#161. Na pauta do STJ: o pedido de esclarecimentos “interrompe” o prazo para propositura de “ação anulatória” de sentença arbitral?
A questão estampada no título da coluna foi suscitada pelo Recurso Especial n.º 2179459,1 julgado pela Terceira Turma, cuja missão foi decidir se o prazo para a propositura de ação visando à decretação de nulidade da sentença arbitral (“ação anulatória”2) tem início após o recebimento da notificação (i) da respectiva sentença ou (ii) da decisão do pedido de esclarecimentos, ainda que este venha a ser inteiramente rejeitado, como aconteceu no caso concreto. Por ser muito singela, a discussão jurídica não emociona – pelo menos, à primeira vista –, mas a decisão, em si, tem aspectos que merecem atenção. Como o objetivo da coluna é tratar do termo inicial do prazo para propositura da “ação anulatória”, leitoras e leitores da AGIRE ficam desde já advertidos de que as razões que fundamentam a alegada nulidade da sentença arbitral não interessam ao texto, tampouco foram objeto da análise do STJ.
A trilha do caso
Em síntese, trata-se de “ação anulatória” de sentença arbitral proferida em procedimento administrado pela 2ª Câmara de Conciliação e Arbitragem de Goiânia, em cuja audiência de instrução ficou acordado que as notificações que intimam as partes sobre as decisões do tribunal arbitral seriam “publicadas internamente na secretaria da câmara, em datas previamente definidas”. Sempre que se discute contagem de prazo, o que mais interessa, naturalmente, são os marcos temporais, então eis as datas que importam:
Em 15.07.2021, a sentença arbitral foi “publicada internamente na secretaria”.
Em 12.08.2021, foi “publicada internamente na secretaria” a decisão que julgou o pedido de esclarecimentos.
Em 10.11.2021, os recorridos ajuizaram a ação pretendendo a declaração de nulidade da sentença arbitral.
Como a referida “ação anulatória” foi ajuizada em menos de 90 dias da data de publicação da decisão que julgou o pedido de esclarecimentos, o tribunal de origem entendeu que o ajuizamento se deu dentro do prazo previsto no art. 33, §1º, da Lei n.º 9.307/1996 (“Lei de Arbitragem”). A ré, porém, não se conformou, porque o pedido de esclarecimentos – a seu ver, meramente protelatório – havia sido inteiramente rejeitado pelo tribunal arbitral e, contando-se o prazo para propositura da ação a partir da “publicação internamente na secretaria” da sentença arbitral, o autor estaria quase um mês fora do prazo. Com base nesse fundamento, a ré interpôs o seu Recurso Especial.
O histórico legislativo
De acordo com o art. 33 da Lei de Arbitragem, “[a] parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei”. A redação original do parágrafo primeiro desse dispositivo estabelecia que “[a] demanda para a decretação de nulidade da sentença arbitral seguirá o procedimento comum, previsto no Código de Processo Civil, e deverá ser proposta no prazo de até noventa dias após o recebimento da notificação da sentença arbitral ou de seu aditamento”. Tal como originalmente redigido, o dispositivo suscitava dúvidas, seja porque não fazia menção expressa à sentença parcial, seja porque o termo “aditamento” não era lá muito preciso.
Com o advento da Lei n.º 13.129/2015, o parágrafo primeiro ganhou nova redação: “A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos”. Assim, de uma só vez, o legislador resolveu os dois pontos de dúvida: não só passou a fazer menção expressa à sentença parcial e à final, como também substituiu o termo “aditamento” por uma referência à decisão do pedido de esclarecimentos.
A partir dessa alteração, não há dúvida de que, em caso de pedido de esclarecimentos, o marco inicial do prazo não será a data do recebimento da notificação da sentença original, mas, sim, a do recebimento da notificação da decisão do pedido de esclarecimentos, que passa a integrar a sentença. Embora a nova redação não deixe explícito que o termo inicial será o mesmo, independentemente de o pedido de esclarecimentos ser inteiramente acolhido ou totalmente rejeitado, o fato é que, se a lei não fez qualquer distinção nesse sentido, não cabe ao intérprete fazê-lo.3 Se o pedido de esclarecimentos estiver fora das hipóteses legais de cabimento, deverá ser rejeitado, mas isso não interfere no termo inicial do prazo, que continuará sendo, como dispõe claramente o §1º do art. 33 da Lei de Arbitragem, a data do recebimento da notificação da decisão do pedido de esclarecimentos.
A decisão da Terceira Turma
O Recurso Especial foi conhecido pela Terceira Turma, mas desprovido, porque se entendeu, com razão, que o ajuizamento da “ação anulatória” em 10.11.2021 havia sido tempestivo, por ter ocorrido dentro do prazo de 90 dias previsto no art. 33, §1º da Lei de Arbitragem. O problema é que a Terceira Turma também afirmou, citando abalizada doutrina,4 que “[o] pedido de esclarecimentos interrompe o prazo para ajuizamento da ação anulatória da sentença de arbitragem, mesmo que não tenha sido acolhido”. É precisamente nessa afirmação em que reside o nosso ponto de discordância.
A origem do problema
No Brasil, as diferenças entre a arbitragem e o processo judicial são discutidas desde o advento da Lei n.º 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”). A incidência das normas do Código de Processo Civil em procedimentos arbitrais também já foi intensamente debatida e mesmo colocada em xeque pela própria Terceira Turma do STJ, em decisão que já se ventilou por aqui (vide AGIRE#125). Apesar disso, a arbitragem tem alguns pontos de aproximação com o processo civil, a exemplo do pedido de esclarecimentos, que, em alguma medida, lembra a figura dos embargos de declaração previstos no Código de Processo Civil, embora com este não se confunda.
Em relação aos embargos de declaração, o legislador foi categórico: “Os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a interposição de recurso” (art. 1.026, caput, do CPC). A analogia com os embargos de declaração faz com que grande parte da doutrina, corroborando a decisão do STJ, afirme que o pedido de esclarecimentos, em moldes muito similares, interrompe o prazo para propositura de ação visando à decretação de nulidade da sentença arbitral.5
Pedido de esclarecimento v. embargos de declaração
Embora essa analogia com os embargos de declaração seja tentadora, há, pelo menos, uma diferença fundamental entre essas duas figuras: o pedido de esclarecimentos não é “verdadeiro recurso”,6 nem, propriamente, um meio de impugnação da sentença arbitral, mas antes de esclarecimento e/ou integração. Ou seja, apesar de a função ser parecida, a natureza do pedido de esclarecimentos é completamente diferente da dos embargos de declaração: o pedido de esclarecimentos não é recurso (até porque arbitragem não comporta recursos). E se é assim, pode-se dizer que o prazo de 90 dias previsto no art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem é processual?
Diferenças entre prazos processuais e prazos materiais
Enquanto o prazo processual é o período de tempo definido para a prática de determinado ato processual (art. 218 do CPC7), o prazo material, em geral, é anterior ao processo e diz respeito a direitos materiais. São exemplos de prazos processuais todos aqueles previstos no Código de Processo Civil para interposição de recursos (arts. 1.003, §5º,8 e 1.0239 do CPC). Já os prazos materiais abarcam uma gama enorme e muito variada de exemplos: prazos de vencimento para pagamento de dívidas; prazos para exercício de pretensões (prescrição); prazo para o exercício de direitos potestativos (decadência); prazos para aquisição de direitos (prescrição aquisitiva da usucapião). A forma de contagem também é distinta conforme a natureza do prazo: os prazos materiais contam-se em dias corridos, mas a contagem dos prazos processuais deve ocorrer em dias úteis (art. 219 do CPC10).
O prazo de 90 dias previsto no art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem é o intervalo temporal fixado pelo legislador durante o qual deve ser ajuizada a ação visando à decretação de nulidade da sentença arbitral. Como o que se coloca em berlinda, por meio do ajuizamento dessa ação, é a própria validade da sentença arbitral, é evidente que se trata de um prazo de direito material,11 anterior ao processo, e não de um prazo processual, tanto é que se conta em dias corridos, e não em dias úteis. Decorrido in albis esse prazo de 90 dias, verifica-se o perecimento do direito de demandar a decretação de nulidade da sentença arbitral, passando a incidir todos os efeitos da coisa julgada arbitral.
A natureza do prazo previsto no art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem
O período de 90 dias estabelecido no art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem é claramente um prazo (material) de decadência,12 e não de prescrição. Enquanto a prescrição está relacionada à perda da pretensão (possibilidade de exigir um direito) devido à inércia de seu titular por um período determinado, a decadência, por sua vez, se refere à extinção do próprio direito material em razão do seu não exercício dentro do prazo legal. Na prescrição, o direito ainda existe, mas a pretensão (possibilidade de exercê-lo judicialmente) se extingue; na decadência, é o próprio direito que caduca por completo. Além disso, a prescrição pode ser interrompida ou suspensa por diversos fatores previstos na lei, ao passo que a decadência, por se tratar de um prazo improrrogável – e, por isso mesmo, fatal –, não admite tais mecanismos. Exatamente por isso, não é acurado afirmar que o pedido de esclarecimentos “interrompe” o prazo para propositura da ação visando a decretação de nulidade da sentença arbitral.
Assim, o prazo decadencial de 90 dias para a propositura da ação anulatória tem início na data do recebimento da notificação da respectiva sentença, mas o legislador estabeleceu outro termo inicial, caso seja apresentado pedido de esclarecimentos: a data do recebimento da notificação da decisão do pedido de esclarecimentos. Não se trata, portanto, de uma hipótese de interrupção, porque os prazos decadenciais não se interrompem, mas antes de uma hipótese em que o legislador estabeleceu dois marcos iniciais da decadências diferentes, para o caso de haver ou não pedido de esclarecimentos. Uma vez expirado o prazo de 90 (noventa) dias sem o ajuizamento da correspondente ação judicial, o direito de pleitear a nulidade da sentença arbitral se extingue de forma definitiva, inviabilizando qualquer possibilidade de discussão futura sobre os aspectos que fundamentariam tal declaração de nulidade.
Purismo?
Se a leitora ou o leitor da AGIRE estiver imaginando que se trata de uma preocupação exagerada com os conceitos – autêntico purismo – ou mesmo de uma defesa intransigente do rigor científico, definitivamente não é esse o caso. A questão gera repercussões de ordem prática. Quando se afirma que o pedido de esclarecimentos interrompe o prazo para propositura da “ação anulatória”, de duas uma: (i) ou bem se está admitindo, nas entrelinhas, que o pedido de esclarecimentos é um recurso, tal qual os embargos de declaração (e, se é assim, o prazo de 90 dias previsto no art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem seria, então, processual); (ii) ou bem se está entendendo que o referido prazo é material, mas tem natureza prescricional.
Na hipótese (i), o problema está na contagem do prazo: se o prazo é processual, os 90 dias deveriam ser contados em dias úteis, o que é incompatível com a celeridade que se pretende conferir à arbitragem, pois alargaria muito o prazo para propositura da “ação anulatória”. Já na hipótese (ii), sendo o prazo de prescrição, ficaria não só sujeito a ser interrompido (observem o perigo: não necessariamente pela apresentação de pedido de esclarecimentos), mas também suspenso. É por isso que é sempre melhor se manter fiel aos conceitos: o pedido de esclarecimentos não interrompe o prazo para propositura de ação visando à decretação de nulidade da sentença arbitral, mas, quando é apresentado, o legislador desloca o termo inicial da decadência para o recebimento da notificação da decisão do pedido de esclarecimentos, ainda que este venha a ser inteiramente rejeitado. E por falar em “termo inicial”, a coluna aproveita para informar que amanhã é o termo inicial das nossas férias. A AGIRE volta em agosto (com novidades)!
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora Associada de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Diretora de arbitragem do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: o pedido de esclarecimentos “interrompe” o prazo para propositura de “ação anulatória” de sentença arbitral? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 161, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire161>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 3ª T., REsp 2179459/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.04.2025, v.u., DJ 25.04.2025.
Como vem sendo chamada pela comunidade arbitral, muito embora o seu objetivo seja a decretação de nulidade da sentença arbitral, e não a sua anulação.
Como lembrava Carlos Maximiliano: “Ubi lex distinguit nec non dtstinguere debemus: ‘Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir’. Quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas” (Hermenêutica e aplicação do direito, 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 201).
Para corroborar o ponto, a Terceira Turma do STJ citou duas boas referências: ABDALLA, Letícia Barbosa e Silva; IÓRIO, Renata Lorenzi, “Art. 33.” In: WEBER, Ana Carolina; LEITE, Fabiana de Cerqueira. Lei de arbitragem comentada: lei nº 9.307/1996 [Proview], 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. RL-1.8.; e, ainda, ALVES, Rafael Francisco, “Sentença arbitral”. In: LEVY, Daniel; SETOGUTTI, Guilherme Setogutti J. Pereira, Curso de arbitragem [Proview], 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. RB-7.2.
Além das duas referências citadas pelo STJ, há muitas outras que poderiam ser mencionadas, a exemplo de: MESSA, Ana Flávia; ROVAI, Armando Luiz. Manual de arbitragem [Minha Biblioteca]. São Paulo: Almedina, 2021, p. 206; CARREIRA ALVIM, J.E.. Direito Arbitral, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 366.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 383-384.
“Art. 218. Os atos processuais serão realizados nos prazos prescritos em lei. § 1º Quando a lei for omissa, o juiz determinará os prazos em consideração à complexidade do ato. § 2º Quando a lei ou o juiz não determinar prazo, as intimações somente obrigarão a comparecimento após decorridas 48 (quarenta e oito) horas. § 3º Inexistindo preceito legal ou prazo determinado pelo juiz, será de 5 (cinco) dias o prazo para a prática de ato processual a cargo da parte. § 4º Será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo”.
Art. 1.003, §5º, do CPC: “§ 5º Excetuados os embargos de declaração, o prazo para interpor os recursos e para responder-lhes é de 15 (quinze) dias”.
Art. 1.023, caput, do CPC: “Art. 1.023. Os embargos serão opostos, no prazo de 5 (cinco) dias, em petição dirigida ao juiz, com indicação do erro, obscuridade, contradição ou omissão, e não se sujeitam a preparo”.
“Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais”.
SCHMIDT, Gustavo da Rocha; FERREIRA, Daniel Brantes; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 298.
Nesse sentido: PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; MAZZOLA, Marcelo. Manual de mediação e arbitragem [Proview], 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 415; MARINONI, Luiz Guilherme; LEITÃO, Cristina Bichels. Arbitragem e direito processual [Proview]. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. RB-23.6; GUERRERO, Luis Fernando. Lei de arbitragem interpretada [Minha Biblioteca]. São Paulo: Almedina, 2023, p.158.