#33. Os enunciados da IX Jornada de Direito Civil sobre a especialização das garantias reais: ressignificação da regra a partir da sua função
por Pablo Renteria
Chega a ser um truísmo afirmar que a qualidade do arcabouço legislativo das garantias reais é fundamental para o ambiente de negócios, haja vista a inegável relevância desses instrumentos para a ampliação do acesso ao crédito. Quanto maior a segurança do credor em relação à efetividade da garantia recebida, maior a sua propensão para conceder financiamento a menores custos.
No entanto, quando se examina a evolução do regime jurídico das garantais reais, é curioso observar que, nessa matéria, o direito brasileiro avança em ritmos distintos. De um lado, verifica-se uma intensa atividade de promulgação de leis especiais, que, atendendo a demandas setoriais e ocasionais surgidas ao longo do tempo, introduziram aprimoramentos tópicos ao sistema de garantias. Exemplo disso é a alienação fiduciária em garantia, cuja disciplina legal já foi reformada sucessivas vezes, formando hoje um complexo mosaico de normas.
De outro lado, o regime geral das garantias reais, estabelecido nos artigos 1.419 a 1.430 do Código Civil, parece imutável, a despeito da formidável transformação vivenciada pelo direito brasileiro nas últimas décadas, o que se revela ainda mais intrigante ao se ter em vista que esse regime é bastante próximo daquele previsto há mais de um século, na codificação de 1916.
Esse aparente imobilismo se deve, principalmente, a duas razões. A primeira é o tradicional rigorismo da dogmática dos direitos reais, que contribui para a manutenção de uma interpretação rígida e insensível aos anseios do tráfego negocial. A segunda é a percepção, ainda presente no pensamento jurídico, de que a garantia real estaria a serviço exclusivo do credor, que dela se vale para oprimir e expropriar o devedor. Por consequência, toda estipulação contratual que não coincida com o previsto no texto legal, em sua literalidade, é recebido com desconfiança, por se acreditar que, nessa seara, a liberdade contratual aproveita apenas à dominação do credor.
Essa visão é profundamente equivocada, por ignorar que a garantia real age no interesse de ambas as partes – propiciando segurança ao credor e franqueando ao devedor o acesso ao crédito em condições mais vantajosas. E mais: tal visão tem por efeito nocivo a perpetuação de uma hermenêutica antiquada, que, sendo avessa à atuação da autonomia negocial, não se mostra capaz de atender às legítimas demandas dos agentes econômicos.
Isso se reflete em vários aspectos do regime geral das garantias reais, notadamente na especificação do objeto da garantia. Embora seja comumente apresentada como uma mera decorrência do regime geral dos direitos reais, a especialização assume, no âmbito das garantias reais, um significado específico, com raízes próprias. Historicamente, representa a condenação do direito moderno à hipoteca geral, herdada do direito romano e resgatada no direito medieval, por meio da qual eram gravados todos os bens presentes e futuros do devedor – o que, entre outros inconvenientes, prejudicava o acesso do devedor ao crédito, bem como criava entraves à circulação dos bens.
Além disso, a especificação se desenvolveu, ao lado dos instrumentos de publicidade, como técnica de proteção da coletividade, já que, por meio da individuação do objeto da garantia no ato constitutivo (que é levado a registro), permite-se que os terceiros com quem o devedor pretenda negociar tenham conhecimento de seu estado financeiro e da parcela do seu patrimônio já comprometida com a satisfação de débitos anteriores. A regra também impede que o devedor e o credor, em conluio, substituam ou acrescentem os objetos inicialmente gravados por outros mais valiosos, prejudicando, assim, a posição dos credores quirografários em eventual concurso.
Em definitivo, o requisito da especificação desempenha, na ordem jurídica, a importante função de repelir a constituição de garantias reais que, por terem objeto indefinido, se revelam impróprias à realização dos fins a que se destinam – o acesso do devedor ao crédito e a segurança do credor quanto à satisfação do seu direito – e prejudiciais a terceiros – potenciais adquirentes da coisa e credores quirografários.
No entanto, assim como o Código de 1916, o Código Civil de 2002 prevê a especificação como um requisito que se aplica, em termos idênticos, a todas as modalidades de garantia real, exigindo, indistintamente, a declaração do “bem dado em garantia com as suas especificações” no contrato constitutivo (artigo 1.424, IV, e, em termos semelhantes, o 1.362, IV, para a propriedade fiduciária). A generalidade dessa regra acaba por favorecer uma leitura generalizante que, tomando por base a hipoteca, consideraria necessária, em qualquer caso, a exata identificação de cada bem conferido em garantia.
Tal abordagem, contudo, só se ajusta à hipoteca e à anticrese, que incidem sobre bens inscritos na matrícula imobiliária, revelando-se, por outro lado, absolutamente inapropriada para as garantias mobiliárias que recaem sobre bens fungíveis massificados ou futuros, que, por sua própria natureza, são incompatíveis com a sua singularização no ato constitutivo. Quanto a isso, autores como o professor Darcy Bessone já advertiam à época da codificação anterior que “a individuação variará conforme as particularidades da coisa dada em garantia (móvel, semovente, imóvel, coisa incorpórea)”, mas o desenvolvimento dessa orientação interpretativa se deparava com a resistência de quem, com apego à literalidade do dispositivo legal, entendia indispensável a indicação das “especificações” necessárias à identificação minuciosa e inconfundível do bem dado em garantia.
Foi, portanto, em boa hora que, na IX Jornada de Direito Civil, realizada em comemoração aos vinte anos do Código Civil, aprovaram-se os Enunciados n. 6661 e 6672. O primeiro estabelece que, no penhor de créditos futuros, a especificação é atendida por meio da definição, no ato constitutivo, dos critérios ou procedimentos objetivos que permitam a determinação dos créditos alcançados pela garantia. Não se mostra necessária, portanto, a exata identificação dos créditos, o que sequer seria viável, uma vez que alguns de seus elementos (como vencimento e valor) não são, usualmente, conhecidos ao tempo da constituição da garantia. Basta, em vez disso, a previsão contratual dos critérios ou procedimentos que permitam a determinação dos créditos abarcados pela garantia.
Já o Enunciado n. 667 prevê que, no penhor constituído sobre bens fungíveis, satisfaz o requisito legal a definição, no ato constitutivo, da espécie, qualidade e quantidade dos bens dados em garantia. Assim como o anterior, tal enunciado afasta a necessidade da exata identificação de cada bem dado em garantia, reconhecendo que essa interpretação, excessivamente rígida, é incompatível com o atual tráfego negocial, em que avultam as garantias constituídas sobre bens fungíveis, como estoques e produtos, que, por sua própria natureza, não têm existência individualizada. Por isso que atende plenamente à regra da especificação que sejam indicadas, no ato constitutivo, a espécie, a qualidade e quantidade a que pertencem.
Ambos os enunciados representam a afirmação de uma hermenêutica mais afinada às necessidades das relações negociais, na medida em que consagram o entendimento de que a especialização pode ser realizada por diferentes técnicas contratuais, que se amoldem à natureza do bem e à operação econômica pretendida pelas partes. A especialização sai, assim, funcionalizada, afastando-se da vetusta ideia de exata identificação da coisa. Passa a expressar, mais precisamente, a suficiente individuação do bem jurídico para a realização dos fins da garantia real.
Mais do que isso, a aprovação dos enunciados reflete o amplo espaço de atuação reservado à autonomia negocial na definição do objeto da garantia, inclusive por meio da estipulação de procedimentos e critérios de determinação dos bens abrangidos. Dessa maneira, criam-se as condições necessárias para o florescimento de garantias reais adaptáveis à realidade fática de cada operação econômica, que sejam, assim, capazes de melhor atender aos legítimos interesses de ambas as partes, sem prejudicar os direitos de terceiros.
Pablo Renteria
Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bem como Mestre em Direito Internacional pela Universidade Paris II – Panthéon-Assas. Secretário Geral do Comitê Brasileiro da Association Henri Capitant de Direito Comparado. Sócio fundador do escritório Renteria Advogados, atuando como advogado, parecerista e árbitro. Foi Diretor e Superintendente de Processos Sancionadores da Comissão de Valores Mobiliários.
Enunciado 666: Art. 1.424, IV: No penhor de créditos futuros, satisfaz o requisito da especificação, de que trata o art. 1.424, IV, do Código Civil, a definição, no ato constitutivo, de critérios ou procedimentos objetivos que permitam a determinação dos créditos alcançados pela garantia.
Enunciado 667: Art. 1.424, IV: No penhor constituído sobre bens fungíveis, satisfaz o requisito da especificação de que trata o art. 1.424, IV, do Código Civil, a definição, no ato constitutivo, da espécie, qualidade e quantidade dos bens dados em garantia.