#90. Prescrita a pretensão, prescreve também a exceção?
Por Rafael Villar Gagliardi
A parte de um contrato bilateral pode se opor à sua contraparte inadimplente que demanda o cumprimento do contrato. Ao fazê-lo, opõe a exceção de contrato não cumprido e, na qualidade de excipiente, invoca artigo 476 do Código Civil.1
Mas e se a pretensão devida a essa parte (excipiente em potência ou ato), estiver prescrita, quid juris? A questão coloca em rota de colisão, de um lado, a função de preservação do sinalagma contratual inerente à exceptio. De outro, ao encobrimento de eficácia inerente à prescrição, que amputa a exigibilidade da prescrição.
Desenvolvimento: as posições conflitantes na doutrina
A questão não encontra resposta uníssona na doutrina.2 A polêmica começa a partir da regra quae temporalia sunt est agendum, perpetua in excipiendum, cuja própria origem enseja querelas. Miguel Maria de Serpa Lopes rejeita essa afirmação, atribuindo a regra a um “gravíssimo equívoco” dos glosadores transmitido ao direito comum.3 Já para José María Gastaldi e Esteban Centanaro, a origem romana da regra seria evidente.4
Para Serpa Lopes, a exceção de contrato não cumprido seria prescritível “porquanto o credor insatisfeito tanto pode aguardar a ação para opô-la [a exceção] como paralelamente assiste-lhe o direito de exigir do outro contratante o cumprimento da prestação a que se obrigou”.5 Segundo o autor, a regra quae temporalia ad agendum estaria escorada em outra, qual seja, contra valentem non currit praescriptio.6
Em outras palavras, porque a exceção de contrato não cumprido é dependente, atingida a pretensão decorrente desse conteúdo pela prescrição, tanto a ação quanto a exceção seriam atingidas. São exceções dependentes aquelas umbilicalmente ligadas a outro direito, de que decorrem. Distinguem-se das autônomas ou independentes, que constituem o conteúdo imediato do próprio direito de excepcionar.7 São exemplos dessa modalidade de exceção o beneficium excussionis do fiador8 e a própria exceção de prescrição.
A concepção articulada por Serpa Lopes parece aproximar as duas situações jurídicas – ação e exceção, direito e contradireito – em razão de sua origem comum. Nessa medida, atribui maior relevância à ocorrência da prescrição, enxergando no exercício do contradireito, de alguma forma, uma manifestação da eficácia da ação material atingida pela prescrição. Sob essa perspectiva, extinta a pretensão pela prescrição, na forma do disposto no artigo 189 do Código Civil,9 seria artificial permitir qualquer iniciativa do titular lastreada em pretensão prescrita, ainda que se trate de uma exceção e não propriamente do exercício da pretensão. Essa aproximação reside no centro das críticas formuladas pela doutrina que sustenta a imprescritibilidade das chamadas exceções dependentes, inclusive da exceção de contrato não cumprido.
Além dela, articula-se que essa posição permitiria injustiças diante de prazos prescricionais distintos para pretensões relativas a cada uma das partes (ou mesmo quando apenas uma das partes se beneficiasse de causa de suspensão do prazo). A injustiça seria ainda mais grave quando a parte beneficiada pelo prazo mais longo propositadamente retardasse sua iniciativa ou de alguma forma levasse a contraparte a crer que não exerceria seu direito.
Essas críticas não parecem definitivas, quer se concorde ou não com o entendimento de Serpa Lopes. A exceção de contrato não cumprido de fato visa primordialmente a preservar o sinalagma funcional, garantindo a equivalência das prestações como pactuada pelas partes ou decorrente da própria lei.10 Contudo, cabe a quem a lei lhe atribui prazo prescricional mais curto, sabedora de tal circunstância, atentar-se a ela, adotando os mecanismos cabíveis para preservar a pretensão de que é titular em toda a sua integralidade. Tem-se, aí, a manifestação do princípio da atividade11 e mesmo da autorresponsabilidade.12 Já se a inatividade resultar da legítima confiança depositada pela parte em razão de conduta imputável à contraparte (factum propium), a questão atrairá o sistema de tutela da confiança, a partir do princípio da boa-fé objetiva e suas figuras parcelares.
Já para Pontes de Miranda, a qualificação da exceção de contrato não cumprido como exceção dependente não afasta a sua imprescritibilidade. Segundo o autor, o fundamento da exceção dependente num determinado direito não pode obscurecer a distinção entre esse mesmo direito e o contradireito que se exerce por meio da exceção. Tem-se, então, duas situações jurídicas ativas distintas.13
A dependência entre ambas é de sentido único, ou seja, a exceção depende do direito, mas o contrário não é verdadeiro. Por isso é que, por exemplo, seria possível renunciar à exceção de contrato não cumprido, embora preservando o direito ao recebimento da mesma prestação.14 O contrário, contudo, não é verdadeiro. Além de unilateral, a relação de dependência está centrada na existência do direito, não assim, na sua exigibilidade.15 Como a prescrição opera no plano da eficácia – encobrindo-a, dirá o autor –, não no da existência nem no da validade, o contradireito permanece intacto.
Pontes de Miranda distingue rigorosamente as situações jurídicas. Por isso, a inércia da parte em exercer seu direito à satisfação de seu crédito não se confundiria em absoluto com o exercício do contradireito visando a encobrir a eficácia da pretensão (e ação material) deduzida pela contraparte (excepto). Vistas as coisas por esse prisma, a regra contra valentem non currit praescriptio justifica também a imprescritibilidade da exceção dependente, dado que, malgrado pudesse fazer valer o direito por meio de ação material, o seu titular só poderia exercer o contradireito, tido como situação jurídica específica, quando exercida a pretensão (ou ação material) pela contraparte.16
A posição segundo a qual a prescrição não atingiria as exceções dependentes, inclusive a exceção de contrato não cumprido tampouco está isenta de críticas. Além da crítica puramente formal, lastreada na inaplicabilidade da regra contra valentem agere non currit prescriptio, esse entendimento também pode levar iniquidades, já identificadas pela jurisprudência em casos de negativa de outorga de escritura quando prescrita a pretensão de cobrança do saldo devedor.17
Solução do direito positivo e observações conclusivas
Com alguma sorte, a esta altura já deve ter ficado evidente que a polêmica a respeito da (im)prescritibilidade das exceções está limitada àquelas classificadas como dependentes. Quanto às independentes ou autônomas, reina consenso quanto à sua não sujeição à prescrição. A sua independência implica constituírem o próprio conteúdo do direito de excepcionar, de modo que a sua oposição pressupõe o exercício da pretensão pela contraparte.
Vai daí que a raiz das discussões pode ser encontrada na relação umbilical entre o direito (causa) e a exceção (consequência), verdadeiro contradireito que do direito decorre, mas que com ele não se confunde. A doutrina da imprescritibilidade das exceções dependentes traça rigorosa distinção entre as duas situações jurídicas ativas (direito e contradireito). A doutrina que refuta essa imprescritibilidade das exceções dependentes aproxima tais situações jurídicas distintas em razão da sua origem comum e por ver no exercício da exceção algum nível do exercício da pretensão extinta pela prescrição.
Diante de tais nuances, a manifestação do legislador é fundamental. Basta ver o caso português. Vaz Serra18 e Antunes Varela19, juristas cujos sobrenomes costumam alcunhar o Código Civil luso, defendem a imprescritibilidade das exceções dependentes. Ainda assim, houve-se por bem positivar tal entendimento no artigo 430 do Código Civil,20 doutrinário da imprescritibilidade das exceções dependentes.
No Brasil, o Código Civil de 1916 referia-se, em termos de prescrição, apenas a ações, mas, em 2003, a entrada em vigor do Código Reale representou uma mudança de posição. Estabeleceu-se no artigo 190 que “a exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”.
Direcionado às exceções dependentes, onde grassou a polêmica doutrinária, o dispositivo foi, inclusive, objeto do enunciado nº. 415 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.21 Enfim, por opção legislativa, prevaleceu a orientação preferida por Serpa Lopes e as exceções dependentes se extinguem uma vez operada a prescrição da pretensão da qual emanam. Tollitur quaestio, ao menos por enquanto.
Rafael Villar Gagliardi
Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisador Visitante da London School of Economics and Political Science. Fellow do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb). Sócio de Xavier Gagliardi Inglez Verona Schaffer Advogados. Advogado e árbitro.
Como citar: GAGLIARDI, Rafael Villar. Prescrita a pretensão, prescreve também a exceção? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 90, 2023. Disponível em: <ttps://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire90>. Acesso em DD.MM.
“Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
Lotufo, Renan. Código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 522; Leal, Câmara Antonio Luiz da. Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 57-58; Diddier Jr., Freddie Da exceção: tipologias das defesas. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 376, p. 78-79; Theodoro Junior, Humberto. Comentários ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. III, tomo II, p. 184; Beviláqua, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Campinas: Red Livros, 2001, p. 409. Dal Pizzol, Ricardo. Exceção de contrato não cumprido. São Paulo: Foco, 2022, p. 122-132. Biazzi, João Pedro de Oliveira. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2019, p. 227-229.
Serpa Lopes, Miguel Maria de. Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p. 341-343.
Gastaldi, José María e Centanaro, Esteban. Excepción de incumplimiento contractual. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, p. 128.
Serpa Lopes, op. cit., p. 354. No mesmo sentido Leal, Antonio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1959.p. 59-60; Nery Junior, Nelson e Nery, Rosa Maria de Andrade. Novo código e legislação extravagante anotados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 114-115; Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 335.
Por força dessa mesma regra, diz o autor que, uma vez oposta a exceção de contrato não cumprido, sobreviria a suspensão do prazo prescricional para o excipiente, dado que impedido de propor ação autônoma fazendo valer a sua pretensão ao crédito insatisfeito. (Op. cit., p. 355).
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, t. VI, p. 39.
“Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.”
“Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”
Gagliardi, Rafael Villar. Op. cit., p. 38-46.
“Diviso nesse código um princípio que o Prof. Reale não refere, que é o da atividade, pois, a meu ver, todo o código ressalta a necessidade do sujeito de direito ser ativo na preservação dos seus direitos, e no exercício dos mesmos, em contraposição às antigas posições ligadas ao status, que davam à inércia, inerente aos títulos, quer nobiliárquicos, quer de situação jurídica, a manutenção dos direitos. No novo sistema positivo brasileiro, o proprietário não será mais proprietário se não for ativo socialmente, o possuidor não será mantido como possuidor se não for ativo no exercício da posse, os pais não serão mais titulares de poder familiar se não o exercerem com permanência, o usucapião mais célere é reconhecimento do valor da atividade, pois não está ligado à simples posse, mas à posse produtiva. (...) Enfim, estamos diante de um código que poderá ser tanto melhor quanto nós formos sujeitos ativos e úteis socialmente, com o que, consequentemente, estaremos fazendo um direito justo" (LOTUFO, Renan. “A codificação: o Código Civil de 2002”. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore. Teoria geral do Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 99-100).
Neira, Lilian C. San Martín. La carga del perjudicado de evitar o mitigar el daño: estudio histórico-comparado. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2012, p. 63 e segs.
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Op cit., t. VI, p. 40. No mesmo sentido, Dal Pizzol, Ricardo. Op. cit., p. 122-125.
Gagliardi, Rafael Villar. Exceção de contrato não cumprido. São Paulo: Saraiva, 1ª ed, 2ª tiragem, 2010, p. 172 e segs.
“A prescrição da pretensão do demandado contra o demandante não obsta a que nasça e persista a exceção non adimpleti contractus. A exceção non adimpleti contractus é elemento do conteúdo do crédito, restringe o direito do outro figurante do contrato bilateral no tocante a poder exigir sem atender a que também deve” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, t. XXVI, p. 125).
“Exceção e extinção do direito de exceção. Por sua natureza de posterius, a exceção não poderia ser sujeita a prescrição; pois seria combater-se a inatividade de quem ainda não poderia exercer o direito de excetuar: toda exceção, para se opor, supõe que alguém exerça o direito, ou a pretensão, ou a ação, ou a exceção. Não se pode excepcionar quando se quer, e sim quando alguém avança contra o que tem o ius exceptionis” (Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Op cit., t. VI, p. 52). No mesmo sentido, Biazzi, Joáo Pedro de Oliveira de. Op. cit., p. 228.
“Pago o preço, de modo paradoxal o domínio formal que se encontra em nome do promitente vendedor não lhe confere mais nenhum direito, mas apenas o dever inexorável de outorgar a escritura definitiva. O mesmo ocorre se a pretensão de cobrança das parcelas do preço se encontra prescrita. Qual a finalidade de manter o promitente comprador como titular de um domínio vazio de conteúdo, se não mais pode usar, fruir, dispor e nem retomar o imóvel? Não havendo mais possibilidade de resolução contratual, resta completamente esvaziada tal garantia. Assim, manter a nua propriedade nas mãos do promitente vendedor serviria somente para perpetuar uma situação que, por natureza, é provisória, qual seja, a situação de cedente comprador. A grande prejudicada seria a segurança jurídica, pois o imóvel continuaria registrado em nome de um promitente vendedor destituído de qualquer direito palpável (nem mesmo de garantia) sobre a coisa. Em não tendo sido registrado o compromisso, terceiros poderiam adquirir essa propriedade já completamente esvaziada, o que evidentemente deve ser evitado” (TJSP, Apelação Cível 1004891-39.2017.8.26.0006, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 3.4.2018).
Vaz Serra, Adriano Paes da Silva. Excepção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus). Boletim do Ministério da Justiça, n. 67, jun 1957, p. 94-96.
Antunes Varela, João de Matos. Das obrigações em geral, v. I, 10 ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 401.
“Art. 430. Prescrito um dos direitos, o respectivo titular continua a gozar da exceção de não cumprimento, exceto quando se trate de prescrição presuntiva.”
“O art. 190 do Código Civil refere-se apenas às exceções impróprias (dependentes/não autônomas). As exceções propriamente ditas (independentes/autônomas) são imprescritíveis”.