque, pois, à pessoa do devedor.
Por outro lado, ao limitar deveres de conduta ao estrito cumprimento do contrato, o interesse passa a ter por enfoque não mais a pessoa do devedor em si, mas os prejuízos que, da conduta do devedor, possam advir ao credor diretamente do ato em desconformidade com o pacto. É o caso de sobrepreço decorrente de repasse indevido de parcela de preço ou do valor de intermediação a “laranjas”.
Pedro Guilhardi
Doutor e Mestre em Direito Comercial pela PUC-SP. LL.M em Comparative and International Dispute Resolution pela Queen Mary, University of London. Advogado, atua como árbitro.
Como citar: GUILHARDI, Pedro. Notas sobre o âmbito de incidência da cláusula anticorrupção a partir da controvérsia Corinthians vs. VaideBet. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 139, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire139>. Acesso em DD.MM.AAAA.
Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/juca-kfouri/2024/05/20/provado-tem-laranja-na-intermediacao-corinthiansvaidebet.htm. Acesso em: 17 jun. 2024.
Disponível em: https://www.lance.com.br/corinthians/vai-de-bet-rescinde-contrato-de-patrocinio-com-o-corinthians.html. Acesso em: 17 jun. 2024.
Disponível em: https://oantagonista.com.br/esportes/entenda-caso-vai-de-bet-no-corinthians/. Acesso em: 17 jun. 2024.
Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/corinthians/em-nota-oficial-corinthians-explica-comissao-de-acordo-com-a-vaidebet/. Acesso em: 17 jun. 2024.
Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2024/06/08/tem-multa-qual-o-valor-entenda-o-que-diz-contrato-assinado-entre-corinthians-e-vaidebet.ghtml. Acesso em: 11 jun. 2024.
Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 12. ed. Coimbra: Almedina, 2022, p. 695.
BHATTACHARYA, Tanushree. Morality clauses. a corporate’s boon or athlete’s bane? In: Global Sports Policy Review. v. 1. n. 2, 2021, p. 76-83, s.p.. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/Welcome?message=Please%20log%20in&url=%2FHOL%2FPage%3Fhandle%3Dhein.journals%2Fgblspr1%26collection%3Djournals%26id%3D228%26startid%3D228%26endid%3D235. Acesso em: 3 fev. 2023.
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