#93. Críticas à liquidação antecipada do seguro garantia judicial antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal
Por Thiago Junqueira
1. Introdução
Tem sido amplamente divulgado na mídia que o STJ provavelmente examinará, sob o rito dos recursos repetitivos, a tese da “Possibilidade de liquidação antecipada do seguro garantia antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal”.1 Esta coluna, tendo como pano de fundo os autos do REsp 2.093.015/SP – inicialmente indicado como um dos recursos sujeitos ao julgamento sob esse rito, mas, ao fim, não conhecido por falta de prequestionamento2 –, pretende contribuir com alguns argumentos que questionam o merecimento de tutela dessa designada “liquidação antecipada do seguro garantia”.
2. Breve resumo do caso
A União Federal (Fazenda Nacional) ajuizou uma Execução Fiscal em face da Sanofi Medley Farmacêutica Ltda. para recuperar supostos débitos da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) relacionados ao Processo Administrativo nº 19515.005354/2009-15. Após decisão desfavorável na esfera administrativa, em 19/01/2018, a empresa ingressou com Ação Anulatória (nº 5001496-60.2018.4.03.6100) a fim de cancelar referidos débitos. Para garantir sua regularidade, apresentou apólice de seguro garantia cobrindo o valor total dos débitos com um adicional de 20%, que foi aceita pelo juízo, permitindo que a empresa emitisse uma certidão de regularidade fiscal.
A União Federal solicitou endosso na apólice para majorar o valor segurado, o que foi realizado. Na sequência, ela manifestou sua concordância com a garantia, mas requereu o direito de liquidar a apólice se uma sentença favorável fosse proferida em seu favor, de modo a não suspender a Execução Fiscal. O pedido, no entanto, foi negado pelo magistrado, destacando que, devido à alta exequibilidade do seguro garantia, não havia justificativa para sua liquidação antecipada sem prejudicar a parte exequente.
A União agravou da decisão, argumentando que o processo executivo fiscal não deve ser suspenso até que a ação anulatória seja concluída e que o direito de liquidar o seguro garantia assim que sentença favorável seja proferida na ação anulatória baseia-se na necessidade de priorizar o interesse público. Por outro lado, a empresa sustentou a necessidade da manutenção da suspensão da execução fiscal e a não liquidação antecipada do seguro garantia.
O agravo de instrumento da União foi provido para revogar a suspensão de trâmite do processo executivo; essa decisão deu causa à interposição de agravo interno pela contribuinte, o qual foi desprovido. A companhia farmacêutica interpôs recurso especial.
3. Principais teses para condicionar a liquidação do seguro garantia ao trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal
A União costuma defender a sua posição pela liquidação antecipada do seguro garantia com base, em especial, no artigo 919 do CPC (que, recorde-se, afasta o efeito suspensivo como regra geral nos embargos à execução, permitindo, porém, tal concessão da suspensão pelo magistrado quando presentes os seus requisitos e desde que a execução tenha como garantia a caução, a penhora ou o depósito), e no art. 1.012, § 1°, inc. III, do CPC – que dispõe que a apelação não terá efeito suspensivo em relação à sentença que “extingue sem resolução do mérito ou julga improcedentes os embargos do executado”.
Há, ainda, outros argumentos laterais, que serão rebatidos abaixo:
Permissividade do seguro garantia na execução fiscal. Nos termos do art. 9°, inc. II, da Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/1980 - LEF), o seguro garantia (conforme redação dada pela Lei n° 13.043/2014) é uma das garantias da execução que o segurado poderá oferecer na execução fiscal. Com a atualização da Lei em 2014, ao inserir o seguro garantia no referido art. 9°, o legislador buscou flexibilizar as opções disponíveis para garantir o cumprimento das obrigações judiciais, com o objetivo de evitar que os contribuintes fossem obrigados a retirar quantias significativas de seu capital de giro.3 Isso permite que eles mantenham suas atividades operacionais em curso enquanto contestam suas supostas dívidas fiscais. Some-se, ainda, que o também atualizado art. 15 da Lei passou a estabelecer que, em qualquer fase do processo, será deferida pelo Juiz ao executado a substituição da penhora por seguro garantia.
Devido processo legal e princípio da menor onerosidade do executado. Atualmente, é inconteste a necessidade de equilíbrio entre segurança jurídica dos contribuintes e arrecadação de recursos públicos através da execução fiscal, observando-se o princípio da menor onerosidade do executado (art. 805 do CPC). Nos termos do art. 32 da LEF, os depósitos judiciais em dinheiro (o que, na prática, equivaleria ao seguro garantia, caso esse fosse liquidado antecipadamente) só podem ser entregues à Fazenda Pública mediante ordem do juízo competente, após o trânsito em julgado da decisão. A imediata transferência dos valores depositados judicialmente à conta única do Tesouro Nacional, em virtude do disposto no art. 1°, § 2º, da Lei nº 9.703/1998, servindo esses para fins orçamentários, não serve de argumento suficiente para a liquidação antecipada do seguro garantia. Na verdade, esse mecanismo serviria para artificiosamente inflar a conta do Tesouro Nacional em prejuízo dos contribuintes e da própria coletividade.4
Prejuízo decorrente da liquidação antecipada da garantia e possibilidade de dano irreparável ao executado. É questionável o argumento da União no sentido de que “[q]uanto ao periculum in mora, o prejuízo decorrente da liquidação da garantia (que, no caso, são os encargos bancários, pois o dinheiro não sairá neste momento do patrimônio da agravada, mas sim da fiadora) não é fundamento apto para suspender o processo executivo. Isso porque foi a agravada quem optou por garantir o processo executivo mediante a apresentação de seguro garantia, e ao assim proceder, sabia, de antemão, que essa opção lhe geraria custos” (e-STJ Fl. 11). No âmbito do seguro garantia, é sempre contratada uma contragarantia, que é utilizada pelo segurador após a quitação do sinistro. Por isso mesmo, não se deve perder de vista que o tomador da apólice de seguro — no caso, a empresa executada — terá que tirar do seu patrimônio o valor despendido pelo segurador, logo na sequência do pagamento do sinistro pela seguradora.
Equiparação legal entre dinheiro e outras modalidades de garantia, especialmente o seguro garantia, que se caracteriza por sua alta liquidez e certeza. A conversão do seguro garantia em caução pecuniária aparentemente viola o art. 9º, inc. II e § 3º, da LEF, que equipara as modalidades de garantia em execução fiscal. Em sentido convergente, dispõe expressamente o art. 835, § 2º, do CPC: “[p]ara fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento”. A equiparação da “garantia da execução, por meio de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia” justifica-se pela sua substancial similitude, nomeadamente no que respeita à sua eficácia e segurança na proteção dos interesses do credor, mesmo que a exigência fiscal venha a ser julgada procedente.
Diferença entre suspensão da exigibilidade do crédito tributário e suspensão dos atos executivos. No caso sob comento neste texto, com base no art. 151 do Código Tributário Nacional, o Tribunal de origem entendeu ser possível a liquidação da garantia pelo fato de o seguro não constituir uma das hipóteses de suspensão de exigibilidade. Todavia, é preciso esclarecer que apesar de não suspender a exigibilidade do crédito tributário, o seguro garantia suspende a prática de atos executivos relacionados a esse crédito.5
Desvirtuamento da finalidade do seguro garantia e provável aumento dos prêmios. O seguro garantia tem como finalidade principal garantir o cumprimento de obrigações contratuais e judiciais. A liquidação antecipada em execuções fiscais poderia desvirtuar essa finalidade, tornando-o um mecanismo de pagamento de dívidas fiscais, o que não é sua função original. A imposição generalizada da liquidação antecipada tem o potencial de levar as seguradoras a aumentarem os custos dos prêmios de seguro garantia judicial, transformando esse produto acessível a poucas empresas.
Solidez dos seguradores e a inconteste possibilidade de satisfação dos interesses do credor, se for reconhecida a efetiva legitimidade do crédito tributário executado. Afirma a União que “[n]ão realizado o depósito previsto no seguro garantia, restará apenas mera expectativa de solvabilidade da instituição financeira, considerando o cenário preocupante da economia” (e-STJ Fls. 14/15). A afirmação desconsidera a solidez econômica dos seguradores que atuam no Brasil, todo o rigoroso controle de solvabilidade feito pela SUSEP, e o fato de que as operações de seguro garantia contam com resseguradores.
4. Considerações finais
Em síntese conclusiva, acredita-se que a transformação do seguro garantia em depósito judicial antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal afigura-se medida ilegal e desproporcional, resultando em impactos jurídicos e econômicos profundos, com consequências prejudiciais para toda a coletividade. É essencial, portanto, que o STJ leve em consideração esses elementos no julgamento, sob o rito dos recursos repetitivos, que se aproxima.6
Thiago Junqueira
Doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Advogado.
Como citar: JUNQUEIRA, Thiago. Críticas à liquidação antecipada do seguro garantia judicial antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 93, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire93>. Acesso em DD.MM.AAAA.
Em um primeiro momento, foram indicados como representativos de controvérsia os REsps 2.093.015/SP, 2.093.027/SP, 2.093.033/SP e 2.093.036/SP. No entanto, os dois primeiros (os REsp 2.093.015/SP e 2.093.027/SP) foram recentemente rejeitados, conforme consta na seguinte decisão: STJ, Rel. Min. Assusete Magalhães, REsp 2.093.033/SP, j. 18/10/2023. Sobre o destaque do tema na mídia, confira-se: ANNUNZIATA, Marcelo Salles. Posições do STJ sobre liquidação antecipada do seguro garantia. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/posicoes-do-stj-sobre-liquidacao-antecipada-do-seguro-garantia.ghtml.
Sobre o tema, confira-se: GOMES, Marcus Livio. Afinal, para que serve o seguro garantia? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-28/justica-tributaria-afinal-serve-seguro-garantia.
Afigura-se equivocado o argumento da União de que não se pode dizer que a solução em tela “é mais gravosa à recorrida, tendo em vista que o valor depositado judicialmente é remunerado por juros e atualização monetária através da taxa SELIC (art. 1º, I, da mesma lei). Posteriormente, em caso de procedência da ação anulatória, o valor depositado é devolvido à recorrida, com a remuneração referida” (e‑STJ Fl. 12). Há onerosidade excessiva ao tomador do seguro (empresa executada), uma vez que terá que pagar a contragarantia ao segurador, reduzindo a sua capacidade de investimento, contratação de funcionários, quitação de outras eventuais dívidas já líquidas e exigíveis etc.
Cfr. BRANCO, Mariana. STJ pode julgar liquidação antecipada do seguro-garantia sob rito repetitivo. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stj-pode-julgar-liquidacao-antecipada-do-seguro-garantia-sob-rito-repetitivo-13082023.
Envolvendo, conforme mencionado na nota 1 acima, os REsps 2.093.033/SP e 2.093.036/SP.