#153. Dolo acidental e a prova do contrato “por outro modo”
Por Gustavo Kulesza1
O dolo acidental (CC, art. 1462) é figura conhecida entre nós ao menos desde o Código Civil de 1916 (art. 933),4 e tem frequente incidência em decisões brasileiras desde então. Apesar disso, a doutrina brasileira pouco se dedicou ao estudo da extensão da reparação do dano pré-contratual nessa hipótese.5 Em especial, salvo valiosas exceções,6 poucos textos enfrentaram o difícil tema da prova do conteúdo do “negócio [que] seria realizado, embora por outro modo” (CC, art. 146) na ausência da manobra dolosa.
Não por acaso, a jurisprudência reflete essa lacuna da doutrina. Nossa jurisprudência é rica em exemplos, inclusive caricatos,7 de ilicitudes pré-contratuais que implicaram dolo acidental. Contudo, o exame atento dos julgados proferidos nesses casos releva que nossos tribunais também raramente se dedicam a examinar qual teria sido o “outro contrato” mais vantajoso que a parte lesada teria firmado no cenário hipotético sem o ilícito pré-contratual. Tome-se o contrato de compra e venda como exemplo. Em regra, a absoluta maioria dos julgados que lidam com a incidência de dolo acidental nesses negócios aplica o método objetivo para apurar a indenização do deceptus, quantificando o dano pela mera comparação do preço contratado com o valor real (ou de mercado) do bem alienado, sem qualquer consideração sobre a vontade hipotética do lesado.8
Ao que nos parece, uma das razões por trás da “resistência” em se investigar o cenário hipotético reside na natureza intangível do nexo de causalidade nesses casos. Explica-se: a relação de causa (conduta dolosa do lesante) e efeito (celebração do negócio indesejado, em substituição ao outro mais vantajoso) não se passa entre dois elementos tangíveis, “mas entre uma conduta material e um evento de natureza psicológica”.9 Trata-se do que a doutrina convencionou chamar de causalidade psicológica, em que o dano é representado pela decisão tomada pela própria parte lesada, provocada pela conduta ilícita da contraparte.10
Apesar da inerente dificuldade em se produzir essa prova, parece-nos que, se a indenização subjacente ao dolo acidental está sujeita ao regime da responsabilidade civil – nos termos da lei, “o dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos” (CC, art. 146) –, não haveria como prescindir da prova do nexo de causalidade (ou da certeza do dano) para que o lesado possa ter direito à reparação.11
Como então provar qual teria sido o contrato mais vantajoso celebrado no cenário hipotético, sem influência causal do dolo, para quantificar o dano do deceptus? A rigor, todo processo indenizatório, de qualquer dano, é intrinsicamente hipotético, porque procura conduzir a vítima para uma situação que “não existe na realidade, mas deveria existir, ou existiria, não fosse a ocorrência lesiva que ocasionou o dano”.12 Por coerência lógica, o processo reparatório nos casos de dolo acidental também pressupõe a prova de algo que não ocorreu (a celebração de contrato mais vantajoso para o lesado); caso contrário, se a vontade hipotética do lesado fosse coincidente com sua vontade efetiva, concretamente manifestada nas tratativas do contrato celebrado (i.e., sem o dolo, o mesmo contrato desvantajoso teria sido celebrado), não haverá nexo de causalidade a justificar a imposição da indenização.
Dada a intensidade da natureza hipotética do nexo causal nos casos de dolo acidental, a chave para a prova desse elemento parece residir na admissão da presunção de causalidade13 – quando as condições para tanto estiverem presentes. Como se sabe, a presunção constitui a relação inferencial pela qual se deduz a existência de determinado fato não concretamente estabelecido (ou seja, hipotético) a partir de certas circunstâncias concretas e conhecidas.14 A rigor, no campo da responsabilidade civil, é de se admitir prova por meio de presunções “nos casos em que é difícil ou mesmo impossível fazer prova direta dos fatos que em princípio seria necessário demonstrar”,15 como a lei autoriza (CC, art. 212, IV). A presunção que se defende aqui é a natural (em contraposição à legal), por meio da qual o julgador pode inferir, a partir das “regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece” (CPC, art. 375), os fatos que deveriam ser provados a partir de outros elementos concretos.16
Parece-nos lícito provar o nexo de causalidade nas hipóteses de dolo acidental por meio de presunções naturais (a partir de regras de experiência). Assim como na apuração dos lucros cessantes, poder-se-ia argumentar em favor de uma “presunção de que os fatos se desenrolariam dentro do seu curso normal”17 nos casos de dolo acidental – desde que, claro, o lesado forneça elementos suficientes para convencer o julgador de que essa máxima se impõe no caso. É dizer: a presunção não surgirá do vácuo, ela decorrerá necessariamente de elementos concretos provados no caso.18
A busca desses elementos para identificação do cenário hipotético parece poder se inspirar nas fases recognitiva e complementar da interpretação de negócios jurídicos.19 Os elementos subjetivos (linguagem, contexto verbal, contexto situacional etc.) para construção da vontade hipotética são, a nosso ver, relacionados à fase recognitiva da interpretação (reconduzidos ao regime do art. 112 do CC). Contudo, quando não for possível construir a vontade hipotética a partir dos elementos disponíveis na fase subjetiva, poder-se-ia recorrer aos elementos objetivos, típicos da fase integrativa (ou complementar) da interpretação dos negócios jurídicos, em especial a boa-fé objetiva e os usos (CC, art. 113).20
Espera-se que esse singelo artigo sirva de incentivo para despertar o interesse do seleto grupo de leitores desta coluna para o intricado tema da prova da vontade hipotética no âmbito do dolo acidental – aspecto fundamental dessa figura que é, como dizia Junqueira de Azevedo, “o que há de mais interessante” em matéria de perturbações na fase pré-contratual.21
Gustavo Kulesza
Mestre em Direito Internacional e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Advogado.
Como citar: KULESZA, Gustavo. Dolo acidental e a prova do contrato “por outro modo”, n.º 153, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire153>. Acesso em DD.MM.AA.
Texto baseado em KULESZA, Gustavo Santos. Reparação do dano pré-contratual nos contratos válidos: dolo acidental e culpa in contrahendo. Tese de Doutorado (Direito Civil). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.
CC, art. 146: “O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.
CC 1916, art. 93: “O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos. É acidental o dolo, quando a seu despeito o ato se teria praticado, embora por outro modo”.
Como ressalta BEVILAQUA: “No direito pátrio, sempre se fez distinção entre o dolo principal e o incidente” (Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. v. I, 3ª ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p. 331).
BENETTI, Giovana. Dolo no direito civil: uma análise da omissão de informações. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 362 (“Tema pouco explorado pela doutrina brasileira é o da medida da indenização diante do dolo”). Embora a autora se refira ao dolo de maneira geral nessa passagem, fato é que a indenização por dolo acidental mereceu ainda menos atenção da doutrina brasileira quando comparada à reparação do dolo invalidante. Não por acaso, a autora também ressalta que o dolo acidental é o “regime sobre o qual recai a maior controvérsia” (Id., p. 367).
V. p. ex., BENETTI, Giovana. Dolo no direito civil. cit.; MARTINS-COSTA, Judith. Os regimes do dolo civil no Direito brasileiro: dolo antecedente, vício informativo por omissão e por comissão, dolo acidental e dever de indenizar. in RT, v. 923, São Paulo, 2012; GRUPPI COSTA, Claudia; SETOGUTI PEREIRA, Guilherme. O dolo acidental em contratos de compra e venda de participação societária: critérios para a quantificação de danos. in YARSHELL, Flavio Luiz; SETOGUTI PEREIRA, Guilherme. Processo societário. v. IV, São Paulo: Quartier Latin, 2021.
Caso curioso de dolo acidental foi julgado pelo TJRJ. A hipótese envolvia contrato de compra e venda de uma pintura: a vendedora pensava ter alienado quadro de autor desconhecido quando, na realidade, a obra era de renomado pintor. A compradora saiba dessa circunstância e dolosamente a omitiu. O tribunal decidiu que a vendedora deveria ser indenizada pela “diferença entre o preço constante do recibo e aquele mais vantajoso que sem o dolo acidental teria sido estabelecido em uma venda de particular para o comerciante de arte, como for apurado em liquidação por arbitramento” (Apel. 0000917-98.1992.8.19.0000, Rel. Des. Elmo Arueira, j. 7.10.1992).
O método objetivo, também designado método do valor real da coisa, tem aplicação simples: basta ajustar as condições contratadas (ex., preço) sob efeito do dolo ao valor real do bem jurídico, tal como existia à época da conclusão do contrato indesejado. MOTA PINTO é expressamente contrário ao uso desse método em casos de dolo acidental, por entender que a fórmula considera exclusivamente o valor patrimonial do bem, ignorando qualquer situação hipotética em que as partes estariam na ausência do ilícito – em especial, ignorando as condições que “de outro modo” teriam sido contratadas (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. v. II. Coimbra: Coimbra Ed., 2008, pp. 1.441 e 1444, nota 4138).
FEDERICI, Italo. Dolo incidente e regole di correttezza. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2010, p. 61 (trad. livre; realce no original).
Ao tratar do tema sob a ótica do dolo, Judith MARTINS-COSTA chama atenção para esse caráter “colaborativo” da vítima do engano: “A particularidade dessas espécies está em que a atividade do agente se desenvolve por meio da ação colaborativa do sujeito enganado, atingindo a sua liberdade de dispor” (Os regimes do dolo civil no Direito brasileiro. cit., p. 116; realce nosso).
“[A] ampliação do espectro de atuação da responsabilidade civil não a transformou em remédio que tudo cura. Embora flexibilizados, os elementos para sua incidência são bem definidos e, ausente qualquer deles, não há que se cogitar de indenização, ainda que os demais estejam presentes” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Enriquecimento sem causa por lucro da intervenção e responsabilidade civil: funções distintas, mas complementares. in Agire. Direito Privado em Ação, publicado em julho/2022. disponível online: <https://agiredireitoprivado.substack.com>; realce nosso). V. tb. Enunciado n. 659, aprovado na IX Jornada de Direito Civil: “O reconhecimento da dificuldade em identificar o nexo de causalidade não pode levar à prescindibilidade da sua análise”.
STEINER, Renata Carlos. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 153.
A tese da “presunção do comportamento conforme a informação” em casos de dano pré-contratual se desenvolveu com profundidade no direito alemão. A respeito, v. p. ex., CANARIS, Claus-Wilhelm. Die Vermutung aufklärungsrichtigen Verhaltens und ihre Grundlagen. in Festschrift für Walther Hadding zum 70, 2004; GRIGOLEIT, Hans Christoph. Vorvertragliche Informationshaftung: Vorsatzdogma, Rechtsfolgen, Schranken. München: Beck, 1997.
ANCONA LOPEZ, Teresa. A presunção no direito, especialmente no direito civil. in RT, n. 513, São Paulo, 1978, p. 28.
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações. Introdução à responsabilidade civil. v. I, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 502. V. tb. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2005, pp. 260-2.
STJ, REsp. 1786046, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 9.5.2023 (“Dentro do sistema de persuasão racional, as regras de experiência pavimentam a construção do raciocínio lógico e estruturado que põe limites à atividade jurisdicional e permite prolação de uma decisão verdadeiramente fundamentada”); STJ, REsp. 582074, Rel. Min. Castro Meira, j. 4.4.2006 (“A presumptiones hominis ou presunção natural não está vinculada apenas à experiência pessoal do magistrado, mas também por inferência em relação às provas extraídas dos autos”).
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. cit., p. 189 (realce nosso).
HUMBERTO THEODORO JR., ao tratar da prova do dolo em geral, explica que os fatos externos ao engano – i.e., as manobras fraudulentas – devem ser demonstrados por provas diretas, mas “a repercussão deles sobre o psiquismo das partes bem como o nexo causal entre eles e a viciada manifestação de vontade, em regra somente podem ser estabelecidos a partir de presunções construídas sobre os elementos da conduta dolosa objetivamente demonstrada, segundo a experiência do que comumente acontece” (Comentários ao novo Código Civil: dos defeitos do negócio jurídico. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 129). Ou seja, autoriza-se ao julgador construir o cenário hipotético por meio de presunções, desde que pautadas em elementos concretos disponíveis no caso concreto.
Como explica MARINO (Interpretação do negócio jurídico. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 160 e 179-80), bem compreendido, o processo de interpretação deve ser dividido em duas fases: recognitiva e complementar. A primeira volta-se a reconhecer o conteúdo atribuído pelas próprias partes à declaração negocial. A segunda visa a sanar eventual deficiência da declaração negocial identificada na primeira fase, por meio da correção de ambiguidades ou preenchimento de lacunas. Na interpretação de negócios jurídicos intervivos, a primeira fase tem natureza subjetiva, busca a vontade comum declarada dos contratantes com base nos meios interpretativos disponíveis (linguagem, contexto verbal, contexto situacional etc.); já a segunda tem natureza objetiva, visa a sanar lacunas com base em critérios pré-definidos pelo legislador (em especial, boa-fé objetiva e usos).
“Se o engano doloso recaiu sobre o preço pago, e não estão expressos os critérios de formação do preço contratual, hão de ser averiguados os critérios usuais no tipo de transação em causa, é dizer, o complexo de fatores econômicos e estratégicos objetivamente detectáveis em vista de negócios similares, incidindo à espécie a regra hermenêutica do art. 113 do CC: os negócios serão interpretados segundo os usos – vale destacar, as práticas habitualmente seguidas – em certo local e em certo ‘ramo de negócios’, advertência tanto mais importante quando o contrato se qualifica como contrato empresarial” (MARTINS-COSTA, Judith. Os regimes do dolo civil no Direito brasileiro. cit., p. 123 (realce nosso).
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. A boa-fé na formação dos contratos. in Doutrinas essenciais de responsabilidade civil. v. 2, São Paulo: RT, 2011, p. 416.