#144. O tempo e os dilemas envoltos aos marcos decadenciais de invalidação das deliberações societárias nas sociedades limitadas
Por Henrique Barbosa
A chegada de um novo ano invariavelmente nos leva a meditar sobre o tempo. E se o sistema jurídico permite algum paralelo com a reflexão que essa virada de calendário induz, a prescrição e a decadência são provavelmente a melhor representação do costumeiro dilema entre a expectativa do melhor porvir e a angústia da aproximação do fim.
É ainda insuflado por estes ares um tanto “astro-filosóficos” que este breve texto pretende jogar luz sobre a problemática envolta aos marcos de invalidação das deliberações sociais, especialmente no âmbito das sociedades limitadas. Na contramão da necessária segurança jurídica e estabilidade expectada para os eventos societários, o que se presencia hoje é um completo desencontro hermenêutico acerca dos prazos decadenciais de anulação das decisões tomadas em reuniões ou assembleias de sócios.
A incerteza é tamanha, que se pode encontrar precedentes em nada menos que cinco sentidos diferentes, havendo decisões que: (i) ora apontam para os 3 anos do parágrafo único do art. 48 do Código Civil1; (ii) ora para a regra genérica de 2 anos do art. 179;2 (iii) ora para este mesmo prazo bienal, porém mediante aplicação analógica ou supletiva do art. 286 da Lei das S/A3; (iv) ora para os 4 anos do art. 178 do Código Civil4; (v) ora, pasmem, para o prazo decenal do seu art. 205.5
Isso sem perder de mira a incerteza quanto a definição do próprio marco inicial da decadência, cuja interpretação não raro oscila entre a data da deliberação e da efetiva publicação ou registro da ata respectiva.
A única hipótese que parece não guardar dúvidas é a de anulação da assembleia ou reunião anual de sócios para aprovação das demonstrações financeiras, cujo prazo de 2 anos é explicitamente delimitado pelo §4º do art. 1.078.
Naturalmente que não se pretende aqui nestas maltraçadas linhas exaurir a matéria ou cravar o acerto ou desacerto desses diversos entendimentos – embora se possa sim afirmar com bastante serenidade que ao menos as hipóteses dos arts. 48 e 205 do Código soam no mínimo inusitadas –, mas não resta dúvidas de que o regime merece melhor tratamento, tanto sob o aspecto de definição dos limites temporais de invalidade (e respectiva estabilização), quanto do próprio enxugamento desses prazos.
Lamentavelmente, contudo, embora ande bem ao sinalizar para uma aparente desburocratização do sistema deliberativo das sociedades limitadas, o anteprojeto de reforma do Código Civil recém apresentado ao Congresso parece estar longe de uma solução definitiva para essa temática. O texto entregue ao Senado cinge-se a incluir um §4º no art. 1.010, prescrevendo ser “anulável a deliberação aprovada por voto maculado por interesse contrário ao da sociedade, nos termos do parágrafo anterior, caso em que será de dois anos, a contar do registro da deliberação, ou de sua ciência, o que ocorrer primeiro, o prazo para ajuizamento de ação anulatória.”
Mas essa disposição claramente não soa suficiente a unificar procedimentalmente todas as hipóteses de invalidades deliberativas, deixando de lado, p.ex., toda uma gama de decisões potencialmente “violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação”, tal qual prudentemente previsto no art. 286 da Lei das S/A.
Da mesma maneira, o critério de “interesse contrário ao da sociedade” não parece tampouco indene de questionamentos, como já deveria igualmente ter ensinado a inconstante história hermenêutica do art. 115 da Lei das S/A.
Nesse sentido, ia melhor na matéria o Projeto de Código Comercial outrora apresentado ao Senado Federal, no qual se propunha uma redação genérica, uniformizando e reduzindo o prazo decadencial de anulação deliberativa para 06 (seis) meses, contados da publicação da ata respectiva (art. 153, II, do Substitutivo ao PLS 487/2013).
Enfim – e de volta ao paralelo do tempo – este parece ser um tema cuja delonga na harmonização não tende a inspirar bons agouros ao sistema societário empresarial.
Henrique Barbosa
Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor do LLM do INSPER. Presidente do IBRADEMP. Árbitro e Sócio do Barbosa & Barbosa Advogados.
Como citar: BARBOSA, Henrique. O tempo e os dilemas envoltos aos marcos decadenciais de invalidação das deliberações societárias nas sociedades limitadas. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 144, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire144>. Acesso em DD.MM.AA.
“Decadência. Sociedade limitada. Anulação de assembleia convocada para deliberar sobre a exclusão de sócio por justa causa. Regência supletiva da LSA prevista no contrato social. Inaplicabilidade, porém, do art. 286 da LSA diante da previsão expressa no CC/02 acerca do prazo decadencial para o sócio excluído pedir a anulação da assembleia (art. 48). Ação anulatória ajuizada dentro do prazo decadencial de três anos. Decreto de decadência afastado” (TJSP, Ap. 0001200-77.2011.8.26.0286); Ou, ainda, do STJ: “RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. SOCIEDADE LIMITADA. EXCLUSÃO DE SÓCIO MINORITÁRIO. PRAZO DECADENCIAL DE TRÊS ANOS PARA ANULAÇÃO DA ASSEMBLEIA. DECISÃO DA MAIORIA DOS SÓCIOS, REPRESENTATIVA DE MAIS DE METADE DO CAPITAL SOCIAL. QUORUM DE DELIBERAÇÃO EM QUE NÃO PODE SER COMPUTADA A PARTICIPAÇÃO, NO CAPITAL SOCIAL, DO SÓCIO EXCLUENDO. 1. O prazo decadencial para exercício do direito à anulação da deliberação de exclusão de sócio minoritário de sociedade limitada é de 3 anos, nos termos do art. 48 do Código Civil. (...)” (STJ, 4ª T., REsp. n.º 1.459.190/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 15.12.2015).
“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ANULATÓRIA DE CESSÃO DE QUOTAS SOCIAIS DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE SEM O CONSENTIMENTO DOS DEMAIS HERDEIROS - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA NÃO APRECIADA ATÉ A SENTENÇA - NULIDADE - CAUSA MADURA - ARTIGO 292 , II DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - VALOR INDICADO INCORRETO - CORREÇÃO DO VALOR DA CAUSA - DECADÊNCIA - ATO ANULÁVEL - PRAZO DECADENCIAL BIENAL - APLICAÇÃO DA REGRA GERAL DO ARTIGO 179 DO CÓDIGO CIVIL - TERMO INICIAL - DATA DA CONCLUSÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO - REGISTRO DA ALTERAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL NA JUNTA COMERCIAL - PRAZO DECADENCIAL ESCOADO - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. - Cuida a hipótese de ação de anulação de negócio jurídico, em que pretende a Autora invalidar a cessão e transferência das cotas sociais de sua genitora para o seu irmão, já falecido, sob a alegação de que fora celebrado sem o seu consentimento - Sentença que afastou a prejudicial de "prescrição" e julgou procedente o pedido declaratório deduzido na inicial - Inconformismo manifestado pelo Segundo Réu - Impugnação ao valor da causa que não foi enfrentada pelo Juízo até a sentença. Malgrado se reconheça a nulidade da sentença, aplica-se ao caso a Teoria da Causa Madura. Inteligência do artigo 1.013, § 3º, III do Código de Processo Civil - Artigo 292, II do Código de Processo Civil, que prevê que quando o litígio tem por objeto a validade de negócio jurídico, o valor da causa deve corresponder ao valor do contrato - Valor da causa que deve corresponder, de fato, ao valor das cotas cedidas ao irmão Júlio e não ao montante indicado na inicial. Procedência da impugnação para que seja corrigido o valor da causa - Vício na cessão das cotas sociais da ascendente para descendente, sem aquiescência dos demais. Ato jurídico anulável. Artigo 496 do Código Civil - Prazo decadencial para a anulação do negócio jurídico, que é de dois anos contados da conclusão do ato, ou seja, do registro da alteração do contrato social na Junta Comercial. Inteligência do art. 179 do Código Civil. Ação que somente foi ajuizada muito depois de escoado o prazo bienal. Decadência configurada – Sentença reformada – Recurso conhecido e provido” (TJRJ, Apelação Cível n.º 002666954.2015.8.19.0004, j. 10.04.2019).
“Caso em que se aplica o art. 286, da Lei 6404/76, para reconhecer e declarar a decadência na ação que versa sobre anulação de reunião de sócios da ré, sociedade limitada. Analogia possível diante da lacuna contida no art. 1078, § 3º, do CC. Decorridos mais de dois anos da reunião dos quotistas, correta a extinção, sem resolução de mérito. Não provimento” (TJSP, Apelação Cível n.º 0074733-77.2013.8.26.0002, j. 19.10.2016).
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO SOCIETÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE ALTERAÇÃO DE CONTRATO SOCIAL. SOCIEDADE LIMITADA. PRESCRIÇÃO. DECRETO 3.078/1919. LEI DAS S/A E CÓDIGO COMERCIAL. INAPLICABILIDADE À SITUAÇÃO FÁTICA. CÓDIGO CIVIL. INCIDÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES CONCERNENTES À ANULAÇÃO DE CONTRATOS. PRETENSÃO PRESCRITA. 1- Ação ajuizada em 29/8/2001. Recurso especial interposto em 13/12/2013 e concluso à Relatora em 25/8/2016. 2- O propósito recursal é definir se a pretensão deduzida na inicial - desconstituição de alterações promovidas no contrato social da empresa recorrente - está prescrita. 3- Os fatos narrados na inicial ocorreram na vigência do Decreto 3.708/1919 - que regulava as sociedades por cotas de responsabilidade limitada -, do Código Comercial e do Código Civil de 1916. 4- A norma do art. 286 da Lei das S/A (de aplicação subsidiária às sociedades limitadas) cuida especificamente do prazo incidente sobre pretensões deduzidas com o objetivo de anulação de deliberações tomadas em assembleia-geral ou especial, circunstância distinta da tratada neste processo. 5- Por outro lado, os fatos narrados na inicial também não se subsomem à norma legal invocada pelos recorrentes, veiculada pelo art. 442 do Código Comercial, pois tal regra trata especificamente da prescrição da pretensão derivada do inadimplemento de obrigações comerciais contraídas por escritura pública ou particular pela sociedade. 6- Reconhecida a natureza contratual do contrato social, afigura-se razoável, à míngua de qualquer disposição legal que lhe seja própria, o entendimento no sentido de que a prescrição incidente sobre a pretensão de anulação ou desconstituição de alterações nele promovidas rege-se, em circunstâncias como a verificada na hipótese, de acordo com a disposição do art. 178 do CC/16 (art. 178, II, CC/02 - decadência), que fixa prazo de quatro anos para seu exercício. 7- Recurso especial não provido” (STJ, REsp. n.º 1543070/PR, j. 06.02.2018).
“APELAÇÕES CÍVEIS. RECURSO ADESIVO. DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADES. SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. FALECIMENTO DE SÓCIO. PRINCÍPIO DA SAISINE. DIREITO DOS HERDEIROS. PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. INVENTARIANTE. ALTERAÇÃO CONTRATUAL REALIZADA COM O OBJETIVO DE RESTRINGIR O DIREITO DOS HERDEIROS. PRETENSÃO DECLARATÓRIA. IMPRESCRITIBILIDADE. GRATUIDADE JUDICIÁRIA. CONCESSÃO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ CONFIGURADA. MAJORAÇÃO DO VALOR DA PENALIDADE. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO À JUCERGS. DESCABIMENTO. (...) 3. A prescrição é matéria de ordem pública e, como tal, pode ser conhecida a qualquer tempo, até mesmo de ofício, inexistindo preclusão pro judicata quanto a este tema. 4. Embora seja necessário reconhecer a utilidade do instituto jurídico da prescrição para a estabilidade das relações sociais, insta salientar a impossibilidade de reconhecer, no caso em exame, os efeitos do decurso de prazo prescricional. 5. Contudo, algumas pretensões são consideradas como sendo imprescritíveis, é o que acontece com as ações declaratórias relativas à nulidade absoluta, cujos efeitos são ex tunc. 6. A par disso, apenas para argumentar, ainda que não se trate de nulidade absoluta, a alteração contratual em discussão, datada de 23-07-2003, prevê expressamente na sua cláusula primeira (fl. 159 do processo n. 70031512429) que: Laboratorio Wesp é uma sociedade limitada, regendo-se pelo presente contrato e pelas disposições legais aplicaveis. 7. Assim, como não há referência expressa à aplicação subsidiária da Lei das Sociedades Anônimas na alteração contratual precitada, o regramento a ser seguido é o relativo à sociedade simples, de acordo com o disposto no art. 1.053 do atual Código Civil, cujo lapso prescricional a ser adotado é o decenal previsto no art. 205 deste diploma legal. (...)” (TJ/RS, Apelação Cível n.° 70030466130, j. 26.08.2009).