#146. Na pauta do STJ: redução equitativa da cláusula penal e aplicação de ofício
Em pauta, nesta semana, está uma das questões enfrentados pelo STJ no REsp nº 2.042.706/SP:1 a redução equitativa da cláusula penal prevista no artigo 413 do Código Civil.2 Embora o caso apresente diversas nuances fáticas e jurídicas, expõem-se, a seguir, apenas aquelas necessárias à análise do tema.
O caso concreto
Em junho de 2008, WTorre Empreendimentos S.A. (“WTorre”) enviou a Bicicletas Monark S.A. (“Monark”) proposta para aquisição de imóvel por R$ 230.000.000,00. Em seguida, Monark apresentou contraproposta no valor de R$ 250.000.000,00, da qual constou a obrigação da Monark de entregar toda a documentação nela listada em 15 dias contados da aceitação pela WTorre, que teria 5 dias para analisá-la. A contraproposta continha, ainda, a seguinte cláusula:
“b3) Penalidade: Aprovada a documentação por V.Sas., a WTone Empreendimentos Imobiliários S.A. compromete-se a, irrevogável e irretratavelmente, adquirir o Imóvel, mediante a lavratura da escritura pública de venda e compra, nos 03 (três) dias seguintes à aprovação da Assembleia de Acionistas, sob pena de ter que pagar a Bicicletas Monark S/A, a título de perdas e danos, a multa pré-fixada de 5% (cinco por cento) sobre o preço de venda do Imóvel ajustado na presente contraproposta.”
WTorre aceitou a contraproposta ainda em julho de 2008, e depois recebeu e aprovou os documentos. Na sequência, os acionistas da Monark aprovaram a venda do imóvel. WTorre, todavia, não celebrou a escritura definitiva de compra e venda no prazo ajustado e Monark cobrou em juízo a quantia histórica de R$ 12.250.000,00, correspondente a 5% do preço de venda do imóvel, nos termos da cláusula “b3”.
No que interessa a estes comentários, BR Properties S.A. (“BR Properties”), sucessora por incorporação de WTorre, apresentou defesa, alegando não ser devido o valor previsto na cláusula penal porque (i) o contrato de compra e venda não foi celebrado por razões que não lhe eram imputáveis, e (ii) não houve dano, já que Monark alienou o imóvel pouco tempo depois, por R$ 260.000.00,00.
Em agosto de 2017, o juízo da 20ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo julgou procedente o pedido da Monark.3
O caso em segunda instância
BR Properties interpôs recurso de apelação, oportunidade em que, pela primeira vez e ad argumentandum tantum, suscitou a incidência do artigo 413 do Código Civil. Aduziu que a aplicação do dispositivo era medida impositiva, por se tratar de poder-dever do julgador diante de norma de ordem púbica, cujo objetivo é evitar “injustiças contratuais”, pelo que pode ser aplicada de ofício. A seu ver, a multa seria excessivamente gravosa, especialmente diante da não ocorrência de dano, considerando a ulterior alienação do imóvel por valor superior ao ajustado na contraproposta.
Em contrarrazões, Monark aduziu que o pedido de aplicação do artigo 413 do Código Civil consistia em inovação jurídica, pois “em momento algum havia sido pretendida sua aplicação em razão de suposto valor excessivo da multa”. Monark, demais disso, rebateu as alegações de excessividade da multa, alegando que representava apenas 5% do preço do imóvel.
Em novembro de 2019, a 9ª Câmara de Direito Privado do TJSP negou provimento ao recurso da BR Properties. Sobre o artigo 413, o voto do Relator, Des. Piva Rodrigues, se limitou a afirmar que houve “inovação recursal, evidentemente vedada pelo ordenamento jurídico. Mantidos, portanto, os 5% inicialmente estipulados entre ambas as partes”.4
O Des. Galdino Toledo Júnior apresentou declaração de voto para, lastreado em acórdão da 4ª Turma do STJ proferido no REsp 1.447.247/SP,5 “discordar do voto vencedor quando este defende a impossibilidade de revisão ex-officio dessa cláusula, nos termos do artigo 413, do Código Civil, afastando essa tese por considerá-la uma inovação recursal”. De todo modo, o Des. Galdino frisou que a divergência não se refletiria no resultado da demanda, uma vez que entendia “descabida qualquer adequação da penalidade, em face da própria conduta da ré”.6
No referido REsp nº 1.447.247/SP, julgou-se recurso contra decisão doTJSP que aplicara o artigo 413 de ofício, sem oportunizar às partes o contraditório. Em sede de recurso especial, a recorrente alegou ofensa ao princípio da adstrição, tendo em vista que a recorrida não deduzira pedido de redução da cláusula penal. A 4ª Turma decidiu que o controle judicial da cláusula penal abusiva é norma de ordem pública, pelo que, “uma vez constatado o caráter manifestamente excessivo da pena contratada, deverá o magistrado, independentemente de requerimento do devedor, proceder à sua redução”, não restando configurado o vício de julgamento extra petita ou inobservância dos limites devolutivos da apelação.
BR Properties apresentou Recurso Especial. Sustentou, dentre outras questões, que a aplicação do artigo 413 não é mera faculdade do julgador, mas imposição legal.
A decisão em comento
Em novembro de 2024, a 3ª Turma conheceu e não proveu, por maioria, o Recurso Especial. Em relação ao artigo 413, entendeu não ter havido prequestionamento. De acordo com o Relator, Min. Moura Ribeiro:
“mesmo que considerada como de ordem pública a matéria em debate quanto a redução da multa convencionada, desde que nas hipóteses do art. 413 do CC/2002, tal característica não exime a inconformada de demonstrar o prévio debate na Corte de origem”.
Nesse ponto, o Min. Humberto Martins divergiu do Relator. A seu ver, “a matéria é cogente e de ordem pública, podendo ser decida de ofício”, pelo que seria incabível o “fundamento do voto vencedor estadual de que se trata de inovação recursal”. Além disso, afirmou que a matéria estaria, sim, prequestionada no voto do Des. Galdino Toledo Júnior. Ao fim, deu “provimento em parte ao recurso especial apenas para reduzir a cláusula penal anteriormente fixada em 5% para 2% sobre o valor da venda do imóvel à época.”
Breves notas sobre o tema
A possibilidade de redução de ofício da cláusula penal com base no artigo 413 do Código Civil não é objeto de consenso na doutrina civilista. Conquanto haja aqueles que vislumbrem no “deverá”, constante do dispositivo, autorização para a intervenção do magistrado mesmo sem pedido do devedor,7 outros negam a atuação de ofício,8 e entendem que o verbo apenas “acabou por atribuir ao devedor direito subjetivo à revisão, realizável em juízo ou fora dele”, presentes os requisitos legais.9
Nada obstante, fato é que o STJ tem admitido a revisão de ofício.10
Seja como for, uma coisa é certa: a se admitir a revisão por iniciativa direta do magistrado, há de ser garantido o contraditório:11
“Apesar de se autorizar a redução de ofício, segundo o artigo 10 do Código de Processo Civil, bem como seu artigo 9º, caput, não é dado ao juiz decidir sem que dê oportunidade às partes para que se manifestem, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva deliberar de ofício. É preciso proporcionar o contraditório, pelo que, mesmo em situação passível de diminuição da cláusula penal, deve o julgador provocar o debate a respeito, instando as partes para que se pronunciem, para, depois, deliberar”.12
Para além da regra de vedação de decisão surpresa, constante do artigo 10,13 destaca-se também o artigo 933, ambos do Código de Processo Civil:
“Art. 933. Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias.”14 (grifou-se)
Volta-se, então, ao REsp nº 2.042.706/SP para duas considerações finais:
ao não apreciar a aplicação do artigo 413 do Código Civil sob a alegação de se tratar de inovação recursal, o TJSP acabou por desconsiderar o entendimento do STJ favorável à redução de ofício; se o Tribunal de Justiça pode reduzir de ofício a cláusula penal, o fato de ser inovação recursal não obsta, aqui, a análise do tema; e
quanto ao prequestionamento, tido como inexistente pelo STJ, não se pode perder de vista que o voto do Des. Galdino Toledo Júnior integra o acórdão, nos termos do artigo 941, § 3º do Código de Processo Civil.15
Nesse cenário complexo de política judiciária e de importante divergência doutrinária acerca da possibilidade de a cláusula penal ser reduzida de ofício, a recomendação é que o devedor comece mesmo o debate na instância de origem, ainda que sob invocação do princípio da eventualidade.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: redução equitativa da cláusula penal e aplicação de ofício. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 146, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire146>. Acesso em DD.MM.AAAA
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
Nos termos do voto: “Essa pequena divergência na linha de pensamento, todavia, não reflete no resultado da demanda, pois no, meu pensar, descabida qualquer adequação da penalidade, em face da própria conduta da ré que, ao invés de reconhecer desde logo, como deveria, que o negócio decorreu de fatores externos imprevisíveis (mudança do cenário econômico), optou por oferecer descabida defesa, que apenas está retardando o cumprimento da obrigação. Ante o exposto, meu voto, igualmente nega provimento ao recurso”.
RODOVALHO, Thiago. Cláusula Penal: natureza jurídica, função e poder/dever de redução equitativa. RJLB, a. 7, n. 6, 2021, p. 2260.
Enunciado 356, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício”.
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 272; SEABRA, André. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 386.
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 281.
Constituição da República, art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 678. No mesmo sentido: SEABRA, André. Limitação e redução da cláusula penal. São Paulo: Almedina, 2022, p. 386.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Art. 933, § 1º Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente.
§ 2º Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores.
Art. 941. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor.
§ 3º O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento.