#150. A terra indígena e o Direito brasileiro
Por Ministro Nelson A. Jobim
1. Os círculos
A Constituição Federal explicitou o conceito de “terra indígena” no art. 231.
Quatro elementos consubstanciam, em conjunto e sem exclusão, o conceito constitucional de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”:
1) As terras “por eles habitadas em caráter permanente”;
2) As terras “utilizadas para suas atividades produtivas”;
3) As terras “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar”; e
4) As terras “necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Assim, o conceito de terra indígena é integrado de quatro universos que se interpenetram e se complementam.
Há - a imagem me parece boa - quatro CÍRCULOS concêntricos, que se completam.
CÍRCULO 1:
- “habitação permanente”.
Seu núcleo está na expressão “habitadas”.
É o inicial e com índice de objetividade maior.
A Constituição exige que seja “permanente”.
“Permanente” é o “definitivo, que dura muito tempo; imutável”.
Mas, o advérbio não reduz a objetividade que decorre da habitação.
Não permite qualquer subjetividade.
Consiste em um dado da realidade empírica e objetiva:
- a existência de aldeias, dimensão, critérios de permanência.
CÍRCULO 2:
- “utilizadas para suas atividades produtivas”.
O dado relevante está na expressão “atividades produtivas”.
O grau de objetividade evidente e composto por dois fatos:
a) as atividades produtivas do grupo indígena; e
b) as áreas utilizadas para esse fim.
Apuram-se, in loco a área e as atividades produtivas.
Depende da verificação e existência real e efetiva do CÍRCULO 01.
Aliás, há uma relação de dependência entre os diversos CÍRCULOS, os primeiros são condicionantes dos subsequentes.
CÍRCULO 3:
- “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar”.
Neste, parte-se de uma base objetiva e constatável empiricamente que são recursos ambientais.
A esses recursos se agregam:
(a) imprescindibilidade;
(b) necessariedade; e
(c) bem-estar.
Esses três conceitos são explicitáveis e analisáveis através de pesquisa de campo e dados objetivos.
CÍRCULO 4:
- “necessárias à ... reprodução física e cultural segundo ... usos, costumes e tradições”.
Parte-se da constatação objetiva - “reprodução física e cultural”.
A Constituição, após, exige a “necessariedade” e um juízo antropológico que diz com “usos, costumes e tradições” do grupo.
Sua perquirição se fará após os anteriores.
Assim, o advérbio “tradicionalmente”, que está na raiz do conceito de “terras ocupadas pelos índios”, não está relacionado com elemento histórico, mas, sim, com a forma tradicional de ocupação.
O advérbio “tradicionalmente” nada tem com “posse imemorial”, mas, sim, com formas tradicionais de ocupação.
O juízo histórico, entretanto, é fundamental para a elucidação dos quatro CÍRCULOS, principalmente do CÍRCULO 3 e do CÍRCULO 4.
Todo o explicitado acima são premissas necessárias, cada uma delas, para a demarcação da Terra indígena.
Ressalte-se que a posse indígena se distancia do conceito de posse do Direito Civil.
2. Tratamento das terras indígenas
A propriedade das Terras é da União (Art. 20, XI), destinadas a “posse permanente” e afetadas ao “usufruto exclusivo” do grupo indígena do grupo (CF, art. 231, §2º).
São “inalienáveis e indisponíveis e, os direitos sobre elas, imprescritíveis” (CF, Art. 231 §4ª).
Essa fórmula vem de 1850, da Lei de Terras (L. 601, 18.09.1850):
Art. 75. As terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder o pleno gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização.
O Federalismo Republicano de 1891 atribuiu aos Estados a titularidade e controle das terras ocupadas pelos índios.
Essa nova situação dominial impunha um acordo da União com os Estados (Decreto n.º 8.072, de 20.06.1.910, que criou o “Serviço de Proteção aos Índios”).
O Governo Washington Luiz definiu a realização desse acordo no Decreto n.º 5.484, de 27.06.1928.
Foi a Constituição de 1.934 que primeiro deu tratamento constitucional:
Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.
Tal regra manteve-se, com outros enunciados, em 1.937 e 1.946.
Foi a Constituição de 1.967 que incluiu as terras “ocupadas pelos silvícolas” (sic), entre os bens da União (Art. 4ª, IV).
Em 1969 o tratamento passou a ser mais abrangente e radical.
Lá apareceram, além do respeito a posse, a “inalienabilidade, a posse permanente, o usufruto exclusivo” e “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. (EC nº 1, Art. 198, §§ 1º e 2º).
A Constituição de 1.988 regrou exaustivamente a questão indígena (CF. arts. 231 e 232), incluindo toda experiência legislativa anterior.
3. Demarcação
A Lei n.º 6.001/1977 (art. 19) dispõe que as terras indígenas são administrativamente demarcadas e o procedimento é regido, desde 1996, pelo Decreto n.º 1.775, de 08.01.
Após os estudos da FUNAI, o Ministro da Justiça, se for o caso, editará Portaria declarando “os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação” (Art. 2º).
Após, Decreto homologatório do Presidente da República (art. 5º).
O Ministério da Justiça editou a Portaria n.º 14, de 09.01.1996, que estabeleceu regras para a elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação pela FUNAI.
4. Efeitos do Decreto homologatório
O Decreto consiste em um poder-dever administrativo.1
O Presidente da República não exerce poder discricionário.
Nem é uma mera opção administrativo-política.
O Decreto está jungido ao reconhecimento, em concreto, da presença dos pressupostos constitucionais definidores da terra tradicionalmente ocupadas pelo grupo indígena.
O Decreto “demarca” dois espaços de liberdade e de exercício de direitos:
(1) o espaço dos índios e
(2) o espaço dos não-índios.
Há um efeito declaratório da terra como de "ocupação tradicional" dos índios e destinada “a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” (CF, art. 219, §2º).
Há a desconstituição, por serem nulos, “não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” das terras declaradas de ocupação indígena.
Essa desconstituição não gera “direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé” (CF, art. 219, §6º).
O Decreto tem outro efeito declaratório: as terras adjacentes à área homologada não são de ocupação tradicional dos índios.
Uma vez desenhados os contornos da área demarcada, não pode ser reduzida, nem ampliada em detrimento dos lindeiros, salvo desapropriação por interesse social.
Não pode o decreto ser “corrigido” livremente como se não houvesse gerado efeitos no plano dos direitos subjetivos de terceiros - os titulares de glebas adjacentes.
Para haver a revisão da demarcação, será necessário a demonstração de “grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra” e não fluido o prazo de prescrição de 05 anos, após a demarcação que se pretenda rever.2
Assim:
(1) a declaração que a terra é de ocupação tradicional de determinada etnia indígena, reconhecendo assim o domínio da UNIÃO e o usufruto dos índios; e
(2) a declaração que as terras adjacentes são propriedade de terceiros titulados e não são de ocupação tradicional dos índios.
Da mesma forma que não se pode restringir a área de ocupação indígena, igualmente, não há como restringir a área de exercício do direito de propriedade do particular.
A hipótese contrária não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.
Ora, demarcar é fixar limites.
Não admitido o 3º efeito, não haveria segurança e estabilidade suficientes para o exercício tranquilo do direito de propriedade.
A área próxima à terra indígena não pode ficar sujeita à condição resolutiva de ampliação da terra da demarcação anterior.
O que pode ocorrer é a desapropriação por interesse social ou a revisão da demarcação, atendidos os condicionantes referidos acima.
A homologação da demarcação faz coisa julgada administrativa.
Ela se aplica à decisão pois o procedimento prevê a participação de todos os interessados, para se oporem, total ou parcialmente, à demarcação, o que importa em litigiosidade.
Há uma decisão do Ministro apreciando a eventual controvérsia com o Estado, Município ou terceiros titulados
A coisa julgada administrativa consiste na decisão se tornou irretratável pela própria Administração. Não se confunde com a coisa julgada do processo civil.
Entender que o Decreto gera uma coisa julgada administrativa somente em relação às Comunidades Indígenas é interpretação contrária à Constituição.
Tal interpretação despreza o art. 5º, caput, XXII e XXIII;3 e art. 170, II e III,4 da CF.
5. Posse imemorial
Leio:
“Quanto ao termo inicial da ocupação indígena, não se exige que a posse de determinada área seja imemorial. Tal adjetivação chegou a constar do texto da Constituinte, mas foi excluído durante os debates em Plenário. O que se demanda é que a ocupação se dê pelo modo tradicional indígena”.5
José Afonso da Silva esclarece que o “tradicionalmente” refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem a terra.6
O relevante é serem elas de ocupação tradicional e permanente.7
A questão controvertida é “sobre o momento de verificação dessa ocupação tradicional: se apenas quando da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988 (tese do marco temporal, baseada na teoria do fato indígena); ou se a qualquer momento, antes ou depois da entrada em vigor da Constituição (tese do indigenato)”.8
No caso de Santa Catarina, o STF deu uma solução intermediária:
(1) O Enunciado IV9 afastou o Marco Temporal das regras com repercussão Geral; e
(2) O Enunciado V,10 não havendo ocupação ou esbulho quando da promulgação da Constituição:
(3) São válidos e eficazes os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativa justo título ou posse de boa-fé;
(4) Assegurou ao particular a indenização sobre as benfeitorias necessárias e úteis pela União;
(5) Assegurou aos particulares a obrigação da União em reassentá-los; e, alternativamente
(6) Não sendo possível o reassentamento, a União indenizará os particulares pelo valor da terra nua, que será pago em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, a juízo dos particulares.
Ou seja, para as demarcações com posse tradicional e permanente anterior à promulgação da CF, nenhuma modificação no procedimento e regras.
Já, para as demarcações posteriores à promulgação da CF de 1988, onde não haja ocupação ou esbulho, o STF deu um tratamento similar ao de desapropriação.
Haveria mais a dito.
Ministro Nelson A. Jobim
Integrou os três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. No Poder Legislativo, foi Deputado Federal pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (“PMDB”) do Estado do Rio Grande do Sul (1987 a 1994), Líder do PMDB na Assembleia Nacional Constituinte (1988), Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (1989), Relator da Revisão Constitucional (1993 a 1994) e Membro da Assembleia Nacional Constituinte (1987 a 1988). No Executivo, foi Ministro da Justiça (1995 a 1997 ) e Ministro de Estado da Defesa (2007-2010 e 2011). No Judiciário, foi Ministro do Tribunal Superior Eleitoral (2001 a 2003, presidindo este tribunal durante todo esse período), Ministro do Supremo Tribunal Federal (1997 a 2006, presidindo este tribunal de 2004 a 2006) e Presidente do Conselho Nacional de Justiça (2005 a 2008).
Como citar: JOBIM, Nelson. A terra indígena e o Direito brasileiro. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 150, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire150>. Acesso em DD.MM.AA.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 97; MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 16ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 62; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 86.
STF, RE n.º 1.017.365/SC, em repercussão geral, no item romano VIII da Emenda, relator o Ministro Edson Fachin.
CF/88: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.
CF/88: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II - propriedade privada; III - função social da propriedade”.
O Texto n.º 318 do SF. Exame do PL n.º 2.903, de 2023.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., p. 716.
Emenda do Acórdão no RE n.º 1.017.365/SC: “10. A tradicionalidade da posse indígena refere-se ao modo de ocupação da terra, de acordo com os costumes, usos e tradições da comunidade, demonstrada por meio de trabalho técnico antropológico, a levantar as características históricas, etnográficas, sociológicas e ambientais da ocupação, para determinar se há ou não o cumprimento do disposto no artigo 231, §1º do texto constitucional”.
Idem nota de rodapé 5.
“III - A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
“V - Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do §6º do art. 37 da CF”.