#155. Na pauta do STJ: incidência de cláusula penal moratória e resolução da relação obrigacional
Voltam à pauta da AGIRE nesta semana os efeitos da resolução da relação obrigacional. Trata-se, mais especificamente, de analisar a possibilidade de o credor, diante da conversão da mora em inadimplemento absoluto, pleitear a condenação do devedor ao pagamento (i) dos valores decorrentes da incidência da cláusula penal moratória durante o período da mora, bem como (ii) de indenização em razão da resolução ao fim determinada. O tema foi objeto de decisão proferida pela 4ª Turma do STJ, no âmbito dos EDcl no AgInt no AREsp nº 2.390.955/RJ.1
O caso
Em julho de 2012, incorporadora e adquirente firmaram instrumento particular de promessa de compra e venda de imóvel em empreendimento residencial em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. O contrato previa que a obra seria concluída em 31 de outubro de 2013, admitindo-se, todavia, a ocorrência de adiantamento ou atraso de até 180 (cento e oitenta) dias; em caso de atraso imputável à incorporadora após o prazo de tolerância, o adquirente faria jus à “indenização mensal (ou fração, calculado pro rata die), no valor correspondente a 0,5% (meio por cento) do preço do imóvel, reajustado”, nos termos da cláusula 7.3.1.2 do contrato.2
A obra foi paralisada. De acordo com a incorporadora, as causas da interrupção teriam sido entraves administrativos junto ao Poder Público local e a escassez de materiais decorrente do aquecimento do setor da construção civil em razão das obras para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas no Brasil. A seu ver, tais fatores configurariam caso fortuito ou força maior, a autorizar a “rescisão” do contrato, nos termos do artigo 393 do Código Civil.3
Todos os adquirentes foram, então, convidados a formalizar o distrato com devolução integral dos valores pagos. Um dos adquirentes recusou a proposta apresentada. A incorporadora ajuizou “ação de rescisão contratual c/c consignação em pagamento”. O réu apresentou contestação com reconvenção. No que interessa para esta coluna, alegou a insuficiência do valor depositado e o inadimplemento da incorporadora, e pleiteou a restituição integral dos valores até então adimplidos atualizados, o pagamento de indenização por danos morais e o cumprimento da cláusula penal moratória. Em réplica, a autora argumenta que a cláusula penal somente incidiria em casos de entrega efetiva da unidade com atraso, não já de resolução por força maior.
A sentença e o acórdão de segunda instância
Em abril de 2020, o Juízo da Vara Única de Mangaratiba julgou a ação improcedente e a reconvenção parcialmente procedente. No entender do juízo, a autora não comprovou que a paralisação das obras decorreu de caso fortuito ou de força maior; de outro lado, reconheceu a incidência da cláusula penal moratória no período da mora, que teria se estendido entre o fim do prazo de tolerância e a data da proposta de distrato.4
Em novembro de 2020, a autora apresentou apelação, reafirmando, dentre outros argumentos, a impossibilidade de cumulação da resolução da relação obrigacional com a condenação ao pagamento de cláusula penal moratória. Em fevereiro de 2022, o Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, monocraticamente, negou provimento à apelação, mantendo a sentença na íntegra. Apresentado agravo interno, a 10ª Câmara Cível do TJRJ, por unanimidade, negou-lhe provimento.5 Em novembro de 2022, a autora apresentou recurso especial.
O acórdão do STJ
Após a decisão do Vice-Presidente do TJRJ inadmitindo o Recurso Espacial e os diversos recursos que lhe seguiram, em abril de 2025 a 4ª Turma do STJ acolheu, por unanimidade, os embargos de declaração com efeitos infringentes no agravo interno no agravo em recurso espacial, e afastou a incidência da cláusula penal moratória. De acordo com a Relatora Ministra Isabel Gallotti, lastreando-se na decisão proferida também pela 4ª Turma no AgInt do RESp nº 1881482/SP,
“(...) se o credor opta pela resolução do contrato de compra e venda, só poderá pedir de forma cumulada a indenização relacionada aos danos que sofreu pela alteração da sua posição contratual, sendo ressarcido na importância necessária para colocá-lo na mesma situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo). Nesta hipótese, decretada a resolução do contrato, com a restituição das parcelas pagas pelo comprador, o retorno das partes ao estado anterior (arts. 475 c/c 182, ambos do Código Civil) implica a restituição da quantia paga devidamente corrigida e acrescida dos juros legais (Súmula 543 do STJ), abarcando também o interesse contratual negativo, o qual deve ser comprovado”.
De acordo com a Relatora, o mesmo fundamento que justificou o afastamento dos lucros cessantes presumidos na decisão acima referida, deve também ser considerado para afastar a incidência da cláusula penal moratória em caso de resolução da relação obrigacional. A seu ver,
“(…) outorgar ao comprador, no caso de resolução, a restituição da cláusula penal por conta do atraso de um imóvel que, em uma análise hipotética e abstrata, não mais estaria em seu patrimônio – em razão do retorno ao status quo ante pelo pedido resolutório – levaria ao enriquecimento da parte compradora, tendo em vista que a cláusula, na situação presente, possuía como função primordial compensar o inadimplemento da parte autora na entrega do bem imóvel em discussão”.
Reflexões sobre o tema
Há viva controvérsia na doutrina brasileira acerca do interesse a ser indenizado diante de resolução da relação obrigacional por inadimplemento absoluto; a divergência existe, inclusive, entre as autoras da AGIRE, como apresentado na edição comemorativa do número 100 da newsletter (#100 Parte I, #100 Parte II e #100 Parte III).
A questão posta na decisão em comento, todavia, é outra. Partindo da premissa de que a indenização deve ser estabelecida com base no interesse negativo, discute-se se é possível, diante de resolução, condenar o devedor a pagar os valores decorrentes da incidência da cláusula penal moratória durante o período da mora. E a resposta da 4ª Turma foi negativa, ao argumento de ser incompatível com o retorno ao status quo ante promovido pela resolução a incidência da cláusula penal moratória, cuja função é compensar o atraso na entrega do imóvel, o que nunca ocorreria com a resolução.
Sem tomar partido nesta controvérsia, apresentam-se alguns aspectos para fomentar o debate.
Em primeiro lugar, conforme já se afirmou em outra sede, a resolução não visa conduzir o credor a um status quo ante estático. “Cuida-se, a toda evidência, do que se prefere designar de ‘status quo ante dinâmico’: não pretende o credor simplesmente ser colocado na situação em que estaria antes de celebrar o contrato inadimplido, mas na hipotética situação econômico-jurídica em que poderia estar se não tivesse celebrado o contrato inadimplido”.6
Em segundo lugar, a resolução não “apaga” a existência do contrato. É artificial imaginar que, com a resolução, o contrato desapareça do mundo jurídico e que a relação por ele estabelecida nunca tenha existido. De fato, diversas obrigações podem permanecer hígidas mesmo com a resolução da relação obrigacional, a exemplo das obrigações de confidencialidade e de não concorrência, que vinculam as partes durante o período em que o contrato produziu efeitos e mesmo após a resolução.
Nessa esteira, se o devedor divulga informação sigilosa durante a vigência do contrato, a posterior resolução por inadimplemento da prestação principal não o exime de indenizar os prejuízos resultantes da violação da obrigação de confidencialidade, ou mesmo de pagar o valor previsto em cláusula penal especialmente estabelecida para essa finalidade. A resolução, portanto, não “apaga” o inadimplemento da obrigação de confidencialidade e, tampouco, os danos sofridos pelo credor.
Se isso é verdade, há de se refletir se raciocínio semelhante se aplica à mora da obrigação principal. Trata-se de saber se, em caso de transformação da mora em inadimplemento absoluto com a consequente resolução da relação obrigacional, os prejuízos experimentados pelo credor durante a mora também devem ser indenizados. E, em caso positivo, deve-se analisar como fazê-lo: é possível aplicar a cláusula penal moratória ao lado da indenização pelos danos decorrentes da resolução ou os danos sofridos durante a mora devem ser considerados no cálculo da indenização com base no interesse negativo?
Para facilitar o raciocínio, inverta-se o polo inadimplente no caso em análise. Imagine-se que o promitente comprador deixe de pagar as parcelas do preço. Diante do prolongamento da mora, o promitente vendedor resolve a relação obrigacional. Ao pleitear a indenização com base no interesse negativo, poderá cobrar também o valor da cláusula penal moratória que teria incidido durante o período da mora?
Pense-se, agora, que esse mesmo promitente comprador, após alguns meses em mora, pague todas as parcelas em atraso acompanhadas dos valores previstos na cláusula penal moratória, mas, tempos depois, volte a inadimplir irremediavelmente, e que o promitente vendedor resolva a relação obrigacional. Ao devolver as parcelas pagas (por força do efeito restitutório da resolução), o promitente vendedor deverá também restituir aqueles valores correspondentes à cláusula penal moratória?7
As respostas às indagações envolvem, como a leitora e o leitor podem perceber, a análise de questões diversas, que não se reduzem apenas à discussão sobre o interesse indenizável na resolução.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: incidência de cláusula penal moratória e resolução da relação obrigacional. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 155, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire155>. Acesso em DD.MM.AAAA
Fica expressamente convencionado que, ressalvada a ocorrência de força maior, se o atraso na entrega da Unidade Autônoma, nas condições definidas no item 7.3.1., exceder o prazo estabelecido no item anterior, por razões imputáveis à VENDEDORA, ela pagará ao ADQUIRENTE indenização mensal (ou fração, calculado pro rata die), no valor correspondente a 0,5% (meio por cento) do preço do imóvel, reajustado”.
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Resolução por inadimplemento: o retorno ao status quo ante e a coerente indenização pelo interesse negativo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020, p. 5. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/507/381.
A Lei 6766/79 contempla previsão a esse respeito, no art. 32-A. “Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens: (…) III - os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;”.
Sobre o tema, confira-se decisão do TJSP: “COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Pretensões declaratória de resilição contratual e de restituição de quantia paga julgadas procedentes – Obrigação da vendedora de restituir a quantia paga pelo comprador, com retenção de 20% – Percentual que se entende suficiente para compensar os danos experimentados pela vendedora em decorrência da resilição de iniciativa do comprador - Solução em consonância com a jurisprudência prevalente sobre o tema – Taxa de fruição do lote inexigível, dada a inexistência de edificação – Possiblidade de retenção, pela ré, de quantia correspondente a débitos de IPTU e encargos moratórios – Juros de mora incidentes sobre a quantia a ser restituída que devem ser computados desde a citação – Precedente do STJ – Apelação parcialmente provida.” Lê-se, ainda, no voto do Relator: “Observe-se também que os encargos da mora das parcelas quitadas em atraso também poderão ser retidos, a termo do disposto no artigo 32-A, inciso III, da Lei n.º 6766/79.” (TJSP, Ap. Cív. 1001785-43.2024.8.26.0291, 33ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Sá Duarte, j. 16/05/2025).