#98. Cláusulas de hardship: o que considerar na sua negociação?
Como é impossível controlar o futuro - o que dirá eventos verdadeiramente imprevisíveis -, a prática comercial internacional desenvolveu mecanismo óptimo dentro das limitações inerentes à natureza humana: as cláusulas de hardship nascem para regular o destino da contratação diante do futuro desconhecido.1
O uso do plural não se deve ao acaso, afinal, não há uma formatação única que qualifique uma cláusula de hardship. Há, antes, diferentes ajustes possíveis que são reconduzíveis a um núcleo duro que se pode dizer comum.
Os esforços de estudo sistemático sobre tais cláusulas remontam aos anos 70, quando se tem notícia que foram consideradas como objeto específico de estudos pela primeira vez na academia, durante os debates do Working Group on International Contracts, em Liège, Bélgica, cujos resultados foram publicados sob o título de Droit et pratique du commerce international—Law and Practice of International Trade.2 De lá para cá, especialmente no âmbito internacional, não faltaram esforços para uniformização de seu conteúdo, com destaque para as iniciativas dos Princípios UNIDROIT3 e da International Chamber of Commerce (ICC) com suas cláusulas modelo.4
Mas, afinal, como se estrutura uma cláusula de hardship e o que se deve considerar quando são negociadas?
A estrutura básica da cláusula de hardship
Em geral, as cláusulas de hardship podem ser desdobradas em duas seções. Chamarei a primeira seção de “seção factual” e a segunda seção de “seção procedimental”.
A seção factual visa a expor as situações que conduzirão ao funcionamento da cláusula de hardship. Em termos diretos: quando um ambiente alterado será contratualmente relevante? Por evidente, a seção factual da cláusula de hardship deve ser lida em conjunto com outras disposições do contrato, as quais também podem prever a repartição de riscos entre os contratantes e, assim, relevar para a definição de um evento de hardship.
A seção procedimental, por sua vez, regulamenta o “como” lidar uma vez que seja satisfeito o suporte fático descrito na seção factual. Seu objetivo é organizar o que acontecerá quando uma alteração relevante aconteça, por exemplo, fixando regras sobre notificação pela parte que sofre seus efeitos, regulando a suspensão de execução, prevendo procedimento de renegociação, a extinção automática ou a adaptação de contrato por terceiros.
Em geral, é a existência da seção procedimental que diferencia a cláusula de hardship de outras previsões que lidam com o futuro ou com a incerteza, como cláusulas de caso fortuito e de força maior, que também servem para definir as circunstâncias que se enquadram (ou não se enquadram) no conceito5. Mais precisamente ainda, é recorrente a identificação das cláusulas de hardship a uma previsão procedimental – que pode ser mais ou menos específica – sobre o dever de renegociação entre os contratantes.6
Para além do básico: o que negociar?
O preenchimento do conteúdo da cláusula de hardship dependerá da necessidade específica dos contratantes. Importa conhecer mais de perto algumas delas, ressalvando, com Marcel Fontaine, que “a primeira tarefa de quem redige um contrato deve ser verificar qual seria a solução sob a lei aplicável, na ausência de uma cláusula específica”7. Em suma, conhecer antecipadamente qual é a lei aplicável é essencial para bem negociar qualquer disposição contratual. As cláusulas de hardship não são exceção à regra.
Na “seção factual”, destacam-se ao menos três abordagens que podem ser adotadas.
(i) Uso de listas: as partes podem listar uma variedade de situações que serão ou não serão consideradas como circunstâncias relevantes para permitir a operação da cláusula de hardship. Este mecanismo pode levar a diferentes variações de cláusula: (i.1) é possível excluir expressamente algumas situações do funcionamento da cláusula (por exemplo, “o aumento da taxa de juro legal ou da inflação não é considerado uma alteração relevante de circunstância”) ou (i.2) é possível, ao contrário, incluir expressamente algumas situações de gatilho para aplicação da cláusula, de forma exemplificativa ou taxativa. Ao fazê-lo, afirmarão que tais situações são previsíveis, mas que, ainda assim, impactarão de forma relevante o pactuado.
(ii) Uso de parâmetros genéricos: as partes podem referir a um limite de severidade, em termos genéricos, que justifique a operação da cláusula de hardship (por exemplo, “uma alteração substancial do equilíbrio de obrigações” ou “uma situação que cause injustiça ou desigualdade severa”).
(iii) Uso de indicadores objetivos: também pode ocorrer que as partes prevejam um parâmetro objetivo para medir o impacto da situação alterada, como requisito para a aplicação da disposição sobre hardship, a exemplo da previsão de que “a alteração do preço superior a 25% do montante acordado” autorizará a aplicação da previsão. Tais indicadores objetivos não devem ser confundidos com cláusulas de reajuste automático ou semi-automático, ou seja, que prevejam desde logo a métrica para adaptação do pactuado8.
Na “seção procedimental”, cabe discutir os caminhos diferentes que podem ser tomados caso ocorra uma situação de dificuldade e que, em suma, podem ser agrupados em quatro categorias: renegociação, extinção, adaptação ou manutenção do contrato.
(i) Renegociação: os contratantes podem criar uma obrigação contratual de renegociar. Tal previsão terá especial relevância em ordenamentos jurídicos nos quais o dever de renegociar não decorre diretamente do texto legal, como é o caso do Direito brasileiro. Com efeito, a previsão do art. 479 CC9 dispõe apenas sobre a possibilidade de que o réu em ação na qual se busca a resolução por onerosidade excessiva, ofereça a modificação equitativa do pactuado para evitar a resolução. Ajustada uma previsão de renegociação, a preocupação com a linguagem importa: afinal, as partes poderão exigir, pedir, convidar ou meramente propor a renegociação? A depender da vontade contratada, poderá haver obrigação de renegociar ou apenas uma possibilidade de adoção deste caminho. Para além disso, algumas outras considerações são relevantes: (i.1) procedimento de renegociação: mostra-se útil estabelecer como o processo de renegociação se inicia e se desenvolve. Dentre outras questões, é importante considerar a necessidade e o conteúdo específico de notificação e o prazo a ser observado; (i.2) critérios para renegociação: existem critérios aplicáveis ou as partes são livres para renegociar (e, especialmente, para recusar a renegociação)? (i.3) instrumentos de coerção: se renegociar for um dever, é útil refletir sobre o sistema de coerção para seu cumprimento específico ou inadimplemento definitivo. Na maioria das vezes, a renegociação será obrigação de meios, o que significa que o seu sucesso não é garantido. Nesse caso, as partes assumem a obrigação de envidar melhores esforços, como estar presente em sessões de renegociação ou responder de forma justificada a deteminada proposta, por exemplo. A negativa de participar no processo de renegociação pode configurar violação de dever contratual e ensejar suas consequências. A contratação de penalidade contratual para essa finalidade mostra-se relevante, bem como a previsão de consequências para a falta irremediável do cumprimento da obrigação.
(ii) Resolução: a resolução é a consequência padrão da mudança de circunstâncias em algumas jurisdições, como a brasileira (ex vi art. 478 CC10). Ao redigir as suas cláusulas, as partes podem alterar esse regramento, para a prever como consequência subsidiária, por exemplo, em caso de a renegociação falhar.
(iii) Adaptação: a adaptação do contrato pode ser resultado de uma renegociação bem sucedida, mas também pode ser remédio autônomo e obtido de forma heterônoma, ou seja, por atuação de terceiros. Este terceiro pode ser um juízo estatal, arbitral ou mesmo um terceiro neutro, como um perito. Para os casos em que a lei mandada aplicar não preveja mecanismos de adaptação, as partes poderão regular este procedimento ou, em situação oposta, em que a adaptação seja prevista legalmente, poderão afastar essa possibilidade.
(iv) Manutenção do contrato como originalmente contratado: nada impede, embora não seja o mais comum, que as partes estabeleçam que, caso a cláusula de hardship seja invocada e as partes não cheguem a acordo sobre a renegociação, o contrato permaneça intacto.
Hardship para além da cláusula de hardship: “happy fusion” com a cláusula de solução de conflitos
Questão aparentemente alheia à cláusula de hardship, mas que com ela dialoga de forma estreita, diz respeito à forma contratualmente escolhida para solução de conflitos. Saber, por exemplo, se será um tribunal estatal a decidir eventual conflito ou se as partes pretendem recorrer à arbitragem ou à mediação é essencial para conhecer a eficiência da previsão de hardship. A escolha também impacta a previsibilidade da forma pela qual a cláusula de hardship será lida pelo julgador.
O locus adequado para solução de possíveis conflitos na operacionalização da previsão dependerá, dentre outros fatores, da indústria ou do setor econômico em que o contrato está inserido. Aliás, tais fatores refletem-se tanto na cláusula de solução de conflitos como na redação da cláusula em si. Afinal, o que é considerado uma mudança relevante de circunstâncias num setor pode não ser uma mudança relevante em outros setores e o que se mostra uma opção interessante num setor (como a renegociação) pode não ser uma ideia interessante num setor diferente (que prefere a resolução do contrato, por exemplo).
Por aí se vê que, em verdade, as cláusulas de hardship seguirão sendo plurais, pois qualquer tentativa de as engessar a um único modelo seria inadequada à sua função.
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Cláusulas de hardship: o que considerar na sua negociação? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 98, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire98>. Acesso em DD.MM.AA.
Este texto é inspirado em palestra proferida por ocasião da IBA Annual Conference em Paris, outubro de 2023, em sessão do Comitê de Comércio Internacional e Distribuição.
Descrição pormenorizada sobre a metodologia e os resultados do encontro é feita por Marcel Fontaine e merece ser reproduzida: “when the concrete issue of choosing the subject of the first chronicle came up, several suggestions were made, but none of them seemed to be sufficiently attractive for an inaugural publication. A participant with a long experience at a Belgian company deeply involved in international trade, the regretted Jean-Marie Deleuze, then raised his hand and suggested “Why not hardship clauses?”. A distinctive moment of silence and perplexity followed. (…)” (FONTAINE, Marcel. “Chapter 1: The Evolution of the Rules on Hardship”. In: BORTOLOTTI, Fabio; UFOT, Dorothy Udeme (eds). Hardship and Force Majeure in International Commercial Contracts: Dealing with Unforeseen Events in a Changing World, Dossiers of the ICC Institute of World Business Law, v. 17, Kluwer Law International; International Chamber of Commerce (ICC) 2018), pp. 11-40. Acesso pela Kluwer Arbitration).
Capítulo 6, ”Seção 2: Hardship”, na qual são tratados o princípio da obrigatoriedade do pactuado, a definição de hardship e seus efeitos. Para uma visão geral sobre o ali disposto, remete-se a GAMA JR., Lauro. Contratos internacionais à luz dos Princípios UNIDROIT 2004. Soft law, arbitragem e jurisdição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 362-370.
A CCI possui cláusulas modelo de força maior e de hardship, acessíveis aqui. A existência de uma cláusula modelo, por sua vez, é justificada diante da falta de uniformidade em diferentes leis domésticas sobre o tema: “como forma de atenuar a incerteza, as partes podem querer regulamentar essa situação em seu contrato, independentemente da lei que o governa. A Cláusula de Hardship CCI pretende satisfazer essa necessidade por meio de cláusula padrão que pode ser inserida em qualquer contrato.”
No âmbito do Direito Internacional, a diferença entre uma cláusula de hardship e uma cláusula de força maior (force majeure) repousa no efeito da alteração de circunstâncias no contrato: enquanto na primeira, há uma dificuldade maior no cumprimento das obrigações ajustadas, na segunda haveria impossibilidade. Sobre o tema, remete-se às lições ainda atuais de BAPTISTA, Luiz Olavo. O risco nas transações internacionais: problemática jurídica e instrumentos (de defesa). In: Revista do Servidor Público, ano 40, v. 111, n.º 3, jul.-set./1983, pp. 31-38. Disponível em https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4849/1/1983%20RSP%20ano40%20v111%20n3%20jul-set%20p.31%20-%2038.pdf. Acesso em 03.01.2024.
Vide, por todos, MARTINS-COSTA, Judith. “A Cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração”. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 7, n.º 25 , pp. 11-39, abr.-jun./2010. Acesso pela RT Online.
FONTAINE, Marcel. ”Chapter 1: The Evolution of the Rules on Hardship”. In Fabio Bortolotti and Dorothy Udeme Ufot (eds), Hardship and Force Majeure in International Commercial Contracts: Dealing with Unforeseen Events in a Changing World, Dossiers of the ICC Institute of World Business Law, v. 17, Kluwer Law International, International Chamber of Commerce (ICC) 2018), p. 16. Acesso pela Kluwer Arbitration.
Sobre as cláusulas de reajuste automático ou semi-automático, vide MARTINS-COSTA, Judith. A Cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. In: Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 7, n.º 25 , pp. 11-39, abr.-jun./2010. Acesso pela RT Online. O tema também é tratado por Marcel Fontaine e Filip De Ly, que apresentam a seguinte diferenciação entre cláusulas de hardship e “index clauses, review clauses, exchange clauses, adaptation clauses”: “Such clauses differ from hardship clauses inasmuch as they provide for the modification of the original circumstances based on the occurrence of well-specified events (and not, for example, as result of "any unforeseen upsetting of the economic circumstances"). Consequently the effect on the contract can often be pre-arranged: immediate indexation, adjustment of exchange rate, alignment on more favorable conditions offered to third parties, etc. (whereas the circumstances in a hardship clause are such that they do not enable prior arrangements for amendment; re-negotiations will be required).” (FONTAINE, Michel e DE LY, Filip. Drafting international contratcs. An Analysis of Contract Clauses, Ardsley: Transnational Publishers, Inc., 2006, p. 257).
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.