#69. Denúncia de tratados internacionais: a decisão do STF sobre a Convenção nº 158 da OIT
Reflexos para além do Direito do Trabalho
por Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto
Após aproximadamente 26 anos de espera, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 16251, que discutia a constitucionalidade do Decreto Presidencial que denunciou a Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o término da relação de trabalho por iniciativa do empregador2.
A incorporação da Convenção nº 158 no direito brasileiro seguiu todos os trâmites regulares para a internalização de tratados internacionais: foi aprovada pelo Congresso Nacional (por meio do Decreto Legislativo nº 68 de 1992), ratificada (em 1995) e promulgada internamente (pelo Decreto Presidencial nº 1.855 de 1996).
Poucos meses após a sua entrada em vigor, contudo, a Convenção foi denunciada pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, por meio do Decreto Presidencial nº 2.100/1996. Na prática, com esse ato, o Brasil se retirou da Convenção, que deixou de ser aplicável internamente.
O caso ganhou repercussão em razão de duas temáticas distintas. A primeira está ligada à seara trabalhista, pois a manutenção da aplicabilidade da Convenção no direito interno alteraria as regras sobre a extinção do contrato de trabalho por iniciativa do empregador, que passaria a ter que apresentar uma “causa justificada” para embasar o término da relação de emprego. A segunda, que vai muito além do direito do trabalho, diz respeito à maneira como o direito brasileiro se relaciona com as normas internacionais. E é sobre essa segunda temática que este texto irá se debruçar.
A incorporação de tratados internacionais pelo direito brasileiro
Como mencionado acima, para que um tratado internacional – seja ele de qual tema for – seja incorporado ao direito brasileiro, é necessário que se observem as seguintes fases:
(1) negociação e assinatura internacional, momento em o país declara para a comunidade internacional a intenção de incorporar tal norma ao direito interno;
(2) aprovação pelo Poder Legislativo por meio de Decreto Legislativo, fase na qual se avalia a pertinência da ratificação do tratado pelo país. Salienta-se que o quórum de aprovação pelo Congresso Nacional impactará a hierarquia normativa que o tratado ostentará ao ser incorporado ao direito interno, podendo adquirir status de emenda constitucional;
(3) ratificação, ato pelo qual o país se compromete perante a comunidade internacional a observar as disposições do tratado;
(4) promulgação interna pelo Poder Executivo por meio de Decreto Presidencial, formalidade para que o tratado internacional passe a vigorar no plano doméstico. A necessidade desta etapa é discutida na doutrina3 e foi reavivada com a adesão do Brasil à CISG, em 20134. À época, questionou-se a data de entrada em vigor da Convenção no Brasil, como se pode rememorar aqui.
A participação do Poder Legislativo na fase 2 tem como finalidade prevenir eventuais abusos do Poder Executivo (que é um grande protagonista nesse processo), funcionando como um mecanismo de freios e contrapesos5. Contudo, a mesma clareza sobre a obrigatoriedade de participação do Poder Legislativo no processo de incorporação dos tratados internacionais não é observada quando se trata da sua denúncia.
Em outras palavras, até a recente decisão do STF, a seguinte questão estava em aberto: para que um tratado seja denunciado, é necessária a participação do Poder Legislativo (assim como ela é necessária no processo de incorporação) ou é possível que o Poder Executivo tome essa decisão unilateralmente?
A denúncia de tratados internacionais e a decisão do STF
Em 26 de maio de 2023, o STF deu resposta à pergunta acima após muitos pedidos de vista e o prolongamento da decisão por diferentes formações do tribunal durante quase três décadas. Em resumo, os votos dos ministros se dividiram em duas grandes teses: (i) possibilidade de decisão unilateral do Poder Executivo para denunciar tratados e (ii) impossibilidade de decisão unilateral Poder Executivo para denunciar tratados, com necessidade de aprovação pelo Poder Legislativo. Esta segunda tese (ii) se subdividiu em dois entendimentos, um com repercussão imediata sobre a Convenção nº 158 da OIT e outro com repercussão somente após a publicação da ata de julgamento:
(a) O Ministro Nelson Jobim votou pela improcedência total da ADI, com base na ausência de previsão normativa expressa sobre a participação do Poder Legislativo. Por esse entendimento, portanto, a denúncia dos tratados não estaria condicionada à aprovação do Congresso Nacional e o Decreto Presidencial nº 2.100/1996 seria constitucional; e
(b) A segunda tese foi fundamentada no seguinte consenso: assim como a incorporação, a denúncia dos tratados internacionais também estaria condicionada à aprovação do Poder Legislativo. Essa tese, contudo, se ramificou a partir deste ponto.
Para os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, entendendo pela procedência total da ADI, seria necessária a aprovação do Poder Legislativo para a denúncia dos tratados. O Decreto Presidencial nº 2.100/1996 seria inconstitucional e, por esse raciocínio, a Convenção nº 158 deveria ter sua aplicabilidade reestabelecida no país.
Os ministros Maurício Corrêa e Carlos Ayres Britto compreenderam que a denúncia da Convenção “condiciona-se ao referendo do Congresso Nacional, a partir do que produz a sua eficácia plena”6 (embora não fique claro pela leitura do voto qual é a consequência prática desse posicionamento).
Posteriormente, a partir dos votos dos Ministros Teori Zavascki e Dias Toffoli, firmou-se o entendimento majoritário de que “a denúncia pelo Presidente da República de tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, para que produza efeitos no ordenamento jurídico interno, não prescinde da sua aprovação pelo Congresso, entendimento que deverá ser aplicado a partir da publicação da ata do julgamento, mantendo-se a eficácia das denúncias realizadas até esse marco temporal, formulando, por fim, apelo ao legislador para que elabore disciplina acerca da denúncia dos tratados internacionais, a qual preveja a chancela do Congresso Nacional como condição para a produção de efeitos na ordem jurídica interna, por se tratar de um imperativo democrático e de uma exigência do princípio da legalidade”7. Seguiram tal posicionamento os Ministros Gilmar Mendes, André Mendonça e Nunes Marques.
Em suma, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é necessária a aprovação do Congresso Nacional para que o Presidente da República denuncie tratados. Contudo, modulando os efeitos da decisão, tal entendimento deve ser aplicado tão somente a partir da publicação da ata de julgamento (sem efeito retroativo), preservando as denúncias realizadas até tal data. Assim, o STF manteve a denúncia da Convenção nº 158 da OIT pelo Brasil. Se o conteúdo de tal Convenção deveria ou não ser incorporado pelo direito interno é uma outra discussão, que ficará para reflexão futura.
Conclusão
À primeira vista, a decisão do STF sobre a denúncia da Convenção nº 158 da OIT pode parecer um tema de interesse exclusivo da área trabalhista. Contudo, engana-se quem enxerga o episódio dessa forma. Para além dos desdobramentos relacionados à extinção do contrato de trabalho, o julgamento do tema teve um impacto significativo na forma como todo o direito brasileiro dialoga com o direito internacional.
A partir da decisão, para que o Poder Executivo denuncie um tratado internacional – seja sobre compras internacionais (tal como a CISG), tributação, reciprocidade, cooperação técnica, arbitragem, trabalho, seja de qualquer outra temática – não poderá fazê-lo unilateralmente, sendo necessária a anuência do Congresso Nacional.
A longa espera pelo julgamento trouxe consigo insegurança jurídica durante muitos anos. A partir de agora, contudo, não há dúvidas sobre a necessidade de aprovação congressual para a denúncia dos tratados o que, a nosso ver, é coerente com o processo de incorporação dos tratados internacionais e oportuniza maior harmonia entre os poderes. Vale ressaltar, no entanto, a importância de regulação do procedimento de denúncia, o que traria maior clareza sobre o papel e os limites de cada um dos poderes.
Olivia de Quintana Figueiredo Pasqualeto
Professora da FGV Direito SP. Doutora e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP. Foi consultora externa da Organização Internacional do Trabalho. Autora do livro "Proteção da saúde e segurança do trabalhador: influência do direito internacional" (Almedina, 2021).
Ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
Além da ADI mencionada, também foi apresentada no STF a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 39, ajuizada pela Confederação Nacional do Comercio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em busca da declaração de constitucionalidade acerca do Decreto 2.100/1996.
A necessidade ou não de ato interno para que o tratado entre em vigor após a ratificação remonta às discussões sobre a adoção de teorista dualista ou monista pelo direito brasileiro. Ainda que o debate não tenha se encerrado por completo, parte da doutrina entende que o Brasil adotou o dualismo moderado (sendo necessário o Decreto Presencial para concretizar a incorporação do tratado internacional ao direito brasileiro), enquanto outra parte defende o monismo moderado, para quem o Decreto Executivo configura uma prática que representa meramente a comunicação de uma norma existente.
O Brasil depositou o ato de adesão à CISG na UNCITRAL em 04.03.2013. Nos termos do art. 99 (2) da CISG, que regula sua vacatio legis, o início de vigência da CISG no Brasil se deu em 1º.04.2014. À época, contudo, não havia sido ainda publicado o Decreto Presidencial, o que somente se deu em 17.10.2014 (Decreto n. 8.327/2014). Para mais informações sobre o histórico do entendimento a respeito da necessidade do Decreto Presidencial bem como seus impactos em relação à CISG vide, por todos, STEINER, Renata e NALIN, Paulo. Compra e venda Internacional de Mercadorias. Belo Horizonte: Fórum, 2015, pp. 45-51.
TOLFO, A. C. A origem da previsão constitucional da participação do poder legislativo na conclusão dos tratados internacionais. Revista Eletrônica Direito e Política, [S. l.], v. 8, n. 3, p. 1729–1754, 2014. Disponível aqui..
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