#57. Notas sobre compensação de débitos e arbitragem
por Carlos Eduardo Stefen Elias
A natureza mista da arbitragem1, que nasce de um negócio das partes e se desenvolve primordialmente mediante uma relação processual entre elas e o árbitro, exige dos operadores do direito especial atenção no tratamento de alguns institutos jurídicos. Esse é o caso da compensação de débitos, definida no art. 368 do Código Civil: “Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.”
Pelo menos na experiência do autor, não é raro que partes e árbitros tenham que se debruçar sobre delicadas questões quando tratam do tema da compensação. Nesse sentido, as mais comuns são: a compensação pode operar mesmo que o crédito ativo2 não esteja submetido à convenção de arbitragem que atribui ao árbitro o poder jurisdicional para decidir disputas sobre o crédito passivo? O que deve ocorrer, por sua vez, se o crédito ativo não estiver submetido a convenção arbitral alguma?
A resposta a essas (e outras) perguntas demanda uma análise de distintos pontos de direito material e processual, a começar pela natureza mesma da compensação, as modalidades e respectivas eficácias, bem como a recepção que lhes é oferecida pelo processo.
Consistindo meio de extinção de obrigações recíprocas, nos termos do art. 368 do Código Civil, a doutrina reconhece a existência de três modalidades, das quais apenas duas serão (porque mais frequentes na prática) objeto de atenção nestas breves notas: a compensação legal e a compensação judicial3.
Compensação legal
Embora não seja entendimento unânime, a doutrina majoritária afirma que compensação legal opera mediante o exercício de direito potestativo extintivo4 do titular do crédito ativo5, ou seja, mediante “comunicação de fato de exercício de direito”6 Essa comunicação possui eficácia ex tunc, fazendo retroagir os efeitos a partir da data de concomitância das dívidas7 e pode ocorrer até mesmo no bojo do processo em que a compensação é invocada, mediante o que se convencionou classificar como “preliminar de mérito” em contestação8.
A compensação legal ocorre quando presentes os requisitos, notadamente, quando os créditos são exigíveis e líquidos e quando a prestação objeto do crédito ativo é fungível com a prestação objeto do crédito passivo.
De modo geral, é exigível o crédito a partir do advento de eventual termo ou condição, nos termos dos arts. 331 e 332 do Código Civil9. Por sua vez, pode ser considerado líquido o crédito cuja existência seja certa e cujo objeto seja delimitado10, permitindo a identificação precisa do valor pecuniário. Isso não significa que o crédito perca a liquidez pela simples contestação do devedor. Eventual contestação em juízo apenas torna o crédito litigioso, mas não ilíquido11. Aliás, a jurisprudência tem considerado líquido até mesmo o crédito cuja apuração dependa de cálculo aritmético simples ou da aplicação de índice ou cotação12. Por fim, é a fungibilidade das dívidas entre si o que permite o “acerto de contas” no momento da compensação13.
Na modalidade legal, a compensação é alegada no curso de um processo mediante exceção. Ela não adentra o processo mediante o exercício de ação, mas como simples matéria de defesa14, cuja oposição funciona como exercício do poder formativo extintivo.
No caso de discussão em procedimento arbitral, caberá ao árbitro reconhecer a ocorrência da compensação tal como faria com qualquer outra causa extintiva da obrigação pleiteada pela parte autora. A sentença, reconhecendo a ocorrência da compensação como fenômeno extraprocessual, apenas declarará a sua ocorrência15. Configurando matéria de defesa – a não objeto de ação – a compensação não é objeto de pedido em sentido técnico-processual1617.
Ao não exigir o exercício de ação e não ser objeto de pedido, a alegação de compensação apresentada mediante exceção prescinde que o crédito ativo esteja sujeito a qualquer convenção de arbitragem. Não só: a eventual penalidade de desconsideração dos pedidos formulados pelo litigante que não tenha adiantado a fração que lhe cabe nos custos da arbitragem18 não atinge a compensação, visto que ela não adentra o processo arbitral como pedido em sentido técnico.
Uma última consideração sobre a compensação legal é que ela ocorrerá, como matéria de defesa, até o limite do crédito passivo. Mesmo que haja saldo em benefício do devedor após a compensação total do crédito passivo, o árbitro não pode condenar a parte vencida ao seu pagamento, nem declarar a sua existência, visto que aí não estará mais reconhecendo a operação de um evento extintivo da obrigação pleiteada na arbitragem, mas concedendo um provimento ao réu. Tal saldo deve ser perseguido mediante pedido em sentido técnico, que pode ser formulado pelo réu na arbitragem apenas se a relação jurídica material que o originou estiver sujeita a uma convenção de arbitragem compatível. Se assim não for, o árbitro não terá jurisdição sobre a disputa no bojo da qual será reconhecida a existência do crédito ativo.
Compensação judicial
A segunda modalidade de compensação, dita judicial, tem cabimento quando o crédito ativo não se revestir das características que permitiriam a compensação legal19. O atributo faltante será conferido, justamente, pelo provimento jurisdicional. Para isso, o crédito ativo deve ser objeto de pedido de condenatório ou declaratório, e somente restará constituído em razão da decisão jurisdicional.
Como é possível notar, a dependência da compensação judicial de um provimento jurisdicional prévio que reconheça o crédito ativo afasta algumas das conclusões aplicáveis à compensação legal. Para a compensação judicial – que operará de modo ex nunc, a partir da decisão jurisdicional – será imprescindível a formulação de pedido e, por consequência, que seja outorgada ao árbitro jurisdição para decidir sobre o crédito ativo que será reconhecido. De modo análogo, eventual desconsideração de pleitos em razão do não adiantamento da fração das custas impossibilitará a ocorrência dessa modalidade de compensação.
Mais repercussões na prática arbitral
Para encerrar estas breves notas, o autor toma a liberdade de fazer menção a questão já enfrentada em sua prática – mas aqui colocada como provocação ao leitor e deliberadamente não respondida –: tendo em vista que a estabilização dos pedidos (geralmente ocorrida quando da assinatura do termo de arbitragem ou da apresentação das alegações iniciais, ou ainda de pedidos contrapostos) não se confunde com a estabilização das questões de fato e de direito a serem resolvidas para a prolação da sentença final, deve o tribunal arbitral conhecer da alegação de compensação apresentada somente em réplica ou em outro momento posterior ao encerramento da fase postulatória? A modalidade (estabelecida pelo direito civil) da compensação invocada tem relevância para a resposta (a ser dada pelo direito processual)?
Carlos Eduardo Stefen Elias
Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, é professor de pós-graduação no IBMEC-SP. Atua como árbitro, consultor e parecerista em disputas societárias, de construção, contratos empresariais e de compra e venda de empresas (M&A). Autor do livro “A Imparcialidade dos Árbitros”, publicado pela Editora Almedina.
Para breve explanação a respeito das teses jurisdicionalista, contratualista, autonomista e mista, vide BARROCAS, Manuel Pereira. Manual de arbitragem, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 42-45.
Crédito ativo ou contracrédito é aquele com o qual se extingue a obrigação. Por sua vez, o crédito passivo (ou, simplesmente, crédito principal) é aquele contra o qual a compensação opera. VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, vol. II, 7. ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 200.
Sobre a compensação voluntária ou convencional, terceira modalidade do instituto, vide GOMES, Orlando. GOMES. Obrigações, 19. ed., Grupo GEN, 2019, p 125 (edição eletrônica).
Entre os que consideram necessária a comunicação estão PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, t. XXIV, São Paulo: RT, 2012, p. 420-421 e Martins-Costa, Judith, Comentários ao novo Código Civil, vol. V, t. I, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 570.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, op. cit., p. 421.
TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, vol. I, 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 677.
Com referência a vários acórdãos: STJ, 3ª T., REsp 1.524.730, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 18.08.2015.
Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.
Art. 332. As obrigações condicionais cumprem-se na data do implemento da condição, cabendo ao credor a prova de que deste teve ciência o devedor.
Segundo o art. 1.533 do revogado CC de 1916, "considera-se líquida a obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto". Essa acepção, que incorpora a certeza no conceito de liquidez, destoa da conceituação eminentemente processual, segundo a qual “(...) um título é líquido, quando seu valor é conhecido; é certo, quando sua existência é indiscutível; e é exigível, quando é vencido” STJ, REsp 1179982, Decisão Monocrática Min. Luis Felipe Salomão, j. 23.09.2011. Parece útil ao autor a manutenção do conceito alargado de liquidez no tratamento da compensação legal. Com observações sobre o tema, vide MARTINS-COSTA, Judith, Comentários ao novo Código Civil, op. cit., pp. 580-582.
MIRAGEM, Bruno. Direito Civil - Direito das Obrigações, 3. ed., Grupo GEN, 2021, p. 257 (edição eletrônica).
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. II, 30ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 218.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações, vol. II, 33. ed., Grupo GEN, 2022, pp. 264-265 (edição eletrônica).
Sobre a distinção entre o pedido em sentido técnico e o “pedido” do réu pela declaração de improcedência, vide YARSHELL, Flávio Luiz. Curso de Direito Processual Civil, vol. I, São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 282. De modo didático, a distinção entre ação e defesa (ou “acción y excepción”), colocada a última como “poder jurídico del demandado, de oponerse a la pretensión que el actor ha aducido ante los órganos de la jurisdicción”, vide COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 4. ed., Buenos Aires: B de F., 2005, pp 78-79.
Interessante debate desenvolveu-se na doutrina portuguesa por conta do art. 266º, n.o 2, alínea c), do CPC português de 2013, que passou a exigir reconvenção como veículo para alegação de compensação. Os problemas oriundos dessa exigência tornaram-se ainda mais graves na medida em que o regime da ação declarativa especial (AECOP) não admite a reconvenção. Com ampla bibliografia de Direito Civil e Processual Civil portuguesa, vide LEAL, Jorge Manuel Leitão. AECOP, compensação e gestão processual, in Revista electrónica de Direito, junho de 2021, n. 2 (vol. 25), pp. 185-205.
Tal como disciplinam, entre outros, o art. 35.2 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC ou o art. 37.6 do Regulamento de Arbitragem da ICC.
TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, op. cit., pp. 675-676.