# 80. Invalidade do contrato: efeitos desconstitutivo e restituitório
Segundo o art. 182 do Código Civil1, a anulação do negócio jurídico leva à restituição das partes ao estado em que antes dele se achavam e, caso não seja possível que isso ocorra na forma específica, que sejam “indenizadas pelo equivalente”. O dispositivo trata do chamado efeito restituitório da decretação de invalidade que, conjuntamente com o efeito desconstitutivo, é objeto desta coluna “Em foco”.2
Âmbito de aplicação do art. 182 CC: nulidade e anulabilidade
A despeito da redação pouco clara, o disposto no art. 182 CC aplica-se tanto às hipóteses de nulidade quanto àquelas de anulabilidade do negócio jurídico.
É verdade que, em uma primeira leitura, a admissão do retorno das partes ao estado anterior pode soar contraditória com o quanto inscrito no art. 177 CC3, que dispõe que a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença.
A contradição, no entanto, é meramente aparente.
No regime comum do Direito Privado brasileiro4, as invalidades devem ser pronunciadas judicialmente5 (ou, se houver convenção de arbitragem válida, também por decisão arbitral6).
Da mesma forma, tanto negócios jurídicos nulos quanto anuláveis podem ter produzido seus efeitos típicos e esperados pelas partes antes da decretação da invalidade (e, ademais, podem também ter produzido efeitos não-típicos7). Somente por excesso de abstração – o que se encontra em doutrina da mais alta qualidade, é verdade8 – é que se pode considerar que negócios nulos não produzem efeitos ou que tais efeitos são meramente aparentes e que, portanto, nada haveria a desconstituir.
É justamente nas situações em que os efeitos próprios do negócio nulo foram produzidos que se coloca a discussão sobre a obrigação de restituir. Isso, porque a desconstituição do negócio inválido – efeito necessário da decretação de invalidade – pode ou não demandar a restituição do quanto já prestado.
A desconstituição retroativa de efeitos não terá lugar quando o negócio jurídico ainda não tiver produzido seus efeitos próprios (pense-se no caso em que ainda não tenha havido início da prestação ou de contraprestação). Nos demais casos, coloca-se em evidência a análise da necessidade, da possibilidade ou mesmo da conveniência de desconstituição retroativa dos efeitos por ele produzidos.
Desconstituição vs. restituição
Para fazer uso de um exemplo manualístico, diga-se que, anulada a compra e venda do automóvel, o bem deva ser devolvido ao vendedor que, em contrapartida, deve restituir ao comprador o preço, caso já recebido. A realidade, no entanto, é muito mais complexa: há diversas situações, quiçá até mais frequentes do que essa, em que a restituição do que foi prestado não é cabível ou não é possível de ser realizada na forma específica.
É o caso dos contratos cujo objeto mediato seja um bem infungível que tenha perecido, de contratos de trato sucessivo (como o caso da locação, em que o uso e gozo do bem locado foi disponibilizado ao locatário durante certo período), contratos de prestação de serviços no geral (em que o serviço ou o fazer já tenha sido prestado e usufruído pelo contratante) e em diversos contratos complexos, como naqueles em que o cumprimento da prestação por uma das partes resulta na entrega de uma utilidade que não pode ser devolvida (pense-se, por exemplo, em um contrato de construção civil em que a obra já foi entregue, total ou parcialmente).
À luz de tais situações, meramente exemplificativas, observa-se a existência de ao menos dois grupos de situações a propósito do dever de restituir decorrente da invalidade:
De um lado, há situações em que a obrigação de restituir existe e pode ser realizada in natura. Nesses casos, são evidentes os efeitos desconstitutivo e restituitório, que se operam em conjunto;
De outro, há situações em que a obrigação de restituir existe, mas há algum impedimento ao seu cumprimento in natura. Nestes casos, haverá o efeito desconstitutivo da invalidade e haverá também o efeito restituitório das prestações que, no entanto, será operado por substituição de seu objeto mediato: no lugar da coisa, será prestado o seu equivalente em dinheiro.
É a propósito deste segundo grupo de situações que se passa a tratar.
Restituição in natura vs. “indenização pelo equivalente”
Nos casos em que a restituição in natura não pode ocorrer por algum impedimento (fático ou jurídico, por exemplo), o legislador, no art. 182 CC, repetindo regramento empregado no art. 158 Código Civil de 19169, determinou a conversão da prestação de restituir in natura em uma prestação pecuniária substitutiva, que foi denominada de “indenização pelo equivalente”.
A vinculação da prestação substitutiva à indenização não é exclusiva do legislador civil. No âmbito do Direito Público, a novel lei de licitações (Lei 14.133/2021) contém regra similar, embora mais bem elaborada, àquela trazida pelo art. 182 CC. O caput do seu art. 148 dispõe que: (i) o reconhecimento da nulidade tem efeito retroativo; (ii) impede a produção de efeitos jurídicos do ato nulo e (iii) impõe a desconstituição dos efeitos já produzidos. Em relação específica à desconstituição dos efeitos produzidos, o § 1º do dispositivo prevê que, não sendo possível o retorno à situação fática anterior, a nulidade será “resolvida pela indenização por perdas e danos”.10
A bem da verdade, porém, não há indenização pelo equivalente (como se infere da leitura literal do art. 182 CC) nem indenização por perdas e danos (como se infere da leitura literal do § 1º do art. 148 da Lei 14.133/2021) naquelas situações em que a restituição in natura é substituída por restituição em pecúnia: a restituição não depende, não pressupõe e não se confunde com a ocorrência de dano.
Pense-se no exemplo do automóvel, com o qual se abriu a seção anterior: a obrigação de restituí-lo in natura, que decorre do reconhecimento da invalidade, não tem efeito indenizatório. Nas palavras de Pontes de Miranda, “de um lado e de outro, restabelece-se o anterior estado das coisas, isto é, o estado em que se achavam os bens da vida, num e noutro patrimônio”11. Se o automóvel não existe mais, o valor que será pago no lugar de tal prestação tampouco deve ser considerado como tendo natureza indenizatória, pois não se presta a lidar com um problema próprio à reparação de um dano.
Argumento definitivo para diferenciar a restituição da indenização é aquele que reconhece que a obrigação de restituição independe da imputação da invalidade àquele que deve restituir enquanto a indenização está sujeita às regras gerais que impõem a imputação de responsabilidade (sobre o conceito de imputação para o Direito, vide AGIRE #75). São, portanto, situações independentes.
Por precisão, melhor seria falar em “restituição pelo equivalente”, sendo essa a interpretação conforme e sem redução do texto a ser dada aos dispositivos legais antes referidos.12
Os efeitos práticos da distinção entre indenizar e restituir, por sua vez, apontam para relevante discussão sobre o prazo prescricional aplicável à pretensão restituitória (in natura ou pelo equivalente pecuniário), tema que será tratado na AGIRE #85, à luz da jurisprudência do STJ em sede de diversos recursos repetitivos sobre a matéria.
Mas não é só em relação à conversão em pecúnia que os desafios da temática se apresentam: há situações em que a restituição, incabível in natura, não será perceptível na prática. Explica-se.
Em alguns casos, como no contrato de locação ou no contrato de empreitada, antes mencionados, apesar de haver efeito desconstitutivo da invalidade, haverá compensação13 entre as respectivas prestações: no caso da locação, devem-se restituir os aluguéis em contrapartida à restituição do gozo do bem; no caso da empreitada, restitui-se o preço da construção, que, no entanto, ficará com o pretenso credor. Como ensinam Menezes Cordeiro e Judith Martins-Costa14, o cálculo do valor a restituir será aquele (ao menos em regra) acordado contratualmente. Isso significa que, como resultado final, ter-se-á algo próximo à manutenção dos efeitos do negócio jurídico nulo.
A admissão de que há pretensões correspectivas de restituição (que se compensam) abre espaço para o reconhecimento de que nem sempre o cálculo da restituição levará a resultado idêntico à manutenção dos efeitos do contrato inválido, como se a decretação de invalidade operasse efeitos ex nunc. No mesmo texto antes citado, Judith Martins-Costa faz referência à situação de invalidade por corrupção. Nesses casos, ensina a doutrinadora, o preço contratual não poderá ser considerado como parâmetro para compor o dever de restituir porque ele próprio (o preço) é atingido pela corrupção que fundamenta a nulidade.
Sobre o tema, e a título de provocação, a AGIRE hoje concede espaço ao Direito Público...
Uma concessão ao Direito Público: o entendimento do TCU sobre a restituição de lucros ilícitos (disgorgement of profits).
Na legislação publicista, há regra específica sobre a manutenção dos efeitos do negócio nulo que não é encontrada expressamente no Direito Privado. Trata-se do disposto no art. 149 da Lei 14.133/2021 (equivalente ao art. 59 da Lei 8.666/1993), cuja redação importa transcrever:
Art. 149. A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa.
A primeira parte do dispositivo impõe à Administração Pública o “dever de indenizar o contratado” pelo quanto já prestado. A regra parece excepcionar uma leitura ampla e irrestrita do efeito de “restituição ao estado anterior” previsto no art. 148 da mesma lei, antes mencionado. Ali, o legislador reconheceu a possibilidade de preservação dos efeitos do contrato até o momento da decretação de invalidade. Chama-se, novamente, a atenção à menção de uma obrigação com conteúdo indenizatório, pois a obrigação atrelada às prestações já realizadas assemelha-se mais à obrigação de pagamento (caso se considere que há manutenção dos efeitos do contrato) ou à obrigação de restituir (caso se considere que há restituição, ainda que com a compensação de prestações) do que à indenização por um dano.
No processo de Tomada de Contas Especial 016.588/2019-3 (Acordão 1842/2022), o Tribunal de Contas da União conferiu à tal obrigação interpretação bastante particular. No caso julgado, discutiu-se a abrangência do pagamento devido pelas prestações já realizadas em contrato tido como nulo em razão de fraude à licitação praticada pelo particular. Conforme o acórdão, relatado pelo Ministro Anastasia, “contratos decorrentes de fraude são nulos. E a declaração de nulidade opera efeitos retroativos, a fim de se reconstituir, na medida do possível, o status quo ante que, no presente caso, significa a indenização da empresa pelos custos, expurgados os lucros ilegítimos, exatamente para evitar o enriquecimento sem causa e o benefício da própria torpeza”.
Em outras palavras, o TCU decidiu que o particular tem direito a receber pelo custo do serviço prestado, excluídos os lucros que esperava obter com tal prestação15. A decisão teve como fundamentos normativos os art. 59 da Lei 8.666/1993, arts. 148 e 149 da novel lei de licitações bem assim o art. 884 CC, que trata sobre a figura do enriquecimento sem causa.
Sem pretensão de analisar a questão à luz da novel lei de licitações ou do Direito Público, fica a provocação voltada ao Direito Privado: seria o disgorgement of profits aplicável para delimitar a extensão do dever de restituir em casos de invalidade imputável a uma das partes?
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.
As invalidades, sejam elas por nulidade ou por anulabilidade, como ensina Pontes de Miranda, devem ser decretadas pois, “por mais profunda que seja a deficiência, o suporte fático entrou no mundo jurídico” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, vol. IV. § 410, p. 308.)
Art. 177. A anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de ofício; só os interessados a podem alegar, e aproveita exclusivamente aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade.
No Direito Público, como se sabe, é discutida a possibilidade de invalidação por via administrativa.
Mesmo autores que reconhecem que os negócios nulos são “natimortos” e “não ressuscitam”, como Orlando Gomes, afirmam que “não é igualmente correta a tese de que a nulidade é imediata ou instantânea. O negócio nulo subsiste, se escapa à apreciação do juiz. Seja para pronunciá-la, declará-la ou decretá-la, a intervenção judicial é imprescindível” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19ª ed. revista, atualizada e aumentada por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 429 e 431).
Nos termos do art. 8º da Lei de Arbitragem, a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato que está inserida. Dessa forma, salvo quando a causa de invalidade for comum, a invalidade do contrato não contamina, necessariamente, a validade da cláusula compromissória. Nos casos de não contaminação “a arbitragem subsistirá como método escolhido para a resolução de controvérsias, cabendo aos árbitros decidir sobre a presença ou não de invalidade a macular o contrato” (MARTINS-COSTA, Judith e BENETTI, Giovana. Art. 8º. In: WEBER, Ana Carolina e LEITE, Fabiana (org.). Lei de Arbitragem comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 134.)
Nesse sentido, remete-se a Eduardo Nunes de Souza, quando afirma que “os casos de efeitos de atos nulos são muitos, particularmente quando se consideram também os efeitos que não foram originalmente pretendidos pelas partes” (SOUZA, Eduardo Nunes. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico. Nulidade e anulabilidade no Direito Civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 260). Agradeço o Professor Eduardo Nunes pela leitura atenta da primeira versão do texto agora publicado e pelas considerações críticas às linhas escritas.
É o que defende Marcos Bernardes de Mello, quando afirma que “quanto aos ‘efeitos’ do negócio jurídico nulo, sendo apenas aparentes, não é preciso desconstituí-los, porque não existem e quando existem (eficácia putativa) são definitivos (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 16 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 106)
CC1916. Art. 158. Anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado, em que antes dele se achavam, e não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.
Art. 148. A declaração de nulidade do contrato administrativo requererá análise prévia do interesse público envolvido, na forma do art. 147 desta Lei, e operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos. § 1º Caso não seja possível o retorno à situação fática anterior, a nulidade será resolvida pela indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VI. Atualizado por Marcos Bernardes de Melo e Marcos Ehrhart Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 424, item 2, p. 357. É verdade, porém, que em diversas outras passagens do Tomo VI (no qual lida com o tema da invalidade), Pontes de Miranda refere-se à indenização pelo equivalente. Vide, por todos, o § 488 em que afirma que “anulado o ato jurídico, dá-se a restituição do que receberam os figurantes e, se isso não mais é possível, cabe indenização (...).” A menção à indenização não parece ser confundível, no entanto, com a indenização decorrente de ato ilícito, o que fica claro na seguinte passagem do mesmo tomo: “anulado o ato jurídico, há a restituição de que fala o art. 158. Se não é possível, dá-se a indenização pelo que devia ter sido restituído, - que se não confunde com a ação de indenização por ato ilícito absoluto (art. 159).” § 455, p. 465. As referências legais são ao Código Civil de 1916, no qual o art. 158 correspondia ao atual art. 182 CC.
No sentido aqui defendido, veja-se Rodrigo da Guia Silva: “não se deve deixar induzir a erro por força da referência da parte final do art. 182 à expressão ‘indenizadas’; trata-se com efeito, de mera imprecisão conceitual, sem o condão de mascarar o perfil funcional restituitório da obrigação de restituição do equivalente”. (SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. 2ª ed. São Paulo: 2022, p. 276). O autor cita, em reforço à sua posição, a abalizada opinião de Eduardo Nunes de Souza (já citado nesta coluna) no mesmo sentido.
Sob enfoque diverso, o tema da compensação já frequentou os debates da AGIRE, nas colunas #57 (de Carlos Eduardo Stefen Elias) e # 72 (de Daniel Gruenbaum).
MARTINS-COSTA, Judith. Efeitos Obrigacionais da invalidade: o caso dos contratos viciados por ato de corrupção. In: BARBOSA, Henrique e SILVA, Jorge Cesa. A evolução do Direito Empresarial e Obrigacional. 18 anos do Código Civil. Obrigações & Contratos. Vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021, pp. 238-239 e MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil. II. Parte Geral. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2018, p. 936.
De acordo com a decisão, a atuação do TCU nestes casos deve ser apenas indireta, para impor ao administrador público prazo para tomada de providências visando à restituição dos lucros ilícitos, sem que tenha ela própria competência para determinar tal restituição.