# 22. Aviso prévio e investimentos: o parágrafo único do art. 473 CC
No REsp 1874358/SP discutiu-se a relação entre o prazo de aviso prévio contratado e a previsão do parágrafo único do art. 473 CC1, que dispõe sobre a duração do pactuado vis-à-vis investimentos de alta monta realizados para sua execução.
Na origem, as decisões em 1º e 2º graus concluíram que a observância do prazo de aviso prévio contratado impedia a qualificação da resilição como abusiva. Segundo o acordão do TJSP, o disposto no art. 473, parágrafo único, CC somente é aplicável quando não houver prazo de aviso prévio contratado: “… tal disposição legal somente poderia ser aplicada em caso de silêncio das partes neste sentido. Não é o presente caso, afinal as próprias partes já haviam cuidado de estabelecer o prazo que entendiam razoável para a produção dos efeitos da denúncia unilateral.”
No STJ, a decisão foi reformada sob entendimento de que o prazo de aviso prévio contratado não afasta a necessidade de observância do prazo razoável à recuperação de investimentos de alta monta feito por um dos contratantes. Segundo o decidido, "… o prazo expressamente avençado para o aviso prévio será plenamente eficaz desde que o direito à resilição unilateral seja exercido por uma parte quando já transcorrido tempo razoável à recuperação dos investimentos realizados pela outra parte para o devido cumprimento das obrigações assumidas no contrato (…).”
O voto da Min. Nancy Andrighi, limitado pelas premissas fáticas da instância a quo, faz textual referência às seguintes passagens do acórdão do TJSP: "as autoras promoveram investimentos para ampliação dos serviços prestados à ré"; “diversos aditivos foram assinados posteriormente para ampliação dos serviços e da respectiva contraprestação"; havia "expectativa das autoras pela manutenção dos contratos que representavam grande parte do faturamento"; ficou “claro que as autoras sofreram certo prejuízo com a resilição contratual” e, por fim "o prazo do aviso prévio, (...) de acordo com a perícia contábil, realmente não foi suficiente para absorver o custo de desmobilização havido com demissões de funcionários”.
À luz de tais premissas, a conclusão foi a de que houve desrespeito ao prazo compatível com a natureza do contrato e o vulto dos investimentos e a parte que resiliu o contrato foi condenada a indenizar os danos causados. A decisão, entretanto, não é líquida: ela delimita o pagamento de danos materiais aos “valores dispendidos estritamente necessários ao cumprimento das obrigações assumidas” cujo quantum será apurado em liquidação por arbitramento.
E o que dizem os autos sobre tais dispêndios?
Sem as amarras para reexame de fatos, respeitada na decisão aqui comentada, a coluna “Em Pauta” desceu instâncias em busca de mais informações sobre o caso.
A relação entre as partes
A relação entre os litigantes iniciou-se em 2001, com vigência inicial de 12 meses e possibilidade de prorrogação por manifestação das partes, o que foi feito diversas vezes. De início, o contrato era de prestação de serviços de telemarketing, mas a ele se seguiram outros contratos para a prestação de serviços análogos. O último deles é de 2005 e teve sua vigência prorrogada até setembro de 2007.
Em janeiro de 2007, a tomadora de serviços notificou a prestadora e comunicou que, transcorrido o prazo de aviso prévio contratado em cada um dos instrumentos, o contrato estaria “rescindido de pleno direito”.2 Foi enviada uma notificação para cada contrato vigente, com idêntica redação e fundamento em cláusulas similares a que segue:
“6.1 — O presente contrato poderá ser rescindido, sem a incidência de qualquer penalidade, ressalvadas as obrigações de pagamento e/ou de execução que estiverem em curso, nas seguintes hipóteses:
a) Mediante prévia e expressa manifestação de qualquer das partes com antecedência de, no mínimo, 60 (sessenta) dias; (…)”.3
O pedido indenizatório
Contra a resilição, a prestadora de serviços ajuizou ação indenizatória em que alega ter feito incrementos de pessoal e de espaço ao longo do tempo para atender solicitações da tomadora de serviço e que sua estrutura era quase toda voltada ao cumprimento dos contratos em discussão. Defende ser “inequívoca a necessidade de se avisar, com a devida antecedência, a intenção de rescindir o contrato” e que os prazos ajustados nos contratos e seus aditivos (60 e 90 dias) não eram adequados para essa finalidade. A ação foi ajuizada por duas pessoas jurídicas (referidas aqui em conjunto como “prestadora de serviços”).
Segundo a prestadora, a resilição causou prejuízos evitáveis, houvesse sido concedido o aviso prévio, e a impediu de se adaptar à nova realidade, sem o contrato. Notadamente, sustenta que o cumprimento de aviso prévio adequado teria permitido auferir recursos que seriam empregados para a extinção de contratos de locações de equipamentos, espaços e de empregados e, também, para buscar novos clientes e redirecionar sua atividade empresarial. Formulou, os seguintes pedidos indenizatórios:
(a) danos emergentes, consistentes em custos de desmobilização (verbas rescisórias trabalhistas, estrutura montada para atender a demanda sinalizada pela tomadora, custos de devolução de equipamentos adquiridos para esse cumprimento e pagamento de multas pela extinção prematura de contratos com terceiros).4
(b) lucros cessantes, correspondentes à média de faturamento dos últimos meses de vigência de cada contrato, multiplicada pelo prazo considerado “harmonizável a (sic) importância dos investimentos realizados”, que sugeriu ser de 12 meses5 e
Perícia6
A perícia contábil foi designada para “estabelecer, então, qual seria o prazo razoável” de aviso prévio e “qual o vulto dos investimentos feitos ao longo do tempo”.
Segundo o laudo, entre 2001 e 2007 a prestadora de serviços faturou R$ 35.134.294,18 com os contratos em discussão e esse valor representava 71% e 80% do faturamento das duas pessoas jurídicas que compunham o polo ativo da demanda. A perícia também constatou que entre 2002 e 2006 houve resultado líquido positivo (ou seja, lucro líquido). Os demais achados relevantes são descritos abaixo:
Custos de desmobilização:
indenizações trabalhistas (desligamento sem justa causa) totalizaram R$ 969.597,87;
não foram calculados valores referentes à extinção de contratos de locação e de equipamentos (leasing) por ausência de documentos.
A perita concluiu que seriam necessários 9 meses e 7 dias para suprir os custos de desmobilização. O cálculo foi feito com base no valor das indenizações trabalhistas dividido pela média do lucro da prestadora vinculada aos contratos em questão no ano de 2006 (imediatamente anterior à resilição).7[7]
Investimentos ao longo do contrato:
segundo o laudo, não foram encontrados nem apresentados documentos referentes a investimentos “com infraestrutura, treinamento, pessoal, etc.”, tampouco “foram identificadas contabilizações de valores exclusivamente relacionados a investimentos para execução dos contratos”.
A despeito das afirmações acima, a perita ressaltou que, desde 2001, o saldo das contas de ativos da prestadora de serviço teve aumento ano a ano. A perícia, então, aplicou o percentual de faturamento vinculado aos contratos (71% e 80%) sobre o saldo de 2016 e concluiu que os equipamentos e mobiliários destinados à execução do contrato ao longo de toda a vigência do contrato somavam R$ 2.322.136,91 e R$ 190.530,89 (cada qual para uma das pessoas jurídicas autoras). Em esclarecimentos aos quesitos, a perita confirmou que o cálculo foi feito por inferência, ou seja, “inferindo-se então que 71% desse valor estaria atendendo à prestação dos serviços à Requerida.”
Cálculo do pedido de lucros cessantes:
com a ressalva de que o cálculo se dava sem adentrar no mérito se o pedido era ou não devido, a perita calculou 12 vezes o faturamento médio da prestadora nos últimos 3 meses de vigência do contrato (R$ 1.266.387,06) e chegou a um valor histórico de R$15.196.644,68.
Food for thought
Os achados são um convite à reflexão, especialmente tendo em vista a distinção de funções que o prazo de aviso prévio exerce.8 Com efeito, a função mais vulgar do aviso prévio é permitir a tomada de providências típicas que decorrem do encerramento do contrato, evitando que a extinção ocorra abruptamente. Diversa é a função do prazo referido no art. 473, parágrafo único, CC que se volta à proteção dos investimentos já realizados e à duração mínima do pactuado. Não só, mas especialmente à luz de tal distinção, eis uma liquidação interessante para ser acompanhada de perto.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.
Fls. 138 dos autos.
Fls. 64 dos autos.
“a) a título de danos emergentes, dos custos de desmobilização da estrutura alocada para a Ré, que compreendem, mas não se restringem, as verbas rescisórias trabalhistas devidas e/ou desembolsadas pelas Autoras a seus empregados no período de 180 dias a contar da rescisão contratual que motivou as demissões, aos consectários inerentes à devolução de imóveis e equipamentos contratados, e ainda, aos custos de leasing dos equipamentos ociosos cujos contratos firmados não permitiam a devolução imediata, tudo a ser apurado em perícia oportuna liquidação de sentença.” (fls. 24 dos autos).
“b) a titulo de lucros cessantes, do valor correspondente a 12 vezes a média simples (atualizada monetariamente) do faturamento contratual da Autora Divicall nos últimos três meses de cada contrato antes da resilição imotivada, devendo a indenização ser apurada por perícia no curso da lide ou em liquidação de sentença, conforme determinado por este Douto Juízo.” (fls. 22 e 24, dos autos).
Laudo às fls. 1932 a 1963; esclarecimento às fls. 2294 a 2306.
“Com base no documento de fls. 128, a receita proveniente da Unimed representava 71%, em média, da receita total da Requerente Divicall. Considerando-se que o lucro do ano de 2006 foi de R$1.774.315,51 e que o montante de desmobilização referente a indenizações trabalhistas foi de R$969.597,87, tem-se que seriam necessários 9 meses e 7 dias para suprir esse custo de desmobilização, assim obtidos: 969.597,87/ (1.774.315,51 /12 * 0,71) = 9,24 = 9 meses e 7 dias” (fls. 1940 dos autos).
Sobre o tema , por todos, remete-se à distinção defendida no recém-publicado livro de Hugo Tubone Yamashita: YAMASHITA, Hugo Tubone. Cooperação empresarial. Contratos híbridos e redes empresariais. São Paulo: Almedina, 2022, pp. 279 a 289.