#147. A Lei 14.996/2024 e os direitos sobre criações artísticas não convencionais
por Micaela Fernandes
A Lei 14.996, de 15 de outubro de 2024, reconheceu em âmbito nacional algumas formas de expressões artísticas já bastante conhecidas e incorporadas no dia a dia das pessoas, especialmente as que vivem em centros urbanos, como formas de manifestação da cultura brasileira.
São elas: a charge, que consiste em ilustração humorística feita com objetivo de satirizar acontecimentos da atualidade; a caricatura, que apresenta pessoa(s) com traços excessivos, e que pode ou não integrar a charge; o cartum, desenho satírico, caricato ou humorístico que ironiza pessoas ou comportamentos; e o grafite, expressão de arte urbana em forma de desenho e escrituras que produz interferência intencional em espaços públicos, como paredes, muros, fachadas, viadutos e ruas.
Ao confirmar a valorização destas formas de expressão artística menos convencionais, mas não menos importantes, e inclusive até mais presentes na vida cotidiana da população, a lei garante o exercício da livre expressão pelos artistas, e assegura também proteção às obras objeto de sua criação, para todos os efeitos.
Assim, ao poder público caberá a preservação dessas diversas formas de manifestação cultural, e aos agentes privados estimula-se sua produção, inclusive como forma de expressão da identidade e personalidade, apreciação e formação cultural, e ainda, a possibilidade de realização de negócios tendo por objeto referidas formas de expressão artística, permitindo aos interessados, por exemplo, mais segurança jurídica na contratação de obras sob encomenda, na aquisição do suporte artístico das obras intelectuais, ou de cópias devidamente licenciadas, na licença de uso, na cessão temporária, dentre tantas possibilidades de contratos neste setor.
A Lei é resultado de um projeto apresentado em 2020, e vem na esteira da valorização crescente de formas menos tradicionais de manifestação artística, ocorrida não sem resistência por pessoas que confundem cultura apenas com erudição – algo bastante anacrônico, aliás.
Já há muito tempo, mas especialmente a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto em 1948(!), houve a ruptura do paradigma da valorização da “alta cultura”, com expressa previsão de que todos têm o direito de usufruir e participar da vida cultural de sua comunidade. Tal participação é passiva e ativa, na medida em que manifestações culturais informam, formam e transformam as pessoas, que são receptoras mas também sempre potenciais criadoras.
Tal forma de pensar a cultura e os bens culturais foi incorporada na Constituição de 1988, que traz os direitos culturais como direitos humanos, e em seu artigo 2151 exige do Estado agir para a garantia do seu exercício por todos, inclusive por meio de apoio e incentivo às múltiplas manifestações artísticas, sem distinção de qualidade, até porque a diversidade é expressamente valorizada em nosso texto constitucional. Não à toa criações outrora consideradas marginais, que hoje seguem encontrando espaço nas ruas, passaram também a ser vistas em galerias, museus, e espaços de compartilhamento e preservação em geral.
De se admirar que, em uma nação tão fortemente integrada por grupos de origem diversa como a nossa, somente em 2024 uma lei prevendo a proteção de formas de manifestação menos tradicionais seja publicada. Ou talvez não, considerando nossa infeliz tradição de não valorização, ou de valorização tardia, da nossa rica e diversa produção, especialmente aquela oriunda dos povos originários. Para ficar em um exemplo singelo, o Brasil já criminalizou a capoeira (desde o Código Penal de 1890 até 1934), e hoje é um alento que ela tenha passado a ser, desde 2014, reconhecida como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela UNESCO.
Voltando à Lei 14.996/24, embora cada uma das quatro formas de expressão cultural mencionadas tenha suas peculiaridades, todas têm em comum a identificação visual, e todas, mesmo quando criadas e exibidas em espaços públicos, são protegidas juridicamente, podendo os respectivos criadores se valer dos mesmos mecanismos de proteção conferidos às obras e criações humanas, em especial todos aqueles contemplados na nossa Lei de Direitos Autorais, a Lei 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998.
Daí a titularidade conferir ao autor a proteção em sua esfera existencial e patrimonial, permitindo-lhe se valer de todos os meios para assegurar a tutela de seus direitos, seja para o aproveitamento pessoal, com ou sem interesse econômico, seja para a proteção contra a usurpação de seus direitos, quando surgem situações de expressa violação, como na falsa atribuição de autoria, cópia não autorizada, lucro da intervenção, dentre outras situações.
Desafio que se coloca é a definição do adequado equilíbrio, de um lado, entre os direitos pessoais do autor, sejam de ordem existencial ou patrimonial, bem como de toda a indústria e meios de distribuição e divulgação que orbitam em torno dos criadores e suas obras, e, de outro lado, os direitos do público em geral, para o acesso a bens culturais, inclusive como fontes da cultura e identidade nacional.
Tal equilíbrio, além de relativamente instável e só passível de identificação em cada caso concreto, é especialmente dinâmico em tempos tão imagéticos como o nosso, em que na Internet, notadamente nas redes sociais, são reproduzidas incessantemente cópias de obras protegidas, com ou sem permissão dos titulares, por vezes dentro das limitações legais aos direitos autorais previstas em nossa legislação, por vezes fora, em violação a interesses tutelados.
Por meio de postagens e repostagens, algumas com intenção meramente apreciativa ou crítica, outras com fins econômicos, em que interesses de diferentes naturezas se misturam, aumenta-se a dificuldade na interpretação e aplicação da normativa, em que devem ser contemplados todos os interesses legítimos subjacentes.
Este exíguo espaço não permite desenvolver os desdobramentos possíveis de cada potencial conflito de interesses, até porque são várias as hipóteses de convivência harmoniosa e igualmente várias as hipóteses de convivência conflituosa – em alguns casos, coexistem o interesse do artista na divulgação e projeção do seu nome e obra e também seu legítimo interesse de ser remunerado, assim como o legítimo interesse das pessoas ao acesso à cultura, de “ver o que há para ver no mundo”, com diferentes respostas jurídicas.
Sem prejuízo de possíveis desdobramentos, aqui não explorados, o que se pretende destacar é a indubitável confirmação da valorização das formas de expressão artística elencadas na Lei 14.996/24, e, apesar da singeleza do referido texto normativo, a possibilidade de aproveitamento da legislação já existente com relação aos direitos autorais e aos bens culturais para sua proteção.
Brindemos, pois, dentre tantos artistas de nossa constelação, a Adão Iturrusgarai, Aline Bispo, Ananda Nahu, André Dahmer, Aline Daka, Angeli, Aroeira, Beatriz de Miranda, Bianca Foratori, Chico e Paulo Caruso, Criola, Daiara Tukano, Fabiane Langona, Grazi Fonseca, Gustavo e Otávio Pandolfo (OsGemeos), Hanna Lucatelli, Henfil, Jean Galvão, J.Carlos, Juliana Gomes, Kobra, J Lo Borges, Kboco, Laerte, Mag Magrela, Miguel Paiva, Millor Fernandes, Nair de Teffé, Nina Pandolfo, Panmela Castro, Pedro Vinicio, Pri Barbosa, Rafa Mon, Raquel Teixeira, Sinha, Tai, Toz, Winny Tapajos, Yorhán Araújo, Ziraldo, e outros. Que sejam sempre muitos.
Micaela Fernandes
Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ. Mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica pela UERJ. Pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ. Graduada em Direito pela UFRJ. Advogada. Membro das Comissões de Direito Civil e de Direito da Concorrência da OAB - Seção RJ / (triênio 2019-2021). Membro da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB - Seção RJ (triênio 2022-2024).
Como citar: FERNANDES, Micaela. A Lei 14.996/2024 e os direitos sobre criações artísticas não convencionais. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 147, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire147>. Acesso em DD.MM.AA.
Seção II DA CULTURA
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Regulamento
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
II produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
IV democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
V valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)