#87. Sucessão internacional por morte e a força da vontade das partes na fixação da jurisdição
Por Lidia Spitz
A sucessão internacional causa mortis é aquela em que o de cujus deixa bens no Brasil e em outro Estado. Neste cenário, antes de ser instaurada qualquer discussão atrelada aos direitos sucessórios dos herdeiros, é preciso definir a jurisdição onde deve ser processado o inventário e a partilha desses bens.
Partilha no exterior de bens no Brasil: a regra rígida
Sob a perspectiva brasileira, a regra é que a autoridade judiciária nacional tem jurisdição exclusiva para proceder ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança tenha falecido no exterior ou seja de nacionalidade estrangeira ou, ainda, tenha domicílio fora do território nacional, nos termos do art. 23, II, do CPC.1
O caput do dispositivo indica, imprecisamente, que a competência (leia-se, jurisdição) da autoridade brasileira importa na “exclusão de qualquer outra”. Não é exatamente verdade. A jurisdição, sendo um reflexo da soberania, é delimitada por cada Estado sem qualquer interferência dos demais, cabendo a cada qual fixar as hipóteses que ensejam a sua respectiva atuação jurisdicional. Isso significa que o Brasil não tem ingerência sob as bases jurisdicionais diretas adotadas por outros Estados, sendo inóqua a previsão constante do caput do art. 23 do CPC no sentido de afastar todo e qualquer juízo estrangeiro do processamento do inventário e a partilha de bens situados no Brasil. Simplesmente, não cabe ao legislador nacional obstar o exercício da jurisdição por outros Estados.
Na realidade, o que o comando do art. 23, II, do CPC pode e visa a impedir é a produção de efeitos no Brasil de eventual decisão proferida por autoridade judiciária estrangeira acerca de uma das matérias ali elencadas. Explica-se. Via de regra, qualquer decisão estrangeira é potencialmente apta a produzir efeitos no país, desde que seja previamente homologada pelo Superior Tribunal de Justiça, salvo disposição em sentido contrário de lei ou tratado.2 No entanto, nos casos em que a decisão estrangeira versar sobre matéria arrolada como sendo de jurisdição exclusiva da autoridade judiciária brasileira, a sua homologação não será deferida, sendo o provimento estrangeiro incapaz de surtir efeitos neste país, por força inclusive de expressa disposição do art. 964 do CPC.3
Sendo assim, em matéria de sucessão causa mortis, como a jurisdição brasileira é exclusiva para processar o inventário e a partilha dos bens situados no Brasil, caso um juízo estrangeiro decida sobre essa questão, o provimento não será homologado, sendo, por conseguinte, ineficaz no país.4
Partilha no exterior de bens no Brasil: a prática flexibilizada
A despeito da previsão da exclusividade da jurisdição na hipótese do art. 23, II, do CPC, o STJ tem relativizado esse comando quando ausente qualquer litigiosidade entre as partes interessadas, deferindo a homologação da decisão estrangeira.
Nesse sentido, o STJ já homologou escritura pública de aceitação de herança, registrada em tabelionato na Espanha, na qual constava a partilha de bem situado no Brasil.5 Já homologou ato administrativo de notário público da Alemanha que declarara certo indivíduo herdeiro universal do de cujus, a ele alocando bem imóvel localizado no Brasil.6 Do mesmo modo, já homologou decisão proveniente da Argentina autorizando representante do espólio a realizar a venda de imóvel situado no Brasil.7
Na circunstância em que o falecido deixa testamento, a jurisprudência do STJ distingue os casos em que a autoridade judiciária estrangeira apenas ratifica o ato de última vontade do de cujus e não há dissenso de qualquer potencial interessado a respeito da partilha, daqueles casos em que há objeção ao cumprimento do testamento.
Na primeira situação, considera o STJ que a decisão da autoridade estrangeira apenas tem o condão de confirmar a expressão da vontade do falecido, e, não havendo oposição, é possível a homologação do provimento estrangeiro, mesmo versando sobre a partilha de imóvel situado no Brasil.8
Já na segunda situação, em que não há acordo entre as partes envolvidas, o STJ tem considerado inviável a homologação de provimento judicial estrangeiro, quando o de cujus contempla patrimônio situado no Brasil.9 Igualmente, quando a transferência é feita a terceiro estranho à última vontade do de cujus, como por exemplo em hipótese em que recusada a herança pela pessoa indicada pelo falecido, incide a regra de competência exclusiva prevista no CPC.10
Como se vê, o elemento comum a todos esses casos em que a exclusividade da jurisdição brasileira foi abrandada pelo STJ é o consenso dos envolvidos. Ausente litigiosidade, confirma-se o exercício da jurisdição por outro Estado soberano, sendo então homologada a decisão estrangeira que houver contemplado, em sucessão causa mortis, a partilha de bens situados no Brasil.
Partilha no Brasil de bens no exterior: espelhamento da regra de jurisdição exclusiva
Quando a autoridade judiciária brasileira é provocada para processar o inventário e a partilha de bens situados no Brasil e no exterior, a posição externada pelos magistrados nacionais é no sentido de espelhar a regra sobre a exclusividade da jurisdição brasileira prevista no art. 23, II, do CPC para outros Estados. Nessa lógica do espelhamento, se cabe somente à autoridade juidiciária brasileira proceder ao inventário e partilha de bens situados no Brasil, caberia exclusivamente à autoridade judiciária do Estado onde situado o bem no exterior proceder ao inventário e partilha desse mesmo bem.
No Recurso Especial 1.447.246,11 o mais recente caso enfrentado pelo STJ sobre a matéria, decidiu a Quarta Turma, à unanimidade, sob a relatoria da Ministra Isabel Gallotti, que a jurisdição exclusiva para proceder à partilha e ao inventário de bens situados no território configura norma de ordem pública. Destaca-se o seguinte trecho do acórdão: “Da análise dos bens arrolados, não existem apenas bens no Brasil e nos EUA, como também na Suíça e no Uruguai. Assim sendo, cada um desses países deverá ser competente para processar o inventário e partilha dos bens localizados em seus territórios. Trata-se de regra de ordem pública que não se pode entender derrogada pela conduta das partes”.
Portanto, quando o falecido deixa bens não apenas no Brasil, mas também no exterior, e é acionada a autoridade judiciária brasileira para processar o inventário e a partilha da totalidade dos bens, a atuação do juízo brasileiro deve se limitar aos bens localizados no território nacional.
Para reflexão
Como vimos, a despeito da regra de jurisdição exclusiva prevista no art. 23, II, do CPC, o STJ tem reconhecido decisões estrangeiras versando sobre o inventário e a partilha de bens situados no país quando não há litigiosidade entre as partes e quando o provimento estrangeiro se limita a cumprir a última vontade manifestada pelo de cujus. Noutros termos, pela via indireta da homologação, admite-se a flexibilização da jurisdição exclusiva.
Já nos casos de sucessão internacional processados no Brasil, o espelhamento da regra do art. 23, II, do CPC parece assumir caráter absoluto. Com efeito, o recente julgado da 4ª Turma do STJ inclusive alça o dispositivo ao status de “regra de ordem pública que não se pode entender derrogada pela conduta das partes”.
O contrassenso é nítido. De um lado, a jurisprudência admite que a autoridade judiciária estrangeira decida sobre inventário e partilha de bens no Brasil quando a vontade das partes envolvidas estiver sendo observada, mitigando-se, por consequência, o comando do art. 23, II, do CPC. De outro lado, quando se trata da atuação da autoridade judiciária brasileira sobre inventário e partilha de bens no exterior, a base jurisdicional interna é bilateralizada e empregada rigidamente, não sendo concedido espaço para a vontade das partes agir no sentido de privilegiar a Justiça nacional. Nesta última hipótese, tanto o automático espelhamento da regra de jurisdição exclusiva como o afastamento por completo da força da autonomia privada na escolha da jurisdição mereciam enfrentamento diverso.
Lidia Spitz
Professora de Direito Internacional Privado da PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Internacional pela UERJ. LL.M. com especialização em International Business Regulation, Litigation and Arbitration pela NYU. Sócia de Nadia de Araujo Advogados.
Como citar: SPITZ, Lidia. Sucessão internacional por morte e a força da vontade das partes na fixação da jurisdição. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 87, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire87>. Acesso em DD.MM.AA.
Art. 23, CPC: “Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I- conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil; II- em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional; III- em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional”.
Art. 961, CPC: “A decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação de sentença estrangeira ou a concessão do exequatur às cartas rogatórias, salvo disposição em sentido contrário de lei ou tratado”.
Art. 964, CPC: “Não será homologada a decisão estrangeira na hipótese de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira”.
Nesse sentido, v. (i) SEC 9.531, Corte Especial, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 19.11.2014 e (ii) AgRg na SE 8.502, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer, j. 16.10.2013.
HDE 4.815, Rel. Min. Humberto Martins, j. 22.03.2022 (“a jurisprudência do STJ vem relativizando essa competência ao permitir a homologação da sentença estrangeira quando esta confirma acordo entre as partes (SEC n. 11.795/EX, relator Ministro Raul Araújo, Corte Especial, DJe de 16/8/2019). Assim, a competência exclusiva ficaria restrita às questões litigiosas, em que a soberania do Juízo brasileiro não pode ser relativizada em favor da sentença estrangeira.”).
HDE 2.681, Rel. Min. Humberto Martins, j. 17.09.2020.
HDE 3.694, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 21.02.2020.
Veja-se: (i) STJ, HDE 6982, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 08.12.2022 (“Na espécie, embora seja de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, é possível a homologação solicitada. Isso porque o requerente foi declarado herdeiro universal dos bens deixados pelo de cujus e, se houvesse prolação de sentença brasileira, a solução adotada não seria diferente daquela definida pela sentença homologanda. Portanto não há razão para invocar a competência exclusiva da Justiça brasileira, já que, em ambas as jurisdições, o resultado seria o mesmo. Além disso, diante da expressão da vontade do requerido e da ausência de dissenso de qualquer interessado no ato administrativo, como é o caso dos autos, poderá ser homologada a partilha determinada no estrangeiro”); (ii) SE 15.610, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 20.09.2019.; (iii) HDE 2.101, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 06.09.2019; (iv) SE 15.461, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 09.04.2019 (“por força do art. 23, II, do Código de Processo Civil, compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra, proceder ao "inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional". Não obstante, havendo acordo entre partes, como é o caso dos autos, poderá ser homologada a partilha determinada no estrangeiro”); (v) SE 15.316, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 22.05.2017. Todavia, em alguns casos, mesmo estando todos os herdeiros de acordo com a decisão que ratificou os termos do testamento, o STJ indeferiu o pedido homologatório sob o fundamento de que decisão estrangeira não é passível de ser homologada se versar sobre imóveis no Brasil. Veja-se recentemente a (i) HDE 574, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 25.04.2019; e os casos mais antigos (ii) SE 5.647, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 02.05.2011; e (iii) SEC 1.030, Rel. Min Francisco Falcão, j. 08.06.2005.
V. SEC 15.924, Corte Especial, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 18.10.2017.
V. SEC 3.532, Corte Especial, Rel. Min. Castro Meira, j. 15.06.2011.
Recurso Especial 1.447.246, Quarta Turma do STJ, Rel. Min. Isabel Gallotti, j.18.04.2023.