#49. Na pauta do STJ: Lei Ferrari e indenização
O “Em Pauta” de hoje noticia o julgamento do REsp n. 1.811.792/SP (DJe de 5/5/2022), em que se discutiu o caráter exaustivo ou exemplificativo do rol de indenizações constante do art. 24 da Lei 6.729/19791 (conhecida como Lei Ferrari, que disciplina a distribuição ou concessão comercial de veículos automotores de via terrestre). A decisão, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foi no sentido de que tais indenizações não são taxativas e podem se cumuladas com outros danos.
Este capítulo decisório desafiou oposição de Embargos de Divergência (n. 1.811.792/SP), que foram indeferidos liminarmente. Contra o indeferimento, foi interposto Agravo Interno, que pendia de julgamento ao tempo desta publicação.
Qual o conteúdo do art. 24 da Lei Ferrari?
O art. 24 da Lei Ferrari dispõe sobre as obrigações pecuniárias devidas nos casos em que “o concedente der causa à rescisão do contrato de prazo indeterminado”.2 A menção a “der causa” abrange tanto o inadimplemento resolutivo por fato imputável ao concedente (que leva à extinção por resolução) quanto a extinção unilateral ad nutum, ou seja, imotivada (que leva à extinção por exercício de denúncia). Em qualquer um desses casos, o concedente fica obrigado a:
● recomprar o estoque pelo preço de venda ao consumidor (art. 24, I);
● comprar equipamentos, máquinas, ferramental e instalações pelo preço de mercado correspondente ao estado em que se encontram (art. 24, II, por remissão ao art. 23, II),
● pagar perdas e danos correspondentes a percentual de 4% do faturamento projetado por período calculado na forma disposta no art. 24, III (soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinquênio de vigência da concessão) e
● satisfazer “outras reparações que forem eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição” (art. 24, IV).
É o disposto nos incisos III e IV que mais importa à discussão travada no recurso em questão.
A decisão do STJ: aplicação e interpretação dos incisos III e IV art. 24 da Lei Ferrari
Segundo a decisão noticiada, a indenização prevista no inciso III do art. 24 abarca critério de quantificação de lucros cessantes: “observa-se que, de fato, o comando normativo se refere a uma indenização mínima pré-estabelecida – ou tarifada – dos lucros cessantes.” Essa qualificação justificou o debate sobre a possibilidade de sua cumulação com a indenização por lucro cessante fundada no direito comum. Para compreender o sentido da discussão no caso concreto, necessário conhecer alguns marcos processuais:
● Em sua petição inicial, a concessionária pediu, dentre outras rubricas: (a) reparação calculada nos termos do art. 24, III da Lei Ferrari (4% do faturamento multiplicado pelo resultado da aplicação da fórmula ali descrita) e (b) “danos emergentes e lucros cessantes, a serem apurados em Prova Técnica, correspondentes aos investimentos em formação profissional e publicidade, realizados para o cumprimento das obrigações contratuais”.3
● A sentença de primeiro grau condenou a concedente ao pagamento de lucros cessantes, “correspondentes ao período de 5 anos (art. 21, parágrafo único da Lei 6.729/79)”4 e de indenização calculada nos termos do art. 24, III da Lei Ferrari.5
● A decisão de primeiro grau foi confirmada em segundo grau, em sucinta fundamentação, por remissão à primeira: “assim, reconhecida a culpa da ré pela rescisão contratual, a partir da observância de práticas abusivas e abuso do poder econômico, deve a autora ser devidamente indenizada pelos prejuízos suportados, nos termos da r. sentença.”6
● O comando condenatório foi mantido no STJ, embora com relevante alerta: a liquidação de sentença deverá cuidar para que não haja bis in idem, tendo o STJ proposto espécie de “interpretação conforme” da condenação. Mais precisamente, lê-se da decisão que “a) se os lucros cessantes comprovados forem superiores ao valor mínimo previsto no inciso III do art. 24 da Lei Ferrari, caberá à concessionária a diferença; por outro lado, b) se os lucros cessantes comprovados forem menores, caberá à concessionária, ao menos, a verba indenizatória prevista no referido dispositivo legal, que representa indenização mínima fixada em lei”.7
O STJ alcançou tal conclusão por considerar que o sistema reparatório previsto na legislação especial visa à proteção do concessionário e se volta à reparação integral dos prejuízos, o que foi corroborado por menção às decisões havidas nos REsp 1746513/SP e REsp 1308074/SP, ambos da Terceira Turma. Por referência ao texto desta última decisão, o acórdão em comento concluiu que o inciso IV “alude à satisfação de outras reparações derivadas do relacionamento entre a concedente e a concessionária, ainda que não previstas na Lei ou no próprio contrato".
O inciso é tomado na decisão com “vetor interpretativo” para qualificar o caráter não taxativo das indenizações previstas no art. 24 da Lei Ferrari. Citada no acórdão, a doutrina de Miguel Reale já ensinava que “referido n. IV constitui um ‘modelo jurídico aberto’, capaz de abranger todos os casos em que a quebra de um ajuste vigente na rede (além dos estipulados nos itens anteriores) deva importar em reparação.”8
Ao assim proceder, a decisão se junta a várias outras, de ontem e de hoje, que reconhecem o caráter não taxativo das indenizações previstas na Lei Ferrari. Dentre elas, destaca-se o REsp 10.391/PR, citado com frequência em decisões da Corte, no qual se lê que “a reparação de danos não abrangidos pela Lei 6.729/79, que venham a ser cabalmente comprovados como consequência da resolução do contrato de concessão comercial, por culpa do concedente, encontra suporte jurídico nas disposições de direito comum no que tange à responsabilidade civil (...)”.
A conclusão quanto ao caráter não taxativo não significa, como o alerta do STJ deixa entrever, que sempre haverá danos suplementares a reparar nem que esteja autorizado o bis in idem. A indenização por lucros cessantes, para além daquela disposta na lei (notadamente, no incido III do art. 24 da Lei Ferrari), poderá ocorrer se e na medida em que ficar demonstrado que “os prejuízos sofridos pelo concessionário foram superiores ao ressarcimento previsto, expressamente, pela lei.” Tal reforça diferença marcante quanto à prova do prejuízo: enquanto a indenização prevista na lei a dispensa, a indenização que a complementa é regida pelas regras gerais de responsabilidade civil e demanda prova. Aliás, a referência à responsabilidade civil não é de menor importância, uma vez que só haverá indenização suplementar se houver responsabilidade do concedente pela extinção do contrato (ou seja, se houver inadimplemento resolutivo).
Apresentadas intepretação e aplicação em tese conferidas aos dispositivos, a coluna chama atenção para uma segunda questão que emerge da decisão, mas que vai além dela, e que diz respeito à liquidação do dano.
Quais os limites entre a fase de conhecimento e a fase de liquidação?
Como demonstrado pelo histórico decisório antes narrado, a exata definição da indenização devida ao concessionário foi relegada à fase de liquidação de sentença que, segundo o STJ, poderá (ou não) confirmar o cabimento de indenização suplementar. A conclusão alerta para prática frequente nos Tribunais brasileiro e que enseja relevante discussão sobre os limites – existentes, em regra, no processo judicial (e que podem ser superados com maior facilidade à luz da flexibilidade do procedimento arbitral) –, entre a fase de conhecimento (em que se apura o an debeatur) e a fase de liquidação (que, em tese, volta-se apenas à definição do quantum debeatur).
Os achados deste caso específico lançam provocações que se mostram úteis para discussão sobre os limites da fase de liquidação em diversos outros casos em que se adota a mesma estratégia de relegar a definição de critérios para momento posterior:
A iliquidez “congênita” da decisão: apesar de ter sido realizada perícia na fase de conhecimento, a decisão de primeiro grau já reconhecia que não havia liquidez na condenação, pois “os valores apontados pela autora foram calculados de forma unilateral, razão pela qual não podem ser acolhidos, necessitando de apuração específica para quantificação exata das indenizações, tudo isso a ser realizado em liquidação de sentença”.9
Ausência de critérios de cálculo definidos na fase de conhecimento: a despeito de reconhecer a iliquidez, a decisão de primeiro grau – que restou mantida em segundo grau e, mediante “intepretação conforme”, também pelo STJ – limitou-se a determinar que a ré deveria “ressarcir a Autora dos lucros cessantes correspondentes ao período de 5 anos”.10 Não houve estipulação dos critérios para o cálculo de tais lucros cessantes, nem distinção em relação ao critério adotado pelo legislador no art. 24, III da Lei Ferrari. A constatação aponta o dedo para a ferida aberta: afinal, os critérios para definição e quantificação dos lucros cessantes devem ser definidos em fase de conhecimento ou em fase de liquidação? Qual a robustez da prova necessária para que haja condenação que torne certo o dever de indenizar? No caso concreto, se a liquidação chegar à conclusão de que a indenização calculada com base no inciso III do art. 24 da Lei Ferrari seja suficiente para cobrir os lucros cessantes, a obtenção de resultado de “liquidação zero” em relação à condenação por lucros cessantes é compatível com o comando condenatório havido na fase de conhecimento? Por fim, dúvida processual de uma civilista, que a formula com o intuito de convidar ao debate: a condenação à indenização cuja existência possa ou não ser confirmada na fase de liquidação, é adequada ao mandamento de que a condenação deve ser certa?
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Da ementa, lê-se como objetos do recurso saber se: “e) é lícita, no sistema de indenização estabelecido na Lei Ferrari, a cumulação das reparações previstas no art. 24 com outras verbas indenizatórias; e f) estaria configurada, no que diz respeito aos lucros cessantes, sobreposição de indenizações.”
Art. 24. Se o concedente der causa à rescisão do contrato de prazo indeterminado, deverá reparar o concessionário: I - readquirindo-lhe o estoque de veículos automotores, implementos e componentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da rescisão contratual; II - efetuando-lhe a compra prevista no art. 23, inciso II; III - pagando-lhe perdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado para um período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinqüênio de vigência da concessão, devendo a projeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamento de bens e serviços concernentes a concessão, que o concessionário tiver realizado nos dois anos anteriores à rescisão; IV - satisfazendo-lhe outras reparações que forem eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição.
TJSP, 0142156-56.2010.8.26.0100, fls. 33 dos autos eletrônicos (Esaj).
A aplicação do art. 23 da Lei Ferrari se deu porque a sentença considerou que havia contrato com prazo determinado. O dispositivo determina ser de 5 anos a vigência mínima do contrato celebrado com prazo e dispõe que, uma vez prorrogado, ele passa a vigorar sem termo de vigência. O invocado art. 23, no entanto, nada dispõe sobre indenização.
TJSP, .0142156-56.2010.8.26.0100, fls. 1306 dos autos eletrônicos (Esaj).
TJSP, Apelação Cível n. 0142156-56.2010.8.26.0100, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, 30ª Câmara de Direito Privado, j. 13.12.2017, DJe 19.12.2017, fls. 13 do acórdão.
STJ, REsp. n. 1.811.792, fls. 24 do acórdão.
REALE, Miguel. Da Indenização Cabível na Concessão Comercial de Revenda de Veículos Automotores. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 76, n. 624, out. 1987, p. 7.
TJSP, n. 0142156-56.2010.8.26.0100, fls. 1305 dos autos eletrônicos (Esaj).
TJSP, 0142156-56.2010.8.26.0100, fls. 1306 dos autos eletrônicos (Esaj).