#96. Cláusula de entendimento integral e interpretação contratual
Por Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
Aquilo que já foi descrito como “americanização do direito” encontra na circulação de modelos contratuais uma de suas causas e impõe ao ordenamento de destino reflexão quanto à aderência daquilo que transplantado, pois, feito o movimento, o modelo não é mais a mesma coisa e não é mais o mesmo modelo.1 Tal ocorre com a chamada “cláusula de entendimento integral” (“entire agreement clauses”, “whole agreement clauses”, “merger clauses”, “integration clauses”), empregada com alguma frequência na prática negocial brasileira com a seguinte forma e o seguinte conteúdo: “Este contrato contém o acordo e entendimento integrais das partes sobre o negócio ora entabulado, substituindo, em relação aos signatários, qualquer outro entendimento anterior, seja verbal, seja escrito”.
Na prática negocial norte-americana, que é seu nascedouro, trata-se de cláusula por vezes entendida como se fizesse interna a “parol evidence rule” (que barra a integração da disciplina por manifestações precedentes ao contrato-texto), noutras vezes como se equivalendo à “plain meaning rule” (que impede o intérprete de acessar elementos externos ao puro texto, quando claro e inequívoco).2 Assunto de “bizantina complexidade”,3 ele ganha em embaraço quando de sua circulação, havendo, inclusive, quem defenda sua inoperância por se tratar de cláusulas-padrão sem ancoragem na efetiva vontade das partes.4 O mesmo não parece ocorrer com o direito brasileiro, por não se trabalhar com intenções unilateralmente expressas enquanto constitutivas da disciplina contratual, mas de uma única, que é intersubjetiva e, assim, objetivada no conteúdo.
Presente na concreta disciplina, resta indagar, sob a luz do direito brasileiro, se as mesmas funcionalidades hermenêutica e integrativa, detectadas na ambiência de origem, aqui se fazem presentes.5
Trato neste texto da primeira: pode uma cláusula de entendimento integral barrar ao intérprete a possibilidade de acessar elementos anteriores e externos ao texto contratual? Noutras palavras, é dispositivo que aprisiona o aplicador aos quatro cantos do instrumento negocial? A indagação faz sentido que se coloque não apenas por conta de tal funcionalidade ser reconhecida por alguns no ordenamento de origem e noutros de destino,6 mas sobretudo a partir da lente do novo art. 113, §2º, do Código Civil, que, inserto pela Lei da Liberdade Econômica (Lei Federal n.º 13.874/2019), autoriza às partes “livremente pactuar regras de interpretação” de seus negócios jurídicos.
Portanto, a resposta passa por compreender o espectro do novo dispositivo que se inseriu ao Código Civil, pois, uma vez que autorizada a livre disposição acerca de normas de interpretação, a cláusula de entendimento integral poderá vir a exercer a plena eficácia de limitação da atividade do intérprete.
Tal não ocorre, porém.
Primeiro, porque a literalidade do art. 113 §2º faz remissão, apenas, a regras de interpretação, sem aludir a postulados normativos ou a princípios. Como a disciplina da interpretação contratual no direito brasileiro é enucleada no postulado normativo da intenção comum das partes e em, pelo menos, quatro princípios (i.e. fixação genérica, ultraliteralidade, boa-fé e conservação do negócio jurídico),7 todos inequivocamente injuntivos,8 a margem de liberdade deixada pela littera do dispositivo é, desde pronto, apenas quanto a regras de interpretação contratual. Postulado normativo e princípios remanescem inafetados.
Segundo, porque, mesmo quanto às regras de interpretação, há algumas que inequivocamente cogentes no ordenamento jurídico brasileiro, portanto inderrogáveis. São assim, e.g., os incisos I (“comportamento das partes posterior à celebração do negócio”, que também abrange o anterior), II (“usos, costumes e práticas”) e V (“razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”) do art. 113, §1º, por se desdobrarem do princípio da ultraliteralidade; e o inc. III do mesmo art. 113, §1º, que refere à boa-fé, cogente por redundância ao caput. De outro lado, são exemplos de regras dispositivas – e, portanto, derrogáveis – as do inc. IV do art. 113 §1º (interpretação contra proferentem) e todas as de preenchimento de lacunas para contratos legalmente típicos (arts. 485, 596, 628, Parágrafo Único, 658, Parágrafo Único, 701, 721 e 724).
Se a disciplina da interpretação no direito brasileiro tem esse feitio, a indagação quanto à eficácia hermenêutica da cláusula de entendimento integral se resolve por lógica consequência: é dispositivo contratual que não poderá derrogar as normas cogentes de interpretação e, assim, não tem por funcionalidade aderente ao direito brasileiro aprisionar o aplicador aos quatro cantos do contrato.9 Não há espaço no direito brasileiro para o textualismo norte-americano da “plain meaning rule”. Aqui, a disciplina injuntiva da interpretação contratual impõe que o olhar do intérprete vá para além da dimensão textual do negócio, repetindo-se na aclimatação ao direito brasileiro, portanto, a mesma conclusão a que, noutras paragens, se chegou.10
Esvaziada a funcionalidade hermenêutica, resta saber se sobrevive a atuação integrativa, ou normativa, da cláusula de entendimento integral, e que consistiria em barrar a integração da disciplina por manifestações precedentes (ou por normativa externa) ao contrato-texto. Esta é questão que ficará pendente de resposta para uma próxima oportunidade.
Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito pela UFRGS. Diretor do CBAr, Secretário-Executivo da Comissão de Arbitragem e Mediação da ICC Brasil. Sócio de Contencioso e Arbitragem de TozziniFreire Advogados. Professor de Direito civil e arbitragem em cursos de Pós-Graduação, autor de livros e artigos nas áreas do Direito Civil e da arbitragem.
Como citar: NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Cláusula de entendimento integral e interpretação contratual. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 96, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire96>. Acesso em DD.MM.
LEGRAND, Pierre. L’hypothèse de la conquête des continents par le droit américain (ou comment la contingence arrache à la disponibilité). In: Archives de Philosophie du Droit. T. 45. L’Américanisation du Droit. Paris: Dalloz, 2001, p. 38.
BURTON, Steven J. Elements of Contract Interpretation. New York: Oxford University Press, 2009, pp. 120-121; FULLER, Lon L.; EISENBERG, Melvin Aron. Basic Contract Law. 8. ed. St. Paul: Thomson West, 2006, p. 637; KNAPP, Charles L.; CRYSTAL, Nathan M.; PRINCE, Harry G. Problems in Contract Law: cases and materials. 9. ed. Frederick: Aspen Publishing, 2019, p. 434; POSNER, Eric A. Contract Law and Theory. New York: Wolters Kluwer, 2011, pp. 142-145; KNIFFIN, Margaret N. Conflating and confusing contract interpretation and the parol evidence rule: is the emperor wearing someone else’s clothes? Rutgers Law Review. Newark: Rutgers School of Law, 2009, v. 62, p. 76 e ss.
MURRAY JR. John Edward. Murray on Contracts. 3. ed. Charlottesville: The Michie Company, 1990, p. 379.
Assim no direito italiano, considerada por alguns como “clausola di stile”: DE NOVA, Giorgio. The Romanistic tradition: application of boilerplate clauses under Italian law. In: CORDERO-MOSS, Giuditta (Ed.). Boilerplate Clauses, International Commercial Contracts and the Applicable Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 228.
Reflexão bastante mais expandida a esse respeito se poderá encontrar em NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Cláusula de Entendimento Integral ou de Acordo Integral. In: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo; ADAMEK, Marcelo Von; SILVA FILHO, Osny da (Orgs.). Cláusulas Contratuais. São Paulo: Almedina, no prelo.
CASTRONOVO, Francesco. Autonomia Contrattuale e Disponibilità dell’Integrazione. La merger clause dal diritto americano a quello italiano. Torino: Giappichelli, 2017, p. 81 e ss.; e VIGLIONE, Filippo. Metodi e Modelli di Interpretazione del Contratto. Prospettive di un dialogo tra common law e civil law. Torino: Giappichelli, 2011, p. 205. Assim também a CISG-AC Opinion No 3, Parol Evidence Rule, Plain Meaning Rule, Contractual Merger Clause and the CISG, 23 October 2004. Rapporteur: Professor Richard Hyland, Rutgers Law School, Camden, NJ, USA, ao descrever a funcionalidade da “merger clause” como capaz de “excluir provas extrínsecas para fins de interpretação contratual”.
Como tive a oportunidade de tratar em NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Comentário ao artigo 113 §§1º e 2º do Código Civil: interpretação contratual a partir da Lei da Liberdade Econômica. In: MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro (Orgs.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica. Comentários. São Paulo: Almedina, 2022.
Essa injuntividade é “a margem deixada à vontade pelo sistema jurídico” que “traça os contornos do campo onde se pode exercer o poder do auto-regramento (autonomia)”, assim só podendo a vontade ser manifestada “de conformidade com as normas jurídicas de natureza cogente” (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 161).
No mesmo sentido, em raro estudo a respeito: ROSTRO, Bruno Montanari. A cláusula de entire agreement nos contratos de fusões e aquisições. Revista CEJ. Brasília: Centro de Estudos Judiciários/Conselho da Justiça Federal, 2022, n. 83, p. 73.
E.g. no direito italiano, DE NOVA, Giorgio, op. cit., p. 229. O mesmo se dá sob a vigência dos “UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts”, de 2016, soft law vez ou outra escolhida pelas partes para a disciplina de seu concreto contrato. Segundo estes, uma “merger clause” pode vir a ter por fito declarar que determinado contrato não pode ser “contraditado ou suplementado por provas referentes a declarações ou acordos anteriores”, mas não limitar que estes sejam utilizados no processo de interpretação do contrato (art. 2.1.17).