#20. Entre a assinatura e o fechamento: a importância das chamadas "condições precedentes"
Nas operações de fusões e aquisições – mais conhecidas pela sigla em inglês “M&A” (mergers and acquisitions) –, é muito comum haver um intervalo de tempo entre o que se costuma chamar de signing e closing. No signing, o contrato é firmado, mas é no closing que os atos do fechamento da operação ocorrem, com a transferência dos ativos da parte vendedora para a parte compradora e o pagamento do preço (ou de, pelo menos, parte do preço).
Esse período de diferimento temporal, durante o qual os deveres prestacionais ficam suspensos, justifica-se por várias razões, especialmente porque na data do signing ainda vigora verdadeiro estado de incerteza quanto à realização do resultado prático final do negócio. As partes ainda não têm clareza em relação a certos fatores externos à formação do negócio (o comprador pode não saber, por exemplo, se vai conseguir obter o financiamento necessário para efetuar o pagamento do preço), nem a determinados atos internos ao próprio ciclo formativo do contrato (o vendedor pode não saber, por exemplo, se vai conseguir obter a aprovação da operação pela assembleia geral da sociedade alvo, que é uma condição legal de eficácia do contrato). Além disso, na data do signing, as partes ainda não têm todos os dados decisivos para dar seguimento ao negócio (muitas vezes, no signing, o comprador sequer concluiu a due diligence).
A eficácia do negócio entre o signing e o closing
Exatamente em razão desse estado de incerteza, a eficácia do negócio fica parcialmente suspensa. Parcialmente porque os deveres decorrentes do princípio da boa-fé objetiva surgem até mesmo antes da formação do negócio, ainda na fase das tratativas, e continuam a incidir no interregno de tempo entre o signing e o closing (e vão além, para a fase pós-contratual), mas os deveres prestacionais ficam suspensos (ou parcialmente suspensos) até a data do fechamento da operação. Até é possível que, na data do signing, haja pagamento de um sinal, mas os atos de transferência da participação societária só ocorrem no closing, quando o preço é efetivamente pago (ou, pelo menos, parcialmente pago).
Dependendo da operação, o interregno de tempo existente entre o signing e o closing pode ser maior ou menor, mas a experiência demonstra que, independentemente da extensão do intervalo, muita coisa pode acontecer nesse período. É precisamente nessa fase que sobressai a importância das chamadas “condições precedentes”, cláusula não obrigatória, mas que, na prática, está presente em todas as operações de M&A com fechamento diferido.
As chamadas “condições precedentes”
As “condições precedentes” consistem em circunstâncias estabelecidas pelas partes que devem ser satisfeitas até a data do closing para que o negócio produza seus efeitos regulares. São, portanto, condições consideradas indispensáveis pelas partes para a conclusão do negócio, que atuam no plano de sua eficácia. Na prática, caso uma condição precedente não seja implementada ou satisfeita, a parte a quem ela favorece poderá não concluir a operação de aquisição, sem qualquer ônus, ou renunciar à satisfação de tal condição precedente para prosseguir com a consumação da aquisição.
Em linhas gerais, costuma-se prever como condição precedente, por exemplo: (i) a inexistência de mudança significativa na situação da companhia-alvo entre o signing e o closing; (ii) a confirmação das declarações e garantias prestadas pelo vendedor na data do signing; (iii) a inexistência de lei, decisão judicial ou administrativa que proíba a conclusão da operação de aquisição; (iv) a obtenção das autorizações prévias cabíveis, incluindo de órgãos antitruste, como o CADE; e (v) a conclusão da due diligence, caso o comprador ainda não a tenha finalizado na data do signing. Evidentemente, o conteúdo da cláusula pode variar, conforme as peculiaridades da operação, mas esses são exemplos, por assim dizer, bem corriqueiros da prática.
A qualificação jurídica das “condições precedentes”
Diante da diversidade de fatores que podem vir elencados como condições precedentes, indaga-se se todas as circunstâncias previstas sob essa nomenclatura são, de fato, condições no sentido técnico do termo, nos moldes do art. 121 do Código Civil.1
No mais das vezes, a resposta será negativa. Apesar do nomen iuris, importado do common law, nem todos os fatores comumente elencados na cláusula de condições precedentes são, de fato, verdadeiras condições, assim entendidas aquelas que decorrem da vontade das partes e que subordinam a eficácia do negócio a um evento futuro e incerto. É preciso, então, não só saber identificar as “verdadeiras” condições, mas também qualificar os demais eventos constantes desse tipo de cláusula. No bojo das chamadas condições precedentes, encontram-se, normalmente, três diferentes institutos que não podem ser tratados da mesma forma ante as suas diversas consequências jurídicas:
1. Condições legais: São as conditio iuris, que muito se assemelham às condições voluntárias, mas não são fruto da vontade das partes, mas antes “parte da figura jurídica”.2 Assim, por exemplo, quando se elenca, dentre as condições precedentes, o fato de a operação ter que ser aprovada pelo CADE, não se está com isso subordinando a operação a uma condição voluntária. A aprovação pelo CADE nada mais é do que espécie de requisito legal para consumação da operação, imposto pelo legislador para determinadas operações.
2. Condições voluntárias: Essas são as condições propriamente ditas, no sentido técnico do termo, quer dizer, a cláusula que, derivada da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto, nos termos do art. 121 do Código Civil. Se as partes, por exemplo, acrescentarem um prazo durante o qual a aprovação do CADE terá de ocorrer (elencando como condição precedente a aprovação da operação pelo CADE no prazo de “x” dias), não se estará mais diante de simples conditio iuris, mas sim de autêntica condição, porque a eficácia da operação passa a ficar subordinada a uma condição voluntária: não basta o CADE aprovar; precisa aprovar dentro do prazo determinado pelas partes.
3. Obrigações a serem cumpridas pelas partes: O conteúdo das condições precedentes pode vir preenchido também com simples obrigações que as partes precisam cumprir até a data do fechamento da operação, sob pena de o negócio não ser concluído. É o que ocorre, por exemplo, se uma das partes se obriga a transferir certo ativo para uma sociedade com propósito específico, que será o veículo da operação. Trata-se de obrigação a ser cumprida, mas definitivamente não de condição.
A importância prática da distinção
Qualificar a cláusula corretamente é essencial para (i) determinar a disciplina jurídica que lhe aplicável e (ii) dela extrair a correspondente consequência jurídica. A importância prática da distinção reside, portanto, na consequência atribuída pelo nosso ordenamento, que é distinta para a cada um desses institutos.
Embora as consequências do descumprimento de uma obrigação e da inocorrência da condição suspensiva atuem ambas no plano da eficácia, delas decorrem efeitos significativamente diferentes:
Enquanto o descumprimento de uma obrigação gera inadimplemento – com a possibilidade de a parte prejudicada exercer diferentes pretensões –, o não implemento de uma condição suspensiva implica o não disparo em definitivo dos efeitos típicos do contrato.3
Além disso, as condições atraem a regra do artigo 129 do Código Civil, que reputa verificada a condição quando o seu implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, “considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento”.4
Diante de consequências jurídicas tão diversas, saber distinguir é essencial.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Entre a assinatura e o fechamento: a importância das chamadas "condições precedentes". In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 20, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/60229015>. Acesso em DD.MM.AA.
Código Civil: “Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”.
Fernanda Mynarski Martins-Costa, Condição suspensiva: função, estrutura e regime jurídico, São Paulo: Almedina, 2017, p. 25.
Se o leitor desejar se aprofundar no tema, recomenda-se fortemente a leitura da tese de doutorado de Fernanda Mynarski Martins-Costa, no prelo para ser publicada pela editora Almedina, sob o título: “Execução diferida do contrato em operações de fusões e aquisições de sociedades anônimas: análise de aspectos contratuais e societários”.
Código Civil: “Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento”.