#53. Aviso prévio e extinção de contratos empresariais
Os fatos se passaram em uma pensão burguesa na Paris de 1819. Mediante recompensa, a srta. Michounneau entregou à polícia a identidade do Sr. Vautrin. Surpresos em descobrir serem vizinhos do famoso criminoso Engana-a-Morte, mas mais indignados com a postura desleal da senhorita, os pensionistas da Casa Vauquer exigiram que ela fosse posta para fora da pensão. Mesmo contrariada por perder uma hóspede, a Sra. Vauquer cede ao coro da multidão e confere à srta. Michounneu a possibilidade de subir a seu quarto, por aquela noite. “Nada disso, nada disso” – gritaram os pensionistas. – Queremos que ela saia já” (...). O Sr. Poiret tenta intervir, sem sucesso: “Meus senhores, isso é indecente. Quando se manda alguém embora, deve-se fazê-lo com jeito.”1
Inspirada no texto de Balzac, a coluna “Em foco” de hoje volta suas atenções à figura do aviso prévio, em especial àquele devido em contratos empresariais.
O que é o aviso prévio?
O aviso prévio nada mais é do que um prazo entre o exercício do direito de denúncia e a efetiva produção do efeito extintivo. Pode ter lugar em contratos de duração celebrados sem termo definido de vigência (e que admitem, pois, o exercício da denúncia por uma das partes ex vi art. 473, CC2) e naqueles com duração determinada, mas que admitam a extinção unilateral secundada em disposição contratual ou na lei.
Qual a função do aviso prévio?
Sua função principal é conferir ao denunciado a oportunidade de reorganizar sua estrutura empresarial a partir da ciência da denúncia, o que evita que a ruptura se dê de forma brusca ou abrupta. Parafraseando Balzac, o aviso prévio serve para que a denúncia se faça “com jeito”.
A manutenção temporária do pactuado (especialmente, a manutenção de seus efeitos econômicos) permite ao denunciado tomar providências que se seguem à cessação do contrato, como a venda de bens adquiridos a terceiros, redirecionamento de suas atividades e o encerramento de outros contratos. Como ensina a doutrina, o aviso prévio confere ao denunciado a chance de se adaptar à ruptura do contrato.3
Por aí se vê que o aviso prévio não é impedimento ao exercício do direito de denúncia, mas meio de conformar o “como” do exercício do direito de saída conferido a determinado contratante. Não por acaso, a não concessão do aviso prévio, quando este era devido, é qualificável como abuso de direito (art. 187, CC4).
Tais constatações são da mais alta relevância para lidar com problema que, com frequência, chega às Cortes brasileiras: o que se passa quando, devido o aviso prévio, ele não foi respeitado?
Não concessão do aviso prévio quando devido. Quid juris?
Embora não seja inviável a tutela de cumprimento específico (ou seja, a manutenção do pacto pelo prazo devido de aviso prévio), no mais das vezes a não concessão não é remediável e faz surgir o dever de indenizar pelos danos causados ao denunciado. Tais danos, por sua vez, vinculam-se exclusivamente à sua não concessão, e não à extinção contratual.
Neste particular, elucidativa a lição de António Pinto Monteiro, condizente como panorama encontrado no Direito brasileiro:
“os danos a ressarcir são os que resultam da falta ou do insuficiente pré-aviso – e não os danos que provoca a cessação do contrato, em si mesma, pois a denúncia é um direito de que goza qualquer das partes, estando em causa, apenas, a antecedência com que tal direito deve ser exercido”.5
A mesma linha de entendimento é encontrada em decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, como no seguinte excerto:
“… não se pode confundir os efeitos oriundos da rescisão do contrato por uma das partes, que traduz ato lícito e não gera qualquer dever de indenizar, com os prejuízos enfrentados pela ausência de comunicação prévia da rescisão do ajuste, este sim, que apresenta caráter emulativo que retira da denunciada a possibilidade de se preparar para o desfazimento do vínculo.”6
De tais excertos, vê-se que o evento lesivo é a não concessão do aviso prévio (não é, portanto, o exercício da denúncia). Por aplicação das regras de causalidade, a situação hipotética na qual o denunciado deveria estar sem o evento lesivo corresponde àquela já sem o contrato (pois a extinção do pactuado é lícita), mas com a concessão do aviso prévio em período suficiente para permitir uma transição suave entre a existência do contrato e a sua extinção. E, por transição suave, quer-se dizer aquela que mantenha algum conforto financeiro ao denunciado, que o permita tomar tais providências naturais ao término do vínculo ainda sem ter tido suas entradas reduzidas a zero.
Desafios da quantificação do dano
Para compor a indenização devida, os Tribunais brasileiros costumam multiplicar o período de aviso prévio que deveria ter sido concedido por determinada base de cálculo. O critério para obtenção de tal base de cálculo não é, no entanto, uniforme.
De um lado, o faturamento é base cálculo condizente, por exemplo, com aquela que se obtém no art. 34 da Lei de Representação Comercial, que determina a concessão de aviso prévio de 30 dias ou a indenização de 1/3 do faturamento dos últimos 3 meses. Na prática, a regra legal determina uma projeção de faturamento correspondente a 1 (um) mês.
De outro lado, há inúmeros julgados que adotam o lucro líquido médio como critério de cálculo da indenização. Nesse grupo de decisões, é recorrente que o cálculo da lucratividade do contrato seja realizado pela média obtida nos últimos 12 (doze) meses de vigência.7
Nenhuma das bases de cálculo é isenta de dúvidas ou deve ser tomada como parâmetro definitivo para cálculo da indenização nos casos em que sua adoção não for determinada por lei. Explica-se.
A começar, adotar o critério do faturamento sem qualquer ressalva, pode levar a uma situação de overcompensation, especialmente quando as despesas e os custos ordinários do denunciado tiverem sido reduzidos após a comunicação da denúncia. Nesses casos, mantido o faturamento, mas reduzidos despesas e custos, a situação a que ele é conduzido por força da indenização é mais vantajosa daquela em que estaria se o aviso prévio tivesse sido cumprido “in natura”.
Por outro lado, a adoção do critério do lucro médio previne a ocorrência de overcompensation, mas também apresenta falhas e pode levar à situação de undercompensation. Isso porque a indenização calculada pelo lucro líquido somente corresponderá à situação em que o lesado estaria com o cumprimento do aviso prévio na hipótese (improvável, diga-se) em que seus custos e suas despesas tenham sido reduzidos a zero após a comunicação da denúncia. Se, entretanto, despesas e custos ordinários continuarem a existir, há de ser feito um encontro entre os critérios do faturamento e do lucro líquido.
Para que se obtenha a adequada definição do quantum, portanto, deve-se colocar na ordem do dia o que se pode considerar como custos e despesas ordinários. Para contribuir ao início do debate, diga-se que custos são, em linhas gerais, os dispêndios vinculados à produção e à comercialização dos bens ou serviços vinculados ao contrato denunciado e despesas são demais dispêndios necessários à manutenção da atividade vinculada ao contrato denunciado. Em sendo assim, não entrariam no conceito de custos e de despesas ordinários os dispêndios relacionados à extinção do contrato, como dispensas de empregados e a denúncia de contratos com terceiros que, de todo, soam qualificáveis como riscos inerentes à atividade empresarial. O tema é da mais alta relevância, embora não encontre eco frequente na jurisprudência especializada.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
BALZAC, Honoré. O pai Goriot. Tradução de Gomes da Silveira. In: A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. vol. 4. Orientação, introduções e notas de Paulo Rónai. 3ª ed. São Paulo: Globo (Biblioteca Azul), 2012, pp. 252-257 (versão Kindle).
Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.
Vide, por todos, FORGIONI, Paula. Contrato de Distribuição. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 312 e AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Contrato de Distribuição – Causa Final dos Contratos de Trato Sucessivo – Resilição Unilateral e seu Momento de Eficácia – Interpretação Contratual – Negócio Per Relationem e Preço Determinável – Conceito de “Compra” de Contrato e Abuso de Direito. In Revista dos Tribunais, v. 826/2004, p. 119-136, ago., 2004.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
MONTEIRO, Antônio Pinto. Contratos de Distribuição Comercial. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2018, pp. 141-142. No mesmo sentido, ainda que de forma não tão incisiva, vide Orlando Gomes: "Embora válida, a denúncia desacompanhada de aviso prévio sujeita o denunciante ao pagamento de indenização dos prejuízos que a outra parte sofre, no caso, evidentemente, de ser obrigatório o pré-aviso" (GOMES, Orlando. Contratos. Coord. Edvaldo Britto. 26ª edição, rev., atual e aum. António Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 183.
TJSP. Apelação Cível 0109819-53.2006.8.26.0100; Relator(a): Mario de Oliveira; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/06/2016; Data de Registro: 12/07/2016. No mesmo sentido, vide TJSP, Apelação Cível 0169639-61.2010.8.26.0100; Relator (a): Caio Marcelo Mendes de Oliveira; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 30ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/12/2019; Data de Registro: 05/12/2019).
Vide, por todos: TJSP, Apelação Cível 0112498-89.2007.8.26.0100; Relator (a): Cesar Lacerda; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 33ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/01/2013; Data de Registro: 31/01/2013; TJSP; Apelação Cível 0005236-78.2005.8.26.0091; Relator (a): Mario A. Silveira; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; ANTIGO Foro Distrital de Brás Cubas - 1ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 13/02/2012; Data de Registro: 14/02/2012; TJSP. Apelação Cível 0169639-61.2010.8.26.0100; Relator (a): Caio Marcelo Mendes de Oliveira; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 30ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/12/2019; Data de Registro: 05/12/2019 e TJSP; Apelação Cível 0011768-94.2007.8.26.0286; Relator (a): Simões de Vergueiro; Órgão Julgador: 7ª Câmara Extraordinária de Direito Privado; Foro de Itu - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 26/08/2014; Data de Registro: 04/09/2014.