#85. Na pauta do STJ: invalidade e prescrição da pretensão à restituição
A AGIRE #80 tratou dos efeitos desconstitutivo e restituitório da invalidade contratual. A coluna “Em Pauta” de hoje mantém-se firme à temática da invalidação, mas com olhar mais específico: qual a posição do STJ a respeito do prazo prescricional aplicável à pretensão de restituição fundada no art. 182 CC1?
O tema foi recentemente debatido na Corte no julgamento da Pet 12.602/DF que, em 17.03.2023, rejeitou a proposta de revisão do Tema 610, iniciada por questão de ordem levantada pela Ministra Nancy Andrighi.
Tema 610: invalidade, restituição e enriquecimento sem causa
Ponto de partida da coluna é o Tema nº 610, julgado em 2016, no qual se definiu ser trienal o prazo de prescrição para devolução de contribuição a plano de saúde paga a maior em razão da nulidade de cláusula de reajuste:
“Na vigência dos contratos de plano ou de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve em 20 anos (art. 177 do CC/1916) ou em 3 anos (art. 206, § 3º, IV, do CC/2002), observada a regra de transição do art. 2.028 do CC/2002.”
Os dois julgados que deram origem a ele (REsp 1360969/RS e REsp 1361182/RS) discutiam fatos semelhantes: em contrato de plano ou de seguro de assistência de saúde em curso, o segurado alegou a invalidade de cláusula de reajuste por mudança de faixa etária e pleiteou a devolução do quanto pago a maior.
Para fins de consolidação da tese, a Segunda Seção do STJ, em acórdão prolatado por maioria e relatado pelo Ministro Marco Bellizze, decidiu o seguinte:
(i) nas relações de trato sucessivo, é possível requerer a revisão de cláusula abusiva a qualquer tempo, mas a pretensão à restituição do quanto pago está sujeita a prescrição “no período anterior à data da propositura da ação”2;
(ii) a pretensão de restituição fundada na nulidade de cláusula tem natureza de repetição do indébito com base no enriquecimento sem causa3. O enriquecimento resta qualificado a partir do reconhecimento da invalidade4, momento no qual “nasce para o contratante lesado o direito de obter a restituição dos valores pagos a maior”.
A partir daí, o STJ concluiu que o efeito restituitório decorrente da invalidade, ex vi art. 182 CC, é espécie de enriquecimento sem causa que se sujeita ao prazo prescricional trienal previsto no art. 206, § 3º, IV CC: prescreve: (...) § 3º Em três anos: (...) IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa5.
A proposta de revisão do Tema 610 (e sua rejeição)
A proposta de revisão do Tema 610 partiu de questão de ordem suscitada pela Ministra Nancy Andrighi, na qual apontou suposta divergência entre o enunciado e o quanto decidido em dois julgamentos da Corte.
O primeiro deles é o EREsp 1.280.825/RJ, julgado em 2018, já bastante conhecido daqueles que se dedicam ao direito contratual. Nele, a Segunda Seção do STJ pôs fim (ou, no mínimo, uma pausa) à oscilação de entendimentos no âmbito da Corte sobre o prazo prescricional na responsabilidade contratual por inadimplemento. Decidiu-se que a prescrição da pretensão indenizatória decorrente de ilícito contratual segue o prazo geral de 10 anos do art. 205 CC6, reservando-se o prazo trienal disposto no art. 206, § 3º, V do CC7 à indenização por danos extracontratuais8.
Contextualização: a menção à decisão no contexto da proposta de revisão do Tema 610, de plano, chama atenção, pois a restituição em caso de invalidade em nada se confunde com a responsabilidade contratual por inadimplemento. Conforme o argumento da Ministra Nancy Andrighi, a referência a tal julgado se deve ao fato de a unidade do prazo prescricional da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) ter sido discutida como fundamento subsidiário (não vinculante) quando do julgamento do Tema 610. Mais precisamente, a decisão que se sagrou ali vencedora apontou que, não fosse por aplicação do prazo trienal por enriquecimento sem causa, a restituição também estaria sujeita ao prazo trienal pela via da responsabilidade civil, in verbis: “essa nova perspectiva do Código Civil/2002 – de equivalência do prazo prescricional da pretensão relativa ao ressarcimento por enriquecimento sem causa com aquele referente à reparação civil (seja ela contratual ou extracontratual, inclusive a decorrente de dano moral) – conduz à uniformidade de aplicação do lapso temporal prescricional trienal(...)”.
Já no EREsp 1.523.744/RS, julgado em 2019, a Corte Especial decidiu, por maioria, que o prazo prescricional aplicável à pretensão de restituição de cobrança de serviços não contratados em contratos de prestação de serviços de telefonia é decenal (ex vi art. 205 CC). A decisão chegou à Corte Especial em razão de divergências de posições entre órgãos julgadores de direito privado e de direito público sobre a qualificação de enriquecimento sem causa da ação de repetição de indébito (por todos, aplicando prazo decenal, vide REsp 1.113.403/RJ, da Primeira Seção e, aplicando prazo trienal, o AgRg no AREsp 738.991/RS, da Quarta Turma). Nos embargos de divergência, a aplicação do prazo trienal específico para o enriquecimento foi afastada ao entendimento (i) de que as cobranças encontrariam causa no contrato, tida como “relação contratual prévia em que se debate a legitimidade da cobrança” […a coluna permite-se uma crítica ao argumento, pois a existência de contrato não significa a existência de causa para aquela cobrança específica...], e (ii) de que a ação de repetição do indébito é ação específica, o que impediria a remissão ao enriquecimento sem causa (dada a subsidiariedade da figura)9.
Neste julgamento específico, votaram vencidos os Ministros Raul Araújo, Luis Felipe Salomão e João Otávio de Noronha (todos componentes de turmas de direito privado), que entendiam pela aplicação do prazo trienal. O voto-divergente foi inaugurado pelo Ministro Raul Araújo e remete textualmente à decisão do Tema 610 e, mais especificamente, ao que afirma ser uma “evolução teórica do conceito de enriquecimento sem causa” acolhida na decisão do repetitivo.
Em sua questão de ordem, a Ministra Nancy Andrighi apresentou a cronologia destas decisões para demonstrar que a aplicação do prazo trienal à pretensão de restituição não mais encontraria abrigo na posição uniformizada do STJ, a qual, nas palavras de Andrighi, caminha no sentido da aplicação do prazo decenal à “pretensão de repetição de indébito relativa às hipóteses de responsabilidade contratual”10.
Os argumentos foram debatidos e, como já antecipado no início do texto, rejeitados por maioria, que manteve o Tema 610 tal como lançado originalmente. Em linhas gerais, a decisão pela manutenção da tese do prazo trienal em caso de nulidade contratual se deu ante a inexistência de amadurecimento sobre o tema a revisar e, adicionalmente, pelo fato de haver distinção fática entre as decisões: enquanto o Tema 610 trata da invalidade de cláusula contratual em contratos de plano de saúde, o EResp 1.523.744/RS versa sobre cobrança por serviços não contratados em contratos de telefonia.
Para além do Tema 610: a possível revisão do Tema 610 também levou à proposta de afetação, para revisão, do Tema n.º 938 (Pet. 14.369/DF (2021/0191368-6), no qual se definiu ser trienal a pretensão de restituição de valores indevidamente pagos a título de comissão de corretagem ou taxa SATI, no âmbito dos contratos imobiliários. Com a rejeição da revisão do Tema 610, a proposta de revisão do Tema 938 foi desafetada em 22.03.2023.
O joio e o trigo
O périplo narrado indica a existência de persistentes dúvidas sobre o alcance que deve ser dado à expressão “enriquecimento sem causa” empregada no art. 206, § 3º, IV CC. Ao menos duas interpretações são possíveis:
A primeira, que chamaremos aqui de estrita ou literal, vincula a regra de prescrição por “enriquecimento sem causa” à figura do enriquecimento sem causa positivada nos art. 88411 e sg. do CC. Como figura autônoma, o enriquecimento submete-se aos requisitos ali dispostos, dentre os quais a subsidiariedade prevista no art. 886 CC12. Forte nessa interpretação, o dever de restituir nem sempre estará atrelado à figura autônoma do enriquecimento sem causa. A restituição em caso de invalidade e em caso de resolução do contrato são exemplos de situações que, pelo critério de subsidiariedade, não se enquadram na figura específica do art. 884 e sg. Da mesma forma, outras figuras que levam à restituição, ainda quando vinculadas à noção de enriquecimento injustificado, como o pagamento indevido, estariam fora do âmbito de incidência da regra prescricional13. Definitivamente, a visão estrita não foi adotada no julgamento do Tema 610 (sobre o dever de restituir decorrente da invalidade), pois ali se aplicou o prazo trienal de prescrição com fundamento, justamente, no enriquecimento sem causa;
A segunda, que chamaremos de ampliada, compreende a expressão “enriquecimento sem causa” empregada no art. 206, § 3º, IV CC em sentido mais largo do que a figura positivada no art. 884 CC, para abarcar outras situações em que haja dever de restituir fundado no enriquecimento injustificado14. Dentre elas, destaca-se a figura, também autônoma, do pagamento indevido, regulado nos arts. 87615e sg. CC. Adotada tal visão, as situações de pagamento indevido e, portanto, as ações de repetição de indébito, estariam também abarcadas na regra trienal de prescrição. Tal visão não foi adotada no julgamento do EResp 1.532.744/RS nem no enunciado da Súmula 412, nos quais, apesar de se discutir pagamento indevido, foi aplicado o prazo decenal de prescrição e não o prazo trienal vinculado ao enriquecimento sem causa.
A discrepância de posições é reflexo de um problema anterior ainda mais grave: qual o âmbito de aplicação do enriquecimento sem causa no Direito brasileiro?
Para além da discussão sobre o escopo da regra do art. 206, § 3º, VI, não se poderia deixar de referir à existência de interpretação amplíssima do enriquecimento sem causa, que chamaremos, aqui, de visão principiológica16. Ela vê nele um princípio geral de direito cujo âmbito de aplicação vai além das situações em que haja dever de restituir. É o que se encontra, por exemplo, no emprego da expressão em ações de indenização por danos, especialmente quando se afirma, a propósito da fixação do quantum indenizatório, que se deve “evitar enriquecimento sem causa” (vide, por todos, REsp 912.772/RS)17.
Tudo isso aponta para a inexistência de uniformidade sobre o sentido da expressão “enriquecimento sem causa” - seja vinculada à regra prescricional do art. 206, § 3º, VI, CC, seja para além dela. Sem que se uniformize este entendimento, em um processo prévio e necessário de qualificação, não será possível alcançar verdadeira jurisprudência (que, de todo, não se confunde com um conjunto de decisões) sobre o tema tratado nesta coluna.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.
A coluna não irá tratar sobre o termo a quo do prazo prescricional, mas registra a existência de controvérsia doutrinária sobre o tema e, aos que sobre ele tiverem interesse, remete a NEVES, Julio. A prescrição no direito civil brasileiro: natureza jurídica e eficácia. Tese de Doutorado em Direito Civil. Universidade de São Paulo, 2019, pp. 106-114.
Do inteiro teor da decisão, lê-se que “tanto os atos unilaterais de vontade (promessa de recompensa, arts. 854 e ss.; gestão de negócios, arts. 861 e ss.; pagamento indevido, arts. 876 e ss.; e o próprio enriquecimento sem causa, art. 884 e ss.) como os negociais, conforme o caso, comportam o ajuizamento de ação fundada no enriquecimento sem causa, cuja pretensão está abarcada pelo prazo prescricional trienal previsto no art. 206, § 3º, IV, do Código Civil de 2002”.
A conclusão encontra crítica na doutrina de Pontes de Miranda: “a restituição que se opera imediatamente pela decretação da nulidade ou da anulação não é pelo enriquecimento injustificado, – é restituição por faltar qualquer legitimação do figurante do negócio jurídico nulo ou anulável a ficar com o que recebeu” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo XXVI. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 129).
A previsão específica de prazo para restituição do enriquecimento sem causa, como se sabe, inexistia no CC16, o que justifica a menção do enunciado também ao prazo geral de prescrição daquele diploma (art. 177, CC16).
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
Art. 206. Prescreve: (...) § 3º Em três anos: (...) V - a pretensão de reparação civil
Sobre o tema, vide MARTINS-COSTA, Judith. ZANETTI, Cristiano de Sousa. Responsabilidade Contratual: Prazo Prescricional de Dez Anos. Revista dos Tribunais. vol. 979. Maio 2017. p. 215-241.
A decisão remete também ao enunciado da Súmula 412 do STJ, que dispõe que “a ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil”, prazo este tido como aquele decenal (vide, por todos, AgRg no AREsp 32052/RJ).
Voto-Vencido, fls. 7 e sg. Acórdão da Pet n. 12.602/DF.
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.
Parte da doutrina vê o enriquecimento sem causa e o pagamento indevido como espécies de uma categoria mais elevada, o enriquecimento injustificado, de modo que o prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, IV, CC não se dirigiria ao pagamento indevido. Vide, por todos, MARTINS-COSTA, Judith; HAICAL, Gustavo. Direito restituitório. Pagamento indevido e enriquecimento sem causa. Erro invalidante e erro elemento do pagamento indevido. Prescrição. Interrupção e dies a quo. In: Revista dos Tribunais, vol. 956/2015, junho/2015, pp. 257-295.
É essa a posição de Henrique Cid, para quem não há verdadeira contraposição entre o pagamento indevido e o enriquecimento sem causa, de modo que a inaplicabilidade do prazo prescricional trienal a hipóteses de pagamento indevido apenas poderia se fundar em critério estritamente literal de interpretação do art. 206, § 3º, IV, CC e não na natureza dos institutos. Ver CID, Henrique S. Enriquecimento sem causa: estudo dogmático sobre o alcance do art. 884, caput, do Código Civil. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2021, pp. 166-167.
Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.
Vide, por todos, NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 3a ed. São Paulo: 2012, pp. 356 e sg. (Capítulo VIII, Algumas formas de tipificação do enriquecimento sem causa como princípio).
Essa visão amplíssima tem sido submetida a relevantes críticas doutrinárias. Em dissertação defendida na Universidade de São Paulo, Henrique Cid ensina que: “...a propósito da extensão do dano indenizável, que é correto falar-se em proibição do enriquecimento, mas não em proibição do enriquecimento sem causa, no sentido do art. 884, caput, do Código Civil. A proibição do enriquecimento do lesado, credor da indenização, é mero aspecto negativo da regra de quantificação do dano, prevista no art. 944 do Código Civil. Dela decorre que a indenização não deve conferir ao lesado nada além da reparação do dano sofrido.” (CID, Henrique S. Enriquecimento sem causa: estudo dogmático sobre o alcance do art. 884, caput, do Código Civil. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2021, p. 74).