#66. Na pauta do STJ: há prazo para exercício do direito à resolução por inadimplemento?
Eis o pano de fundo fático da questão debatida no AgInt no REsp n. 1.975.113/SP, julgado em 13 de março de 2023: os promitentes compradores de bem imóvel ajuizaram ação de adjudicação compulsória para obter escritura pública definitiva de compra e venda do imóvel. A promitente vendedora resistiu à pretensão e alegou que o preço contratado não havia sido integralmente pago, restando em aberto treze prestações, e apresentou reconvenção com pedido de cobrança das parcelas não pagas e de resolução contratual por inadimplemento.1
O pedido de adjudicação compulsória foi acolhido em primeiro grau, que entendeu ter havido adimplemento substancial do contrato2, e mantido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo; a reconvenção, por sua vez, não foi conhecida em primeiro grau por óbices processuais, mas seu processamento foi aceito pela Corte paulista. Nada obstante, o TJSP julgou os pedidos reconvencionais improcedentes, por reconhecer ter ocorrido a prescrição da pretensão da vendedora à cobrança das parcelas em aberto.3 Nas suas palavras, com o reconhecimento da prescrição inexistiria óbice à adjudicação do imóvel e “nessa medida, a reconvenção não comporta acolhimento, ante a inexigibilidade das prestações prescritas, sendo incabível a condenação dos autores no pagamento destas ou a resolução do compromisso de compra e venda.”4
Seguiu-se, então, o recurso especial aqui comentado, para discutir a alegação de omissão do TJSP quanto à análise do pleito de resolução contratual e o prazo aplicável ao exercício do direito resolutivo5, que a imobiliária recorrente defendia ser, por analogia, aquele prescricional de dez anos previsto no art. 205 CC.6 A discussão de fundo que se colocou foi justamente se, reconhecida a prescrição da pretensão ao cumprimento do contrato, permaneceria exercível o direito formativo extintivo de resolução.
Para o STJ, não.
A decisão do STJ: inadimplemento no suporte fático da resolução
Afastada a alegação de omissão no acórdão a quo, a decisão de mérito foi no sentido de que a prescrição à pretensão afasta a possibilidade de resolução contratual. Consoante se lê do acórdão, relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, “... uma vez prescrita a pretensão de cobrança das parcelas não pagas, não é mais possível pleitear, com base no inadimplemento, a resolução do contrato. Isso porque, nessas situações, desaparece o elemento objetivo que dava suporte ao pleito desconstitutivo.”
A conclusão não é propriamente nova no âmbito da Corte. Em ao menos dois julgamentos anteriores, mas ainda recentes, o STJ analisou se o direito à resolução contratual pode ser exercido após transcorrido o prazo prescricional da pretensão ao cumprimento. Ambas as decisões foram citadas no corpo do acórdão aqui comentado e sua leitura releva à compreensão da posição da jurisprudência:
No AgInt no AREsp 1.589.393/RJ julgado em 2021 pela Quarta Turma, discutia-se ação de resolução contratual movida pela vendedora de bem imóvel. O Tribunal de Justiça de São Paulo havia reconhecido a prescrição da pretensão à cobrança das parcelas em aberto. Aplicou, para tanto, o prazo quinquenal previsto no art. 206, § 5ª, I, CC por considerar (tal como no julgamento aqui comentado) haver dívida líquida constante de instrumento contratual. Em razão da prescrição da pretensão à cobrança, reconheceu que “estando prescrita a pretensão de cobrança das prestações do terreno, descabe rescindir o contrato por este motivo.” A decisão foi mantida por decisão monocrática do relator, Ministro Luis Felipe Salomão, por aplicação da Súmula 83/STJ;
No REsp n. 1.728.372/DF, julgado em 2019 pela Terceira Turma, discutia-se ação de resolução contratual movida pela vendedora, contra a qual o comprador respondeu com reconvenção com pedido de adjudicação compulsória em razão da prescrição da pretensão de cobrança das parcelas não pagas. A peculiaridade do caso estava no fato de que, antes de intentar a ação para resolução, a vendedora havia movido ação monitória para cobrança de parcelas vencidas e não pagas, na qual obteve sucesso. Ao que consta do acórdão, no entanto, a vendedora permaneceu inerte por vinte e quatro anos e não exigiu o pagamento, até que intentou a ação para desconstituição do pactuado. O pedido de resolução foi acolhido em primeiro e segundo graus, pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, especialmente ao argumento de que o exercício da resolução não estaria sujeito à prescrição, por ser direito potestativo. No STJ, a decisão foi revertida em acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, nos seguintes termos: “se o pedido de resolução se funda no inadimplemento de determinada parcela, a prescrição da pretensão de exigir o respectivo pagamento prejudica, em consequência, o direito de exigir a extinção do contrato com base na mesma causa, ante a ausência do elemento objetivo que dá suporte fático ao pleito”
Direito potestativo: a resolução como direito formativo extintivo
Em sua decisão, o STJ optou por não adentrar a tema sensível levantado pela imobiliária recorrente: estaria o direito à resolução por incumprimento, direito potestativo que é, sujeito a prazo prescricional?
Segundo o acórdão, a questão não precisava ser enfrentada, uma vez que “não se discute, portanto, se pretensão de resolução do contrato em razão do inadimplemento está sujeita a prazo prescricional ou decadencial. Tampouco se discute se esse prazo é quinquenal, decenal ou vintenário. Trata-se, simplesmente, de reconhecer que uma vez prescrita a pretensão de cobrança, não há mais possibilidade de se perseguir a resolução do contrato”.
Em outras palavras, o caminho percorrido pela Corte teve como fundamento o fato de que o descumprimento contratual integra o suporte fático do direito à resolução contratual. Em assim sendo, se o seu exercício pressupõe o inadimplemento e este, por sua vez, pressupõe a exigibilidade da dívida, a prescrição da pretensão ao cumprimento impediria a formação completa dos elementos que integram o direito à resolução.
Na doutrina, é essa a lição que se extrai de Pontes de Miranda que afirma, em primeiro lugar, que direitos formativos não prescrevem para, na sequência, ensinar que “se o credor não mais podia cobrar, não mais pode pedir a resolução ou a resilição por inadimplemento, porque o réu não mais tem obrigação de prestar, embora deva. Não há prescrição; há encobrimento do elemento, inadimplemento, necessário ao suporte fáctico da resolução ou da resilição”.7 Adotada tal linha de raciocínio, o afastamento do direito à resolução seria efeito do reconhecimento da prescrição à pretensão de cumprimento.8
O entendimento não é pacífico, contudo. Aline Terra, por exemplo, defende que o direito à resolução não está sujeito à decadência (salvo quando prevista em lei ou quando voluntária), sem que isso afete a prescritibilidade dos direitos subjetivos dela provenientes. A autora entende que colocar fim ao vínculo obrigacional mesmo quando prescrito o direito a exigir o adimplemento é mais vantajoso do ponto de vista da segurança jurídica, pois “resolvida a relação obrigacional, dúvidas não haverá quanto à liberação das partes do cumprimento do dever principal de prestação”.9
“Em Pauta” extra: qual o prazo para pleitear a adjudicação compulsória?
O caso em mãos aponta para tema conexo, ainda que não tenha sido objeto de discussão na instância especial. Trata-se do já longevo entendimento do STJ de que o cumprimento específico do compromisso de compra e venda, a chamada adjudicação compulsória, não está sujeito a prazo, mesmo que o contrato não tenha sido registrado na matrícula do imóvel.10
O histórico de decisões a propósito conduz ao REsp n. 76.927/MG, julgado em 1997, em que o STJ se manifestou pela imprescritibilidade em razão da constituição de direito real advinda do registro do instrumento; na sequência, ao REsp n. 369.206/MG, julgado em 2003, o voto-vencedor do Min. Ruy Rosado consignou que “sobre o efeito do transcurso do tempo em relação ao promissário comprador que se mostra inerte no exercício do seu direito, tenho que a melhor orientação está com os julgados que afastam em tais casos a prescrição”, inclusive no caso de contratos não registrados; e deságua no REsp n. 1.216.568/MG, de 2015, em que o direito à adjudicação compulsória foi qualificado como direito potestativo exercível a qualquer tempo, pois não previsto prazo na lei para seu exercício. Para decisões mais recentes, no mesmo sentido, vide AgInt no REsp n. 1.584.461/GO (“a jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que é dispensável o registro de compromisso de compra e venda para a imprescritibilidade da pretensão de adjudicação compulsória”) e REsp n. 1.489.565/DF.
A despeito da jurisprudência consolidada quanto à inexistência de prazo para o exercício da adjudicação compulsória, salta aos olhos a qualificação oscilante feita pela Corte sobre a sua natureza, ora vista como exercício de direito real, ora como direito potestativo ora como direito subjetivo vinculado a uma pretensão.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Devo a inspiração e o incentivo para comentar este julgado aos participantes das aulas da disciplina “Direito Imobiliário Geral” da T12 da Pós de Imobiliário da FGV-Law SP, que tive o prazer de ministrar entre os dias 16 de março e 04 de maio de 2023. Fica registrado meu agradecimento pelas provocações e debates em sala de aula.
In verbis: “À míngua de impugnação específica, ainda que restem 13 parcelas inadimplidas, no presente caso, deve ser aplicada a Teoria do Adimplemento Substancial, mitigando-se assim, a regra acima prescrita, bem como aquela contida no artigo 475 do Código Civil, que preconiza: “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”. Essa teoria refreia a extinção pura e simples do contrato, bem como outros efeitos extremados por conta da inadimplência, cabendo ao Magistrado ponderar o caso concreto cotejando a utilidade da extinção da relação obrigacional para o credor e o prejuízo que adviria para o eventual inadimplente e mesmo para terceiros a contar da resolução do contrato.” (Sentença proferida em 15.01.2020 nos autos n. 1041541-76.2018.8.26.0224, Comarca de Guarulhos, Tribunal de Justiça de São Paulo, acesso pelo Esaj)
A coluna não se propõe a tratar sobre o prazo prescricional aplicável à pretensão de cobrança das parcelas em aberto no caso em questão, mas é útil trazer à leitora ou ao leitor da AGIRE o caminho percorrido pelo TJSP para considerar a pretensão encoberta pela prescrição. Segundo o acórdão do TJSP: (i) com o vencimento a última parcela, em 1997, iniciou-se o curso do prazo prescricional vintenário previsto no art. 177 do revogado Código Civil de 1916; (ii) como à data da entrada em vigor do Código Civil de 2002 ainda não havia transcorrido mais da metade deste prazo, aplicou-se a regra de transição do art. 2.038 do CC 2002 e teve início novo curso do prazo prescricional; (iii) este prazo, por sua vez, foi considerado como sendo 5 (cinco) anos, por aplicação do art. 206, § 5º, I, atinente à pretensão de “cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”.
TJSP; Apelação Cível 1041541-76.2018.8.26.0224; Relator (a): Rômolo Russo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/03/2021; Data de Registro: 26/03/2021.
Conforme consta do acórdão do STJ:: “Irresignada, IMOBILIÁRIA interpôs recurso especial com fundamento no art. 105, III, a, da CF, alegando ofensa aos arts. (1) 489, § 1º, V, do NCPC, porque o TJSP não teria analisado o pleito de resolução contratual; e (2) 205 do CC/02, pois a pretensão de resolução do contrato por inadimplemento não se confunde com a de cobrança dos valores não pagos, estando vinculada a um direito potestativo e a um provimento jurisdicional constitutivo, razão pela qual sujeita a prazo decadencial que, na ausência de previsão legal específica, seria de dez anos, por analogia ao mencionado art. 205 do CC/02.”
Art. 205 CC. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXV. Atualizado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: RT, 2012, § p. 449 (§ 3.091).
Note-se, ainda, que a leitura sistemática e de coerência do sistema proposta pela doutrina para sustentar a aplicação do prazo geral de dez anos para a prescrição da responsabilidade contratual funda-se no argumento de que este mesmo prazo é aplicável também aos demais remédios, dentre eles a resolução: “se a pretensão ao adimplemento ainda não foi encoberta pela eficácia da prescrição e, portanto, o contratante pode exigir a observância ao avençado, a lógica reclama que também lhe seja reconhecida a possibilidade de responsabilizar o devedor pelos danos decorrentes do descumprimento. Pode-se afirmar o mesmo a propósito da execução pelo equivalente e da resolução.” (MARTINS-COSTA, Judith e ZANETTI, Cristiano. Responsabilidade contratual: prazo de dez anos. In: Revista dos Tribunais, vol. 979/2017, Acesso pela RTOnline).
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp.144-145.
Nos termos da Súmula 239 do STJ, o direito à adjudicação compulsória não está vinculado ao prévio registro do compromisso de venda na matrícula do imóvel (“O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”). Nada obstante, nos termos do art. 1.417 CC, a constituição do direito real de aquisição, que não se confunde com o direito à adjudicação compulsória, depende do registro: “Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.”