#13. Cessão de crédito: citação supre a ausência de notificação do devedor
A cessão de crédito opera-se por acordo entre o credor originário (cedente) e o novo credor (cessionário) e, em regra, não exige a anuência do devedor (art. 286 CC1).
A desnecessidade de participação do devedor não significa que ele não deva ser comunicado sobre a cessão. Segundo o artigo 290 CC2, a cessão não produzirá efeitos em relação a ele antes de notificada. Em especial, a ciência do devedor é relevante para que ele conheça a identidade do credor, a quem deve dirigir o pagamento e obter a sua liberação. Daí se conclui que a norma legal visa proteger o devedor que, antes de ter ciência da cessão, obterá sua liberação ainda que pague ao credor originário (ex vi art. 292 CC3).
Em outubro de 2021, a Corte Especial do STJ foi chamada a decidir se notificação prevista no artigo 290 CC pode ser suprida pela citação em processo judicial movido pelo cessionário em face do devedor (EAREsp 1125139/PR). O entendimento, majoritário,4 foi afirmativo: a citação é apta a operar a ciência prevista no art. 290 CC, sendo o cessionário parte legítima para cobrança do crédito.
No caso julgado, a cessão de crédito havia se dado sem participação ou comunicação do devedor. A cessionária, munida do instrumento de cessão, iniciou processo judicial de cobrança em face do devedor, que alegou e viu acolhida em primeira e segunda instâncias a ilegitimidade ativa da cessionária, ante o não cumprimento do disposto no artigo 290 do Código Civil.
Notificação e ciência da cessão
Segundo o decidido pela Corte Especial, a citação em processo judicial supre a ausência de notificação do devedor sobre a cessão de crédito. Segundo a Corte, a ratio do artigo 290 CC é garantir que o devedor seja comunicado e tome ciência da cessão. Nos termos do voto da Ministra Relatora Laurita Vaz: “a partir da citação, o devedor toma ciência inequívoca sobre a cessão de crédito e, por conseguinte, a quem deve pagar. Assim, a citação revela-se suficiente para cumprir a exigência de cientificar o devedor da transferência do crédito". A doutrina já se colocava no sentido da decisão do STJ.5
Notificação e eficácia da cessão
A decisão da Corte Especial também aduziu que a ausência de notificação não torna a dívida inexigível, “ressalvada a hipótese em que tenha havido a quitação ao credor originário”. Julgados do STJ, alguns mencionados nos votos da decisão comentada, confirmam a eficácia translativa da cessão ao novo credor ainda quando não comunicada ao devedor.6 Dito de outra forma, a cessão produz seus efeitos inter partes a partir do momento em que pactuada e o cessionário torna-se titular do crédito independentemente da notificação do devedor.
Notificação, citação e defesas do devedor
Embora a decisão comentada não tenha decidido especificamente sobre o tema, a substituição da notificação prévia pela citação não pode prejudicar o devedor, que poderá trazer em defesa todas as matérias que poderia alegar se tivesse sido notificado. Dentre elas, destacam-se as exceções que, no momento da citação (que substituirá a notificação) tinha contra o cedente, de nos termos do art. 294 CC.7
A citação sempre pode substituir a notificação?
O tema é frequentemente debatido, para além dos limites da cessão de crédito.
Relevante âmbito de discussão se dá a propósito da prévia notificação para resolução de contratos imobiliários, em especial nos casos em a lei exige notificação prévia para exercício do direito de resolução do compromisso de compra e venda de imóveis (exemplificativamente, vide Lei 6.766/19798 e DL 745/1969 9). Na jurisprudência do STJ, encontram-se decisões no sentido de que a notificação prévia é imprescindível para exercício do direito à resolução (AgRg no REsp 1092018/TO, 2015), mas também decisões no sentido de ser ela dispensável caso haja termo para vencimento (mora ex re) (AgRg no AREsp 172.693/MT, 2014 e, mais recentemente, AgInt nos EDcl no REsp 1585307/SP, 2020).
Nesta última decisão, o STJ manteve o entendimento do TJSP de que a citação pode substituir a notificação, desde que possibilitada a purgação da mora pelo devedor no prazo da contestação (o que é compatível com a conclusão de que eventual substituição da notificação prévia pela citação não deva prejudicar o devedor). A decisão da Corte paulista faz referência ao Enunciado n. 37 da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Tratando-se de ação de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel, a citação válida do com promissário comprador supre a falta de notificação prévia para fins de constituição em mora. A mora pode ser purgada no prazo da defesa”
Note-se, porém, que nos compromissos de compra e venda, a notificação não se presta apenas para dar ciência do devedor sobre um fato (como se passa no caso da cessão de crédito, objeto do acórdão acima anotado), mas é requisito para o exercício de um direito pelo credor (nomeadamente, para a resolução do contrato pela conversão da mora em inadimplemento absoluto). É o que se denomina, frequentemente, de notificação premonitória.
A coluna se despede do leitor e da leitora com a provocação sobre se e em que medida a distinção de funções impacta a possibilidade de a notificação ser substituída pela citação.
Bônus track: aos amantes do processo civil, a decisão da Corte Especial acima comentada pôs fim a uma saga, iniciada em 2016, para discussão da legitimidade ativa. Naquele ano, o juízo de primeiro grau reconheceu a ilegitimidade do cessionário, o que ensejou recurso ao TRF4. Em segunda instância, a decisão foi mantida, seguindo-se a interposição de Recurso Especial que, inicialmente, não foi admitido. Interposto Agravo em Recurso Especial, em 2018 ele foi conhecido e provido por decisão monocrática, que afastou a necessidade de notificação prévia à cobrança judicial do crédito. Em agravo interno contra a decisão monocrática, a decisão foi reformada, voltando-se a reconhecer a necessidade de prévia notificação. Consta da movimentação processual a oposição de dois embargos de declaração até que, em 2019, foi admitido o processamento de Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial, cujo julgamento em 2021 é objeto dessa coluna.
Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.
Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.
Art. 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação.
Idêntica solução poderia ser obtida pela qualificação do credor primitivo como credor putativo aos olhos do devedor de boa-fé, conforme dispõe o artigo 309 CC
Vencido o Ministro Hermann Benjamin, que não conhecia dos Embargos de Divergência e prolatou voto vencido.
HAICAL, Gustavo. Cessão de crédito: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 77 e 78. A doutrina foi citada no voto-vista da Ministra Nancy Andrighi.
Dentre eles, a título exemplificativo, destaca-se o julgamento do REsp 1401075/RS, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em que foi decidido que “a ausência de notificação quanto à cessão de crédito não tem o condão de liberar o devedor do adimplemento da obrigação ou de impedir o cessionário de praticar os atos necessários à conservação do seu crédito, como o registro do nome do inadimplente nos órgãos de proteção ao crédito.”
Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.
Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor.
§ 1o Para os fins deste artigo o devedor-adquirente será intimado, a requerimento do credor, pelo Oficial do Registro de Imóveis, a satisfazer as prestações vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionados e as custas de intimação.
§ 2o Purgada a mora, convalescerá o contrato.
Art. 1o Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação.
Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora.