#17. Descumprimento contratual: cumprimento específico da obrigação (II)
O AGIRE # 8 iniciou contato com aquele que é tido como remédio preferencial contra o inadimplemento contratual: o cumprimento específico do contrato. O tema é agora retomado sob óptica distinta, analisado na interface entre o tratamento material e processual.
O CPC/2015, seguindo sistemática consolidada sob a égide do CPC/73, contém regras gerais sobre tutela específica das obrigações de dar coisa, fazer e de não fazer. Tais regras estão hoje consolidadas, na fase de conhecimento, nos artigos 497 a 501 do CPC. Ao lado delas, encontra-se tratamento análogo na fase de cumprimento de sentença e no processo de execução, cujas regras também se dividem em atenção à prestação que se pretende ver cumprida: entrega de coisa; fazer e não fazer e pagamento de quantia certa.
Desde ao menos as Reformas processuais de 1994 e de 2002, responsáveis por inserir no CPC/73 o famoso art. 461, sobre cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer e art. 461-A, voltado ao cumprimento da obrigação de dar coisa, respectivamente, houve intenso desenvolvimento da temática sobre o cumprimento específico de obrigações e deveres pela doutrina processual. O Direito Civil pode e deve absorver esses desenvolvimentos, em um diálogo que se mostra profícuo, embora pouco frequente. Para que isso se dê de forma adequada, algumas constatações preliminares são necessárias:
A primeira constatação diz respeito ao alcance das regras processuais sobre tutela específica. As regras processuais não foram concebidas e não se circunscrevem ao cumprimento de obrigações de origem contratual. Elas visam ao cumprimento de deveres em geral, inclusive aqueles legais e não apenas de obrigações. Daí decorre que, como regras gerais e amplas, o tratamento processual deve ser lido em compatibilidade com o regramento de Direito material.
A segunda constatação diz respeito ao fato de que é o direito material que determina o cabimento ou não do cumprimento específico. O Direito processual apresenta-se, nesse contexto, como instrumental ao cumprimento de um direito reconhecido pelo Direito material. A constatação reforça o quanto afirmado no parágrafo anterior, no sentido de que os mecanismos processuais devem ser lidos em conformidade com o direito material tutelado, acolhendo respostas a ele adequadas.
A terceira constatação diz respeito à compreensão adequada da linguagem empregada pelo Direito processual. Há uma linguagem própria do processo civil, que não necessariamente encontra correspondente no Direito material. Com efeito, enquanto o Código Civil é silente sobre o cumprimento específico da obrigação – quiçá somente fazendo referência a ele, e de forma muito indireta, no art. 9471, que faz referência a “cumprir a prestação na espécie ajustada” – o CPC é profícuo em regras sobre esse tema e utiliza-se de linguagem própria, como a referência à “tutela específica” e à “tutela pelo resultado prático equivalente”, essa última quando do tratamento do cumprimento dos deveres de fazer e de não fazer (art. 497, CPC) e que se presta a designar a obtenção da prestação por terceiro, quando cabível. Colocar a interface de regras e nomenclaturas na ordem do dia é medida salutar.
Isso considerado, os desafios da leitura conjunta entre regras processuais e direito material é exemplificado à luz do que dispõe o art. 499 do CPC, o qual tem a seguinte redação:
Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
A literalidade do art. 499 CPC leva à conclusão de que o cumprimento específico é “convertido em perdas e danos”, quando impossível a tutela in natura ou quando o autor assim requerer. Tais conclusões devem ser submetidas ao crivo do Direito contratual.
No que diz respeito às hipóteses de conversão em tutela pecuniária, não há, no Direito material, uma autorização geral para alteração do conteúdo prestacional por escolha do credor. A sua vontade não é, de regra, fundamento para que o cumprimento específico deixe de ser exigível e para que, em seu lugar, surja o dever de pagamento pecuniário.
Deve-se, assim, proceder a uma “leitura conforme” do texto processual, de forma que o pedido do autor somente possa ser levado em consideração para o efeito de afastar o cumprimento específico quando, à luz do Direito material, ele tenha o direito de assim proceder. Tais circunstâncias foram listadas no AGIRE # 8, ao qual se remete a leitora e o leitor.
Já no que toca ao conteúdo da conversão em tutela pecuniária, uma leitura conforme o Direito contratual é mais tormentosa.
A começar, diga-se que o preenchimento do que está englobado dentro do pagamento pecuniário há de ser obtido à luz do Direito material, de forma que a menção no texto processual à “conversão em perdas e danos” não é indicativa nem limitadora de seu conteúdo.
Mas é no retorno ao Direito material que a discussão em torno do art. 499 CPC aponta o dedo para uma ferida ainda em aberto e que reclama definição urgente no Direito Civil: afinal, não sendo mais exigível o cumprimento específico da obrigação e sendo devido, no seu lugar, pagamento de uma soma pecuniária, como se dá a sua composição e qual a natureza desse pagamento?
A composição da indenização encontra início de tratamento no Código Civil quando do tratamento da impossibilidade culposa (rectius, imputável), em que o legislador, ao menos nas obrigações de dar, determinou caber ao lesado receber o equivalente da prestação impossibilitada, acrescido de perdas e danos (ex vi art. 234, parte final, CC2). Igual regra não é encontrada no tratamento das obrigações de fazer e de não fazer, em que o legislador civil se limitou a referir ao pagamento de perdas e danos em caso de impossibilidade culposa (rectius, imputável) (ex vi art. 2483 e 251 CC4).
A menção ao pagamento do equivalente, acrescido de perdas e danos, é indicativa de que o pagamento pecuniário que vem no lugar do cumprimento específico pode abranger o valor da prestação não cumprida – entendimento que também encontra guarida também no já mencionado art. 947 CC.
Mas, então, o que dizer de sua natureza jurídica?
Já ciente da posição da minha querida amiga Aline Terra, no sentido de que o equivalente não tem conteúdo indenizatório, mas de sub-rogação objetiva da prestação (a demanda é, na visão dela, de cumprimento do contrato, embora voltada à realização de um programa contratual remodelado)5, provoco: estou tendente a considerar que esse pagamento pecuniário nada mais é do que indenização no lugar da prestação ou, em termos mais sintéticos, de indenização pelo interesse positivo e que, internamente, pode abarcar o dano pela falta da prestação em si considerada (o “equivalente”), acrescido dos demais danos que decorrem da falta de cumprimento.
Que o texto se converta, com o perdão do trocadilho, em início de frutuoso debate, já não sem tempo de ocorrer. E, se houver espaço para afirmar a existência de uma tradição, fica prometido que o equivalente da prestação será o tema a ser enfrentado no meu próximo “Em Foco”.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP e na Universidade Presbiteriana Mackenize.
Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
Art. 947. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.
Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.
Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.
Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.