#142. Exigibilidade das obrigações e constituição em mora do devedor
A AGIRE desta semana coloca em Foco dois aspectos de tema do direito das obrigações que, embora elementares, afiguram-se de suma importância, tanto para iniciantes quanto para iniciados, tendo em vista os diversos efeitos deles decorrentes e as controvérsias que suscitam: a exigibilidade das obrigações e a constituição em mora do devedor.
Conquanto a mora pressuponha a exigibilidade da obrigação, nem toda obrigação exigível e ainda não adimplida resulta em mora. A constituição em mora depende de outros fatores, dentre os quais a presença (ou não) de termo para cumprimento.1
Obrigações com termo: mora ex re
Termo é o evento futuro e certo que atua no plano da eficácia, cuidando-se de elemento acidental do negócio jurídico.2 Nos contratos, presume-se o termo estabelecido em benefício do devedor (art. 133 do Código Civil),3 pelo que, antes do seu advento, a prestação é inexigível pelo credor – salvo vencimento antecipado da dívida nos casos previstos em lei (art. 333 do Código Civil)4 ou convencionalmente ajustados –, mas exequível pelo devedor.
Justamente por isso, se o credor “demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro” (art. 939, do Código Civil). A regra não se aplica à cobrança extrajudicial, o que resta evidenciado pela dicção do artigo 941, segundo o qual as penas previstas no artigo 939 “não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido”.
De outro lado, com o advento do termo, a prestação positiva e líquida se torna exigível e o devedor é, em regra, constituído automaticamente em mora se não a satisfaz. A mora é, neste caso, ex re, dispensando-se qualquer ato por parte do credor, pois dies interpellat pro hominie (art. 397 do Código Civil).5
Diz-se em regra porque, em certas hipóteses, o advento do termo, por si só, não produz a constituição em mora do devedor. A obrigação até se torna exigível, mas daí não resulta automaticamente a mora. Isso ocorre, por exemplo, quando a dívida é quérable, ou seja, quando o pagamento tem que ser realizado no domicílio do devedor, pelo que o credor fica obrigado a ir ou a mandar alguém recebê-lo. Neste caso, se o devedor, na data ajustada, está pronto para adimplir, mas o credor não providencia, por si ou terceiro, o recebimento da prestação, quem está em mora é ele, credor, não já o devedor, produzindo-se os efeitos da mora do credor previstos no artigo 400 do Código Civil.6
Obrigações sem termo: mora ex persona
Já as obrigações sem termo para cumprimento são imediatamente exigíveis, salvo se sua execução depender do transcurso de certo lapso temporal, conforme se extrai da leitura combinada dos artigos 1347 e 3318 do Código Civil. O próprio legislador, por vezes, estabelece o lapso temporal a ser observado para que a prestação se torne exigível, como ocorre no artigo 592 do Código Civil,9 que fixa prazos para que o mutuante possa exigir a restituição do empréstimo, compatíveis com “a natureza do mútuo acordado, a fim de que se permita ao mutuário usufruir em alguma medida do bem emprestado”.10
A inexigibilidade nas obrigações cuja execução dependa de certo tempo é exatamente igual àquela que se verifica durante a pendência de termo expressamente fixado pelas partes para o adimplemento da prestação: a inexigibilidade é temporária e provisória, uma vez que, com o advento do termo ou o transcurso do lapso temporal compatível com a sua execução, a obrigação se torna plenamente exigível. Até esse momento, portanto, a exigibilidade existe latente, isto é, em potência, e se torna concreta no termo ajustado ou com o decurso do tempo devido. De todo modo, a obrigação nasce e permanece cogente.
Observe-se que a inexigibilidade de que ora se trata não se confunde com a inexigibilidade da obrigação natural. De fato, na obrigação natural, a inexigibilidade é estrutural e permanente; a obrigação é, e sempre será, despida de coercibilidade, juridicamente inexigível.11 O devedor é livre para executar ou não executar a prestação;12 no entanto, uma vez executada, não pode repetir o que prestou (art. 882 do Código Civil).13 Daí se afirmar que a obrigação natural recebe apenas tutela parcial do ordenamento jurídico, que exsurge justamente após o adimplemento, a fim de impedir o devedor de pleitear a restituição do que pagou.14
Nas obrigações sem termo para cumprimento que não dependam do transcurso de certo prazo para o adimplemento, tão logo formado o vínculo obrigacional, a obrigação se torna exigível, bastando que o devedor interpele o devedor para que se imponha o pagamento. Com efeito, a exigibilidade da prestação não implica, por si só, a mora debitoris; para tanto, faz-se necessária a interpelação judicial ou extrajudicial do devedor (art. 397, parágrafo único do Código Civil).15
A interpelação tem a função de informar ao devedor que o credor pretende ver cumprida a obrigação. Por isso, deve ser feita de forma clara e precisa, a fim de cientificá-lo do dia, modo e lugar do cumprimento, caso alguma dessas circunstâncias não tenha sido objeto de ajuste prévio entre as partes. A ausência de referidas informações pode impedir que a interpelação produza os efeitos almejados, já que não será capaz de esclarecer ao devedor os exatos termos em que deve executar a prestação. Trata-se, portanto, de relevante ponto de atenção do credor.
Notificação premonitória vs. constituição em mora
É preciso não confundir a notificação premonitória, por vezes exigida pelo legislador para que se produzam determinados efeitos, com a constituição em mora do devedor.
No âmbito de promessas de compra e venda de imóveis loteados (art. 32, § 1º da Lei 6.766/79)16 e não loteados (art. 1º do Decreto-lei 745/69),17 por exemplo, a despeito de haver termo ajustado para o pagamento, a lei exige a interpelação do devedor para a conversão da mora em inadimplemento absoluto e a consequente produção dos efeitos dele decorrentes (veja-se, sobre o tema, AGIRE #104).18
Em contratos de seguro, tratando-se de mora de parcelas do prêmio que não a primeira, o legislador exige a notificação premonitória do segurado, (i) “concedendo-lhe prazo não inferior a 15 (quinze) dias, contado do recebimento, para a purgação da mora”, e (ii) advertindo-lhe “de que o não pagamento no novo prazo suspenderá a garantia e de que, não purgada a mora, a seguradora não efetuará pagamento algum relativo a sinistros ocorridos a partir do vencimento original da parcela não paga” (art. 20, §§ 1º e 2º da Lei 15.040/2024).19
Note-se, de outro lado, que “a mora relativa à prestação única ou à primeira parcela do prêmio resolve de pleno direito o contrato, salvo convenção, uso ou costume em contrário” (art. 20 da Lei 15.040/2024). O não pagamento da prestação única ou da primeira parcela do prêmio já configura, desde logo, o inadimplemento absoluto e resolve automaticamente o contrato. Trata-se de hipótese de resolução extrajudicial e automática, decorrente do simples fato do inadimplemento por expressa determinação legal, não se fazendo necessária qualquer notificação do segurado.
Nos dois casos mencionados, a mora é ex re e resta configurada com o não pagamento, no termo ajustado, da parcela do preço nas promessas de compra e venda bem como da parcela do prêmio no contrato de seguro. Os efeitos da mora se produzem desde logo, e não dependem da notificação premonitória, que se destina a produzir apenas os específicos efeitos indicados na lei.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Exigibilidade das obrigações e constituição em mora do devedor. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 142, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire142>. Acesso em DD.MM.AAAA.
Embora o foco desta coluna seja a mora decorrente do retardo do devedor, isto é, da inobservância do tempo ajustado para o adimplemento, no direito brasileiro, a mora também resta configurada quando, a despeito da observância do tempo, o devedor não efetua o pagamento no “lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”, conforme preceitua o artigo 394 do Código Civil.
Elemento acidental ou particular é o elemento que não é próprio do negócio em geral ou de certos tipos de negócio, e figura no contrato desde que nele inserido expressamente pelas partes no exercício da sua autonomia privada, a exemplo da condição e do termo. Sobre o tema, veja-se: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 37-38.
Art. 133. Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes.
Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:
I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;
II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;
III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.
Art. 134. Os negócios jurídicos entre vivos, sem prazo, são exequíveis desde logo, salvo se a execução tiver de ser feita em lugar diverso ou depender de tempo.
Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.
Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:
I - até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo, como para semeadura;
II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro
TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDERA, Paula Greco. Fundamentos do Direito Civil: contratos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 297.
Como explica Tito Fulgêncio, a obrigação natural é “aquela cuja execução não pode o devedor ser constrangido, mas cujo cumprimento voluntário é um pagamento” (FULGÊNCIO, Tito. Do Direito das Obrigações: das modalidades das obrigações (artigos 863-927). Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 20).
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 244.
Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do Direito Civil: obrigações. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 17.
Art. 397, parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor.
§ 1o Para os fins deste artigo o devedor-adquirente será intimado, a requerimento do credor, pelo Oficial do Registro de Imóveis, a satisfazer as prestações vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionados e as custas de intimação.
Art. 1o Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação.
Veja-se sobre o tema: TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, jan./ mar. 2022, p. 158.
Note-se que, nos termos do art. 134, a Lei 15.040/2024 “entra em vigor após decorrido 1 (um) ano de sua publicação oficial”.