#44. Interesse positivo e interesse negativo: o que são (e o que não são).
Nos últimos anos, as expressões que dão nome à coluna conquistaram lugar cativo em discussões judiciais e arbitrais no Brasil. A constatação contrasta com uma permanente e incômoda desconfiança sobre seu real conteúdo. A compreensão sobre o que elas são e, tão relevante quanto, sobre o que não são, é tema do “Em foco” de hoje.
O surgimento das expressões
Em 1861, Rudolf von Jhering apresentou ao público o seu “Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição”, texto paradigmático na história da responsabilidade civil na fase de negociação e conclusão do contrato.1
O texto abria-se com ilustrativo exemplo: alguém pretendia encomendar um quarto de caixas de charuto e, por erro na indicação da quantidade, acabou por encomendar quatro caixas. O vendedor remete ao comprador as quatro caixas encomendadas, que são rejeitadas e devolvidas.
À luz das regras então vigentes, o contrato era nulo, por haver erro (divergência entre a vontade interna do sujeito e aquela exteriorizada).2 Jhering reconheceu a culpa do comprador na nulidade, procurou fundamentar sua responsabilidade pela invalidação e propôs a existência da culpa in contrahendo, ou culpa na formação dos contratos. Daí, passou a questionar qual seria a extensão da indenização devida pelo errante.
De um lado, havia as despesas de porte e retorno dos charutos, que haviam se tornado inúteis; de outro, oposto, o lucro que o vendedor esperava obter com a venda dos charutos, que fora obstado em razão do erro. A nulidade, concluiu Jhering, impedia que o vendedor obtivesse a vantagem esperada com o negócio jurídico, mas lhe dava direito a ter as despesas inúteis indenizadas. Conferiu a essa indenização o nome de interesse contratual negativo, para indicar, por oposição, que ela não abrangia o que o lesado esperava obter com o cumprimento do contrato, que denominou de interesse contratual positivo.
A simplicidade do caso é diretamente proporcional à obviedade da constatação de que afirmar a existência do dever de reparar não significa que a indenização seja idêntica em todo caso. No caso específico de danos havidos no iter negocial, a indenização pode conduzir o lesado a duas situações hipotéticas diversas. Em determinadas situações, ela pauta-se em uma situação positiva em relação ao contrato e, em outras, em uma situação negativa em relação a ele.
Foi apenas por razão de síntese, ou seja, para representar de forma sintética tais direcionamentos indenizatórios, que Jhering propôs que tais parâmetros indenizatórios fossem denominados de interesse contratual positivo e interesse contratual negativo.3 Se o emprego das palavras “contratual”, “positivo” e “negativo” é facilmente compreendido, o que dizer da palavra “interesse”?
A centralidade do conceito de “interesse” na compreensão das expressões
Há uma relação simbiótica entre o conteúdo das expressões e o conceito de interesse, que lhes confere significado. Ao tempo do texto de Jhering, de 1861, o emprego da palavra “interesse” estava umbilicalmente vinculado à noção de id quod interest, cujo conteúdo fora descortinado na obra de Friedrich Mommsen, publicada anos antes.4 No que se convencionou chamar de teoria da diferença (Differenztheorie), Mommsen via o dano indenizável como a comparação entre uma situação real, na qual o lesado de fato se encontrava após o evento lesivo, e uma situação hipotética, à qual ele deveria ser reconduzido pela indenização dos danos. No estudo de Mommsen, “interesse” foi traduzido como sinônimo de dano indenizável obtido por fórmula comparativa.5
Foi exatamente nessa acepção da palavra que Jhering empregou a palavra interesse nas expressões aqui estudadas. Trata-se de uma fórmula comparativa que representa a situação hipotética em que o lesado deveria estar e a qual deve ser conduzido pelo pagamento da indenização. Essa ligação simplifica enormemente a compreensão do conteúdo das expressões e permite dizer o que elas são (e o que não são).
Interesse positivo vs. interesse negativo: o que são
A expressão interesse positivo nada mais é do que uma forma sintética usada para fazer referência à situação hipotética patrimonial na qual o lesado estaria se o contrato houvesse sido integral e adequadamente cumprido. O que compõe exatamente essa indenização somente poderá ser calculado no caso concreto e abrangerá danos emergentes e lucros cessantes.
A expressão interesse negativo, por sua vez, representa de forma sintética a situação hipotética patrimonial em que o lesado estaria se sequer houvesse cogitado do contrato e nem confiado na sua formação válida. Da mesma forma, a indenização abrangerá danos emergentes e lucros cessantes.
Nada mais do que isso.
Interesse positivo vs. interesse negativo: o que não são
As expressões não se prestam a definir as suas hipóteses de incidência: por serem uma síntese, elas traduzem o resultado da reparação de danos, mas não se prestam a determinar as hipóteses lesivas em que tais resultados devem ser obtidos. É por isso que, embora o interesse positivo seja tendencialmente indenizável em caso de descumprimento do contrato e o interesse negativo em caso de não formação válida do contrato, tais direcionamentos não são necessários. Há de se proceder, como sugeri em outra sede, a uma análise de duplo filtro: no primeiro, obtém-se um indicativo tendencial, à luz do momento em que a falha ocorreu; no segundo, verificase com mais vagar o dever ou a obrigação violados do qual se parte para aplicar as regras de causalidade e confirmar (ou não) o direcionamento protetivo, tudo à luz do regime consequencial aplicável;6
As expressões tampouco são fórmulas mágicas: elas são instrumentos que, quando bem operados, facilitam a árdua tarefa de quantificação de danos. Afinal, definir o sentido (positivo ou negativo) da indenização devida é meio caminho andado. Uma vez acertada a direção, restará preenchê-la com os danos emergentes e lucros cessantes indenizáveis;
As expressões não limitam o quantum indenizatório nem são tipos de danos: a menção a danos emergentes e lucros cessantes indenizáveis (ex vi art. 402 e 944, CC) que preenchem seu conteúdo aponta para a última definição negativa dos conceitos, que não são formas de limitar o quantum indenizatório nem são tipos de danos. A melhor forma de lidar com elas é enxergá-los como instrumentos úteis à discussão sobre o an e o quantum debeatur e, assim, ao adequado preenchimento do conteúdo do dever de indenizar. A utilidade se faz presente em dois tempos: em primeiro lugar, porque sublinham a importância (tão negligenciada) de se depurar o evento lesivo ou o dever violado; em segundo lugar, porque minimizam os riscos de haver indenização maior ou menor do que a devida, pois o trajeto de (re)construção da situação hipotética em que o lesado deveria estar tem os pés fincados numa realidade tangível que, embora não exista, poderia e deveria existir não fosse o evento lesivo.
“Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás”
Exemplo lúdico (não sério, mas bastante didático) da utilidade dos conceitos é extraído da obra de Thomas Ackermann: alguém é convidado para um jantar e, chegando na data e hora combinados à casa do anfitrião, encontra as portas fechadas.7 Para um leitor brasileiro, o caso remete à canção “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa (“Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás | Nós fumos, não encontremos ninguém | Nós voltermos com uma baita de uma reiva | Da outra vez, nós num vai mais | Nós não semos tatu!”).8
Ao convidado seriam abertas – em um exercício puramente hipotético –, duas possibilidades. Poderia, de um lado, demandar o ressarcimento das despesas com aluguel de trajes e de deslocamento, que se tornaram inúteis (interesse negativo) ou o ressarcimento dos custos que teve para fazer refeição (interesse positivo). Não poderia, no entanto, pretender o ressarcimento dos custos de aluguel do traje e das despesas de deslocamento e, adicionalmente, dos custos de pagamento da refeição substitutiva, pois essa situação não tem paralelo possível na realidade. Com efeito, ou o lesado não confiou no convite e não teve os gastos, ou sua expectativa de cumprimento se confirmou e os gastos eram esperados para o recebimento da prestação (in casu, a refeição).
Em tempo: ainda em contexto lúdico, parte do conteúdo do Em Foco de hoje encontra-se em formato de vídeo storytelling produzido para curso da Escola Paulista da Magistratura, que pode ser acessado aqui.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente, FCIArb.
O texto Culpa in contrahendo de Jhering foi publicado em 1861. Há tradução para o português, publicada em 2008: JHERING, Rudolf. Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição. Tradução e nota introdutória de Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2008.
No Direito brasileiro, o erro é causa de anulabilidade (art. 138, CC, “Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio).
JHERING, Rudolf. Culpa in contrahendo..., p. 12-13. O conteúdo representado pelas expressões já havia sido explorado antes de Jhering, mas o seu grande mérito foi conferir uma nomenclatura que ganhou o mundo.
MOMMSEN, Friedrich. Beiträge zum Obligationenrecht. Zur Lehre von dem Interesse. Braunschweig, C.U. Schmeschte und Sohn, 1855.
Em síntese, o id quod interest é aquilo que a parte lesada pode exigir ou, “como um advogado moderno diria, ‘perdas e danos’ (damages)”. (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 824, em tradução livre).
STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 176 e sg.
ACKERMANN, Thomas. Der Schutz des negativen Interesses. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 16.
Dedico a menção ao Samba do Arnesto a Ronaldo Santos Soares, revisor da Editora Quartier Latin, que me chamou atenção à semelhança com o exemplo de Ackermann quando da revisão gramatical que precedeu a publicação do livro citado na nota de rodapé n. 6.