#25. O paradoxo da decisão proferida no REsp. n.º 1965982/SP: patrimônio comum pode responder por dívida individual?
A decisão
No julgamento do Recurso Especial n.º 1965982/SP, a Terceira Turma do STJ, pela primeira vez, aplicou a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica para desconsiderar a personalidade do cotista de um fundo de investimento em participações (“FIP”) e, assim, alcançar o patrimônio do próprio fundo. Embora a decisão tenha reconhecido que o patrimônio gerido pelo fundo pertencia, em condomínio, a todos os investidores (cotistas), a impedir a responsabilização do fundo por dívida de um único cotista, concluiu que “[a] impossibilidade de responsabilização do fundo por dívidas de um único cotista, de obrigatória observância em circunstâncias normais, deve ceder diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico”.1
A natureza dos fundos de investimento
Não é preciso dizer muito para explicar que os fundos de investimento têm natureza de condomínio e, portanto, não ostentam personalidade jurídica. A questão já foi exaustivamente discutida pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive pela própria CVM. O advento da Lei n.º 13.874/2019 (“Lei da Liberdade Econômica”) jogou uma pá de cal nessa discussão, já que o próprio Código Civil passou a indicar, no caput do seu artigo 1.368-C,2 que o fundo de investimento nada mais é do que “uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial” (e antes dele, em termos semelhantes, o artigo 2º, §1º, da Instrução n.º 472 da CVM para os fundos de investimento imobiliário e, de forma mais ampla, o artigo 3º da Instrução n.º 555 da CVM para fundos em geral). Assim, em regra, o patrimônio gerido pelo gestor do fundo pertence a todos os investidores e, exatamente por isso, não pode responder pela dívida de um único cotista, ressalvada a penhora individual de suas cotas.
Fundo vs. sociedade
Embora sequer sejam dotados de personalidade jurídica, em alguns aspectos os fundos de investimento se assemelham às sociedades, o que justifica o fato de parte da doutrina buscar na lei societária soluções para tentar resolver problemas práticos relacionados aos fundos de investimento. Assim, por exemplo, quando se trata das regras de convocação de assembleia, deliberações e acordos de votos, a aplicação analógica da lei societária para os fundos de investimento pode, de fato, ser útil, porque, nesses aspectos deliberativos, fundos e sociedades são mesmo muito semelhantes.3
Por outro lado, há outras questões em que a analogia simplesmente não funciona. Quando se trata, por exemplo, de apurar e distribuir os rendimentos do fundo, não é possível aplicar o regime de competência, próprio das companhias, porque, como explica Paulo Cezar Aragão, este não se adapta à natureza de um ente que não é empresa, não organiza fatores de produção, não tem atividades operacionais, mas mero recebimento passivo de receitas (e satisfação das despesas associadas). Não se adapta, nas suas palavras, porque “[f]undo de investimento não é uma sociedade disfarçada, mas, sim, genuinamente condomínio especial e, exatamente por isso, rege-se não só pela legislação especial, mas também pelo Código Civil, e não se adapta ao regime de competência para apuração de resultados, próprio das sociedades (na verdade, imperativo apenas para as companhias)”.4 Os fundos devem submeter-se, portanto, ao regime de caixa (nunca ao regime de competência).
Fundo vs. condomínio comum
Na outra ponta, quando a comparação se dá com o condomínio comum, o relator do REsp. 1965982/SP – Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – lembra que “as normas aplicáveis aos fundos de investimento dispõem expressamente que eles são constituídos sob a forma de condomínio, mas nem todos os dispositivos legais que disciplinam os condomínios são indistintamente aplicáveis aos fundos de investimento, sujeitos a regramento específico ditado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM)”.5
Ao cotista de um fundo de investimento não são conferidas todas as prerrogativas referidas no art. 1.314 do Código Civil, “uma vez que este não desfruta – de forma plena – de direitos em face dos ativos subjacentes ao fundo constituído, tal qual o condômino possui em relação à copropriedade condominial, mas somente dos direitos ligados à fração representativa da sua participação proporcional no fundo”.6 Exatamente por isso, ao dispor sobre a natureza dos fundos de investimento, o artigo 1.368-C do Código Civil refere-se não a condomínio, mas antes a “condomínio de natureza especial”. A expressão “de natureza especial” não se encontra ali por acaso.
Desconsideração inversa da personalidade jurídica
No caso concreto, a Terceira Turma do STJ entendeu que, por dívidas de um dos cotistas, cuja personalidade jurídica fora desconsiderada, o patrimônio do fundo poderia ser atingido. A hipótese é, portanto, de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Na desconsideração inversa, corre-se o risco não só de prejudicar os demais sócios da sociedade que será atingida com a desconsideração, mas também os credores sociais, que verão o patrimônio da sociedade ser diminuído, sem nada ter a ver com o crédito exequendo. Costuma-se invocar a proteção do capital social como garantia dos credores como a principal razão para se limitar a utilização dessa modalidade de desconsideração. Exatamente por isso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça corretamente adverte que “a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica exige especial cautela do Juiz, sobretudo quando importa em aplicação inversa”.7
Os pormenores da decisão
A desconsideração inversa da personalidade jurídica foi determinada com base em desvio de finalidade e confusão patrimonial. Duas circunstâncias específicas do caso concreto foram utilizadas para fundamentar a decisão:
(i) A própria criação do fundo de investimento foi considerada fraudulenta: “ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros”;
(ii) O fundo de investimento que teve o seu patrimônio constrito era fechado e possuía apenas dois cotistas, ambos integrantes do mesmo conglomerado econômico, “a revelar que o ato de constrição judicial não atingiu o patrimônio de terceiros”.
A Terceira Turma também entendeu que o fato de o fundo de investimento ser fiscalizado pela CVM e de ter todas as informações auditadas e disponibilizadas publicamente “não impede a prática de fraudes associadas, não às atividades do fundo em si, mas dos seus cotistas (pessoas físicas ou jurídicas), que dele se valem para encobrir ilegalidades e ocultar patrimônio”. E, para arrematar, majorou em 2% o percentual da verba honorária devida pela parte recorrente.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O paradoxo da decisão proferida no REsp. n.º 1965982/SP: patrimônio comum pode responder por dívida individual?. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 25, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/64143719>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 3ª T., REsp. 1965982/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 05.04.2022, v.u..
Código Civil: “Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. §1º Não se aplicam ao fundo de investimento as disposições constantes dos arts. 1.314 ao 1.358-A deste Código. §2º Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput deste artigo. §3º O registro dos regulamentos dos fundos de investimentos na Comissão de Valores Mobiliários é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros”.
Mário Tavernard Martins de Carvalho. Regime jurídico dos fundos de investimentos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 92.
Paulo Cezar Aragão, “Regime de escrituração dos fundos de investimentos imobiliários: regime de caixa vs. regime de competência”, no prelo para ser publicado na Revista de Direito Societário e M&A da editora Thomson Reuters|Revista dos Tribunais.
Trecho da ementa do REsp n.º 1965982/SP.
Trecho do inteiro teor da decisão proferida no julgamento do REsp n.º 1965982/SP.
STJ, 3ª T., REsp n.º 948.117, Rel Min. Nancy Andrighi, j. 22.6.2010.