#99. A exceção de contrato não cumprido e o tempo
Por João Pedro Biazi
A exceção de contrato não cumprido é uma figura conhecida da dogmática jurídica de direito privado. Apoiada no texto normativo do artigo 476 do Código Civil, pode-se compreender a exceptio non adimpleti contractus como uma defesa indireta de mérito – um contradireito – “por meio do qual a parte contra quem se pede, judicial ou extrajudicialmente, o adimplemento de uma prestação fundada em vínculo sinalagmático, pode recusar-se a cumpri-la, de modo a neutralizar a eficácia da pretensão da parte demandante”.1 O propósito primordial da exceção de contrato não cumprido é “encobrir”2 a eficácia da cobrança feita contra o excipiente (aquele que opõe a defesa), até o momento que o excepto (autor da cobrança inicial) satisfaça a sua contraparte.
Comumente reconhecida como categoria jurídica clássica do direito dos contratos e das obrigações, a exceptio non adimpleti contractus é tema de extensa bibliografia e de confrontamento jurisprudencial. A despeito de ter recebido atenção imemorial da pesquisa jurídica, o tema não deixou de colher contribuições recentes ao seu modelo hermenêutico. Cita-se como exemplo a promulgação do Enunciado 652 da IX Jornada de Direito Civil, que reconhece a aplicabilidade do instituto na violação de deveres prestacionais oriundos da boa-fé objetiva.3 Em outras palavras, o tema – apesar de antigo e estudado de forma competente por vários séculos – ainda oferece ao jurista contemporâneo desafios e oportunidades de evolução.
Um dos assuntos dificultosos sobre a aplicação do artigo 476 do Código Civil encontra-se suscitado no diálogo entre a exceptio e o próprio traspassar do tempo da relação contratual. Neste breve artigo, enfrentaremos duas questões deste gênero, notadamente na relação entre a exceção de contrato não cumprido e o fenômeno da prescrição.
Tento em vista que a pretensão de cobrança do excepto está neutralizada pela exceção, pode-se fazer uma primeira pergunta: o prazo prescricional do crédito perseguido, e então bloqueado pela oposição da exceptio, segue transcorrendo? Essa primeira pergunta ainda pode ser feita dessa forma: a exceção, ao mesmo tempo que defende o excipiente, também suspende ou interrompe o prazo prescricional da pretensão do excepto?
Este tema foi sugerido recentemente no julgamento do REsp nº 1611929/PE, realizado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, com relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques.4 O voto do Ministro Relator ostentou o entendimento de que a exceptio não tem o condão de afetar o início e o percurso dos prazos prescricionais atinentes às prestações sinalagmáticas.
A conclusão acima mostra-se alinhada com a natureza jurídica da exceção de contrato não cumprido. Como contradireito e exceção material dilatória, os efeitos operacionais da exceptio non adimpleti contractus cuidam tão somente da proteção ao excipiente, que não sofrerá quaisquer efeitos coercitivos de cobrança até que o excepto cumpra a sua contraprestação correspondente. Neste ínterim, ambas as pretensões sofrem do efeito prescricional. A oposição da defesa indireta, portanto, em nada altera o oportunismo que cada parte precisa ter com a perseguição do seu crédito.
Se o excepto, ao se deparar com o exercício autorizado da exceção de contrato não cumprido pelo excipiente, estiver receoso com o termo prescricional da sua pretensão, ele que cumpra com a sua contraparte. Afinal, o adimplemento do excepto levanta o “encobrimento” da exceção de contrato não cumprido, permitindo-se a sequência eficacial da cobrança. O excipiente tampouco encontrará, no seu exercício de defesa, qualquer modalidade de interrupção prescricional. É preciso que ele também cobre o excepto, ou que promova alguma modalidade específica de interrupção do prazo prescricional.
O fato é que a exceção de contrato não cumprido não irá alterar, por si, as consequências do tempo sobre as posições jurídicas contratuais – sobretudo quanto à pretensão.
Se o primeiro questionamento cuida do manejo da exceptio em um cenário no qual a prescrição ainda não aconteceu, o segundo questionamento desenvolve-se na circunstância de pretensões já maculadas pelo efeito prescricional.
Explica-se. um dos pressupostos de aplicação mais importantes da exceção de contrato não cumprido é a relação de interdependência entre prestação e contraprestação. Só poderá se valer da exceptio o devedor de prestação correlata a uma contraprestação da contraparte. O que acontece, entretanto, se uma dessas prestações – sinalagmáticas, exigíveis e ainda não cumpridas – estiverem prescritas no momento do exercício da defesa?
Em outras palavras: poderá o credor de dívida prescrita ainda se valer da obstrução eficacial da exceção de contrato não cumprido?
Em trabalho monográfico sobre o tema,5 ilustra-se a hipótese com o seguinte exemplo: em certo contrato de compra e venda feito por instrumento particular e com vencimentos simultâneos, a pretensão de exigir o preço prescreve em cinco anos (art. 206, §5º, I do Código Civil6), já a de exigir a coisa prescreve em dez anos (art. 205 do Código Civil7). No sexto ano, o comprador exige a entrega da coisa sem ter pagado o preço. Pode o vendedor opor exceção de contrato não cumprido, a despeito de ter prescrita a sua pretensão de exigir o preço?
A resposta deve ser afirmativa. Isso porque, em teoria geral de direito privado, esclarece-se que a pretensão não deixa de existir pela insurgência da prescrição. A prescrição “congela”8 a pretensão, mas não a elimina. O suporte fático da exceção de contrato não cumprido, então, segue presente – assim, portanto, como sua capacidade de oposição.
Deve-se anotar, todavia, que se a pretensão deixar de existir junto ao direito subjetivo da parte contratante – o que pode se dar, por exemplo, pela satisfação do crédito correspectivo ou pela sua impossibilidade superveniente – o contradireito da exceptio deixa de existir. Evidencia-se, com este raciocínio, a natureza dependente da exceção de contrato não cumprido – ela não é uma posição jurídica autônoma, mas sim inerente à existência da pretensão sinalagmática.
Acertada é a afirmação, portanto, que a exceção de contrato não cumprido é imprescritível – simplesmente porque ela não é uma pretensão, mas sim um contradireito, que notadamente não se sujeita aos efeitos da prescrição. Apenas a inexistência superveniente das pretensões pode se traduzir como a inexistência da exceptio.
Há tantas outras questões que cabem na fórmula da exceptio non adimpleti contractus. Espera-se que a grandeza deste desafio siga sempre se apequenando – de forma progressiva e incessante – pelo constante diálogo e pela boa aventurança dos estudantes.
João Pedro Biazi
Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Privado pela Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”. Professor de Direito Civil. Advogado.
Como citar: BIAZI, João Pedro. A exceção de contrato não cumprido e o tempo. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 99, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire99>. Acesso em DD.MM.AA.
Cita-se estudo anterior nosso: BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2019, p. 118.
A expressão é de Pontes de Miranda: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. Direito das obrigações. Consequências do inadimplemento. Exceções de contrato não adimplido, ou adimplido insatisfatoriamente, e de inseguridade. Enriquecimento injustificado. Estipulação a favor de terceiro. Eficácia protectiva de terceiro. Mudanças de circunstâncias. Compromisso, t. 26, Rio de Janeiro, Borsoi, 1959, p. 95.
ENUNCIADO 652 – Art. 476: “É possível opor exceção de contrato não cumprido com base na violação de deveres de conduta gerados pela boa-fé objetiva”.
STJ, REsp nº 1611929/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 16/08/2022, DJe. 14/12/2022.
BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro, Rio de Janeiro, Editora GZ, 2019, p. 229.
“Art. 206. Prescreve: [...] § 5º Em cinco anos: I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”.
“Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.
A expressão é, novamente, de Pontes de Miranda: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. Exceções. Direitos mutilados. Exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções. Prescrição. t. 6, Rio de Janeiro, Borsoi, 1956, p. 14.