#40. Limite à contratação de juros remuneratórios na pauta do STJ
No julgamento do REsp 1.987.016/RS (DJe de 13/9/2022), a Terceira Turma do STJ decidiu duas questões a respeito de determinado contrato celebrado por sociedade de fomento mercantil: (i) a natureza do pacto, se de factoring ou de mútuo feneratício e (ii) se sociedade de fomento mercantil pode celebrar mútuo oneroso mesmo não integrando o Sistema Financeiro Nacional.1
Em relação ao primeiro ponto, o STJ manteve a qualificação do contrato como sendo um mútuo feneratício, em vista das limitações extraídas dos enunciados das Súmulas 5 e 7. Quanto ao segundo ponto, decidiu que a celebração de mútuo oneroso por particulares não integrantes do SFN é plenamente possível, com fundamento na autonomia privada e na liberdade contratual.
Respondidos os temas ventilados no recurso, o acórdão foi além deles e revistou a distinção entre mútuo oneroso celebrado entre particulares ou por sociedade integrante do SFN à luz de tema sempre atual: a taxa de juros. São tais considerações “obiter dicta” que interessam ao “Em Pauta” de hoje.
Mútuo e juros remuneratórios
No mútuo com fins econômicos há cobrança de juros remuneratórios pelo empréstimo do capital, conforme presumido no texto do art. 591 CC:
Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
A decisão em comento, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, partiu deste dispositivo para distinguir os regimes do mútuo celebrado por particulares e por instituição financeira.2 Isso porque a identidade do mutuante impacta o regime dos juros remuneratórios, em dois tempos: quanto à liberdade na contratação da taxa de juros e quanto à periodicidade de capitalização.
No caso de mútuo celebrado com instituição financeira, e consoante já longeva jurisprudência dos Tribunais superiores, as restrições do art. 591 CC ou do Decreto 22.626/1933 (Lei de Usura) não encontram aplicação, de forma que: (i) a capitalização pode ser pactuada com periodicidade inferior a um ano e (ii) não há limite legal e nominal de juros (Súmula 596/STF3).
No caso de mútuo oneroso celebrado entre particulares, por sua vez, e conforme a literalidade do art. 591 CC: (i) a capitalização não pode exceder a periodicidade anual e (ii) os juros remuneratórios podem ser pactuados no limite dos juros moratórios legais, ex vi art. 406 do Código Civil, textualmente referido no art. 591 CC. A essas contratações aplicam-se, também, as disposições da Lei de Usura.
Apresentada essa distinção, a decisão concluiu – sem decidir, pois questão alheia ao objeto do recurso especial – que, no mútuo entre particulares, “eventuais juros devidos não podem ultrapassar a taxa de 12% ao ano, permitida apenas a capitalização anual (arts. 591 e 406 do CC/2002; 1º do Decreto nº 22.626/1933; e 161, § 1º, do CTN), sob pena de redução ao limite legal, conservando-se o negócio. Precedentes”.
Limitação dos juros a 12% a.a. no STJ: linha cronológica
A limitação à cobrança e à pactuação de juros remuneratórios ao percentual máximo de 12% ao ano encontra respaldo firme na jurisprudência da Corte, o que é de plano inferido do farto número de decisões mencionadas no corpo da decisão objeto da coluna. E, de fato, pesquisa jurisprudencial confirma ser esse o entendimento do STJ, apresentado à luz de raciocínios muito similares4 e, por vezes, replicados por aplicação do enunciado da Súmula n. 83.5
Analisada a cronologia das decisões, entretanto, chama atenção um ponto não negligenciável: o STJ fundamentou esse entendimento na vigência do Código Civil de 1916, quando o Código fixava taxa de juros legal de 6% ao ano, ex vi art. 1.062, a qual poderia ser ajustada até o dobro, nos termos do art. 1º da Lei de Usura; com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o art. 591 limitou a pactuação dos juros remuneratórios à taxa legal de juros moratórios ex vi art. 406 (equivalente funcional ao art. 1.062 CC16) que, por sua vez, não é fixada ali de forma nominal, mas obtida por referência externa ao Código Civil (o dispositivo remete “à taxa em vigor para mora de impostos devidos à Fazenda Nacional”). Abre-se a Caixa de Pandora.
Mútuo oneroso e juros no Código Civil 1916
Na vigência do Código Civil de 1916, quando firmado o entendimento sobre a limitação dos juros remuneratórios no mútuo oneroso em 12% ao ano, o art. 1.062 CC fixava taxa legal, nominal e fixa de juros, de 6% ao ano. Esse percentual era simétrico àquele mencionado no art. 1º, § 3º da Lei de Usura6. Da mesma forma, o art. 1.262 CC permitia aos particulares, no âmbito do contrato de mútuo, a contratação de juros abaixo ou acima dessa taxa, com ou sem capitalização:
Art. 1.062. A taxa dos juros moratórios, quando não convencionada (art. 1.262), será de seis por cento ao ano.
Art. 1.262. É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem capitalização.
À altura, portanto, inexistia limitação no Código Civil à pactuação da taxa de juros pelos particulares. Foi a regra do art. 1º da Lei de Usura que passou a funcionar como limite, ao proibir a contratação de juros em percentual além do dobro da taxa legal:
Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. 1062).
Por simples conta aritmética, se o percentual legal básico era de 6%, as partes poderiam convencionar juros de 12% (art. 1º, caput, Lei de Usura). E foi com base nesse conjunto normativo e neste raciocínio que se ergueu a jurisprudência do STJ, como se denota do seguinte julgado que, aplicando as disposiçaõ do CC 1916, representa um todo maior de decisões:
“…Por não integrar a credora o Sistema Financeiro Nacional, deve incidir, na espécie, a Lei de Usura, em especial seu artigo 1º, que estabelece juros no patamar de 12% ao ano, ou seja, o dobro da taxa legal prevista no Código Civil de 1916, no limite de 6% ao ano. (REsp n. 673.468/MG)
E, na legislação atual, qual a justificativa para manter a taxa limite de pactuação de juros remuneratórios em mútuo em percentual nominal de 12% ao ano?
Mútuo oneroso e juros no Código Civil 2002
Para descortinar a rede de dispositivos legais pertinente à solução deste imbróglio, começamos pelo art. 591 CC, antes transcrito, que expressamente limita a pactuação de juros remuneratórios em contratos de mútuo à taxa referida no art. 406 CC. A redação do texto legal - “não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406” - não abre espaço para dúvidas: as partes não podem validamente ajustar a cobrança de juros acima da taxa legal.
Nesse ponto particular, não há espaço para aplicação do art. 1º da Lei de Usura que, ao proibir a pactuação de juros acima do dobro da taxa legal, permite sua pactuação em percentual superior à taxa legal. Sem que tenha havido revogação da regra com a edição do Código Civil – não houve!7 – ela não pode ser lida como autorização para que particulares ultrapassem o limite estipulado em lei posterior (ex vi art. 591 CC). Nos termos do Código Civil em vigor, o limite de pactuação de juros remuneratórios em contratos de mútuo oneroso (e apenas neles) corresponde à taxa legal de juros prevista no art. 406 CC (taxa simples, e não em dobro, portanto). Tudo se resolve, assim, com a definição da taxa legal de juros moratórios referida no texto do art. 406 CC. O texto é conhecido de todos, mas é útil ser rememorado:
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
Como se demonstra do excerto da decisão aqui comentada e antes transcrita (“eventuais juros devidos não podem ultrapassar a taxa de 12% ao ano, permitida apenas a capitalização anual (arts. 591 e 406 do CC/2002; 1º do Decreto nº 22.626/1933; e 161, § 1º, do CTN”), o STJ entede que a remissão feita pelo art. 591 ao art. 406 é resolvida por nova remissão, dessa vez à regra externa ao Código Civil, notadamente ao art. art. 161, § 1º CTN, que prevê taxa de juros mensal de 1%. Sendo essa a taxa legal, estaria suficientemente preenchido o raciocínio de aplicação sistemática do art. 591 e 406 CC: o primeiro remete ao segundo que, por sua vez, remete à taxa de 1% ao mês ou 12% ao ano do CTN. Mantém-se, assim, o mesmo percentual de outrora, de 12% ao ano, ainda que por caminho diverso.
“Vou cobrar com juros, juro”8
Poderíamos nos curvar integralmente ao raciocínio, não fosse um grave inconveniente: é entendimento reiterado e uniforme há anos no STJ que a taxa de juros moratórios prevista no art. 406 CC é a SELIC e não a taxa de 1% do art. 161, § 1º CTN9).
Não se nega que o embate sobre a melhor intepretação do art. 406 CC e à taxa nele referida seja ainda muito vivo e que um dos argumentos mais frequentemente levantados pela doutrina contrária à aplicação da SELIC seja a falta de previsibilidade e suas dificuldades operacionais, dentre as quais se inclui a aplicação do limite previsto no art. 1º da Lei de Usura.10 Há, sem exagero, uma verdadeira saga sobre o tema no Brasil, como já tratei em texto anterior.
Divergências doutrinárias de lado, a leitura da decisão em comento leva à relevante constatação: no STJ, hoje, convive jurisprudência (há, de fato, um todo uniforme e reiterado de decisões) que, para definir juros moratórios legais, reconhece que o art. 406 CC remete à SELIC e, ao mesmo tempo, para aplicar o dispositivo conjugado com o art. 591 CC (no contexto dos contratos de mútuo oneroso, portanto), reconhece que a remissão é ao art. 161, § 1º do CTN.
Eis um achado fortuito que soma mais capítulo à saga dos juros legais no Brasil: há fundamento sistemático que justifique um tal resultado ou “depeçáge” jurisprudencial na aplicação de um mesmo dispositivo legal? E, se houver, qual o “distinguishing”?
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
Para as razões do não enquadramento das sociedades de fomento mercantil no SFN, vide, por todos, REsp n. 119.705/RS
As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. (Súmula 596/STF, DJ de 5-1-1977).
Por todos, além do já mencionado REsp n. 119.705/RS, vide: REsp n. 1.048.341/RS, REsp n. 489.658/RS, REsp n. 330.845/RS.
“O mútuo celebrado entre particulares, que não integram o sistema financeiro nacional, deve observar as regras constitucionais e de direito civil, mormente o disposto na Lei de Usura, que fixa juros remuneratórios máximos de 12% ao ano (Decreto 22.626/33, art. 1º e §3º). Incidência da Súmula 83/STJ.”. AgInt no AREsp n. 1.844.367/SP.
Lei de Usura. Art. 1º, § 3º. A taxa de juros deve ser estipulada em escritura publica ou escrito particular, e não o sendo, entender-se-á que as partes acordaram nos juros de 6% ao ano, a contar da data da propositura da respectiva ação ou do protesto cambial.
Como sustenta em obra doutrinária Paulo de Tarso Sanseverino, “nesse ponto, a Lei de Usura restou parcialmente derrogada implicitamente pelo art. 591 do CC/2002, que prevalecerá sobre os contratos de mútuo em geral (…)”. (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Contratos Nominados II. Biblioteca de Direito Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 355.
“Apesar de você”, Chico Buarque.
Vide, por todas, decisão contemporânea àquela objeto da coluna AgInt no REsp n. 1.911.043/PR
Para uma síntese das controvérsias, remete-se a BUCAR, Daniel e PIRES, Caio. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca de sua função e disciplina no direito civil. In: TERRA, Aline e GUEDES, Gisela. Inexecução das Obrigações: Pressupostos, evolução e remédios. Volume I. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2020, especialmente a partir da p. 467 (item “3. Taxa de juros moratórios: qual e até quanto.”)