#52. Na pauta do STJ: a prática perigosa de aliciar prestadores de serviço
O “Em Pauta” desta semana diz respeito ao REsp n.º 2.023.942-SP, julgado em 25.10.2022, cujo relator foi o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.1 A controvérsia girou em torno da interpretação do art. 608 do Código Civil,2 tendo como pano de fundo um contrato de prestação de serviços, celebrado entre uma empresa televisiva e um apresentador de TV, que foi prematuramente extinto pelo fato de o apresentador ter aceitado oferta de trabalho mais vantajosa oferecida por empresa concorrente.
Contextualização
De um lado, a Band, de outro, o SBT; no meio, o apresentador e humorista Danilo Gentilli, que tinha contrato de prestação de serviço em vigor com a Band, o qual previa, entre outros serviços, a realização de programas de TV e a cessão de direitos autorais e de exploração da imagem do artista.
Antes do decurso do prazo deste contrato, e após receber proposta profissional do SBT, o apresentador optou pelo rompimento do contrato e transferiu seu trabalho e equipe para o SBT. Para a Band, houve aliciamento do profissional, nos termos do art. 608 do Código Civil, e concorrência desleal. Diante disso, a Band ajuizou ação indenizatória requerendo, entre outros pedidos, a condenação do SBT ao pagamento de indenização em decorrência do aliciamento perpetrado.
Em primeira instância, o pedido indenizatório da emissora foi julgado parcialmente procedente para condenar o SBT ao pagamento de indenização no valor de R$ 3,684 milhões. Em sede de apelação, a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Para a corte estadual, o SBT sabia do contrato em vigor, o que indicaria a prática de aliciamento e imporia o dever de indenização com base no art. 608 do Código Civil.
A decisão do STJ
Por maioria de votos, a 3ª Turma do STJ entendeu que o SBT não deveria ser responsabilizado pela quebra do contrato, uma vez que a oferta de proposta mais vantajosa a artista contratado por emissora de TV concorrente não configuraria automaticamente prática de aliciamento de prestador de serviço. De acordo com o Min. Relator, a discussão passa pela análise da teoria do terceiro cúmplice, se esta deve ou não se aplicada, ainda que com certas peculiaridades.
Teoria do terceiro cúmplice
Já consolidada na doutrina e jurisprudência nacionais, a teoria do terceiro cúmplice leva em consideração que o contrato, mais do que uma relação jurídica entre seus signatários, é também um fato social, cuja existência não se limita às partes contratantes. Ou seja, o contrato não pode deixar de produzir certas repercussões em relação a terceiros, pois dele surge um dever jurídico destes não intervirem ou impedirem o cumprimento do contrato. O princípio da relatividade do contrato, segundo o qual o contrato produz efeitos apenas entre as partes contratantes, não impede a sua oponibilidade a terceiros, de modo que “os terceiros não podem comportar-se como se o contrato não existisse”.3 Do contrário, poderão ser responsabilizados por intervirem indevidamente na relação jurídica.
No caso, o Min. Relator ressaltou que, se, por um lado, a teoria do terceiro cúmplice reforça a função social do contrato e os deveres decorrentes da boa-fé objetiva, a condicionar, em alguma medida, o exercício da liberdade contratual de terceiros, por outro, a interpretação e aplicação do disposto no art. 608 do Código Civil demandaria reflexão mais profunda.
A interpretação do art. 608 do Código Civil segundo o voto vencedor
Para o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, o art. 608 do Código Civil não pode ser interpretado de forma apenas literal, pois isso resultaria numa realidade em que toda a coletividade teria o dever de abstenção da pactuação de negócios jurídicos com prestadores de serviço no curso de contratos anteriormente assumidos.
Segundo seu voto vencedor, “o art. 608 do Código Civil de 2002 busca combater práticas desleais entre agentes econômicos, conduta apta a demonstrar uma vontade manifesta de aliciar”. Assim, o reconhecimento da prática de aliciamento de prestadores de serviços “deve levar em conta a lógica econômica e concorrencial das relações jurídicas entabuladas entre prestador de serviço e contratante, com especial destaque ao mercado envolvido, de modo a conformar a conclusão do que consistiria o ato de ‘aliciar’ aos fundamentos e princípios constitucionais da ordem econômica, sobretudo a livre iniciativa e a livre concorrência”. Ou seja, a interpretação do ato de aliciar deve ser realizada de forma contextualizada.
Nesses termos, para o relator, no mercado de entretenimento televisivo, que é “altamente competitivo”, o aliciamento não poderia ser presumido pelo simples fato de um artista encerrar um contrato para aproveitar proposta mais vantajosa. Segundo ele, “a liberdade de contratar e a impossibilidade de manter alguém em uma relação contratual que não mais lhe interessa não podem ser desprezadas”, especialmente quando se trata de emissoras experientes que poderiam, inclusive, se precaver de tais riscos.
Com base nisso, o Min. Relator reconheceu que o SBT, ao apresentar oferta a artista que mantinha relação jurídica com emissora concorrente, não praticou o ato de aliciamento previsto no art. 608, uma vez “ausente qualquer indício da prática de concorrência desleal ou de violação dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva e da função social do contrato”.
Responsabilidade sem dano?
Um dos argumentos subsidiários do SBT para afastar sua responsabilização fundou-se na violação do art. 186 do Código Civil, em virtude da ausência de comprovação de dano a justificar a aplicação da cláusula geral de responsabilidade civil. Apesar de restar prejudicado o argumento, o Min. Relator destacou que, nos casos de responsabilização com fundamento no art. 608 do Código Civil, “a lei dispensa a prova do prejuízo, prefixando a indenização no valor que a lesada pagaria ao prestador pelo período de 2 (dois) anos”.
Esse entendimento é também reforçado no voto vencido da Min. Nancy Andrighi. Para a Min. Nancy, no art. 608 do Código Civil o legislador teria optado por “punir” tão somente a prática de aliciamento exitosa, sem exigir a configuração de outros requisitos. Segundo a Ministra, o referido artigo não versaria sobre o dever de indenizar por prejuízos causados, mas apenas descreveria uma conduta, cuja prática gera uma sanção pecuniária prefixada e, apesar de inspirado na teoria do terceiro cúmplice, seria um dispositivo específico, aplicável apenas aos contratos de prestação de serviços, dispensando a prova do prejuízo e exigindo a caracterização da simples conduta de aliciar, quando exitosa.
Na linha desses entendimentos, o art. 608 do Código Civil desponta como hipótese em que a responsabilidade civil assume feição punitiva, dispensando-se a demonstração do dano para a configuração do dever de indenizar. Assim, bastaria a demonstração do ato de aliciar – e seu êxito – para que a sanção prefixada no referido dispositivo fosse aplicada.
No entanto, esse caráter punitivo da responsabilidade civil – com razão – ainda é muito criticado no sistema jurídico brasileiro, principalmente no que se refere à sua aplicação aos danos extrapatrimoniais, justamente porque não se coaduna com a função primordial da responsabilidade civil e gera uma forte dependência do arbítrio do juiz. Como explica Maria Celina Bodin de Moraes:
“[p]ara que vigore a lógica do razoável nesta matéria parece imprescindível que se atribua caráter punitivo apenas a hipóteses taxativamente previstas em lei”, sendo que, “os punitive damages, tamanha a sua complexidade, somente devem ser aplicados em situações particularmente graves, porque esta é a única maneira de levá-los, efetivamente, a sério”.4
A decisão do STJ em análise, portanto, é de extrema relevância, uma vez que examina a interpretação do ato de aliciar para fins de aplicação do art. 608. Enquanto o voto vencedor realiza uma interpretação mais flexível e contextualizada, o voto vencido faz uma interpretação mais literal, deixando ainda mais expresso o caráter pretensamente punitivo do referido artigo.
Essa questão parece inédita no Tribunal e pode ainda render muitas discussões, pois é bastante corriqueiro o oferecimento de propostas de trabalho por empresas do mesmo ramo a profissionais que já estão vinculados contratualmente a outras instituições. Quando essa oferta será, de fato, considerada aliciamento para fins do art. 608 do Código Civil e quando não será?
Note-se que o controle do aliciamento de prestadores de serviços revela-se importante, sobretudo, em contratos que deixem claro a imprescindibilidade da atuação exclusiva do prestador, como, por exemplo, contratos em que (i) se ajusta exclusividade por parte do prestador; (ii) se exige dever de sigilo do prestador; (iii) existe uma especialidade do serviço a ser prestado.
A decisão do STJ, tratando especificamente sobre o ramo de entretenimento televisivo, joga luz apenas sobre um pedaço da discussão que pode afetar os mais diferentes mercados de trabalho e precisa ser analisada, por isso mesmo, com muita cautela.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: a prática perigosa de aliciar prestadores de serviço. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 52, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/102517444>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 3ª T., REsp 2.023.942/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2022, v.m., DJe 28.10.2022.
Código Civil: “Art. 608. Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”.
Antonio Junqueira de Azevedo. “Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da boa-fé objetiva. Impossibilidade de venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma, assunção pelos contratantes de riscos específicos e impossibilidade de fugir do 'programa contratual' estabelecido” (Parecer), In: Estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p.142.
Maria Celina Bodin de Moraes, “Punitive Damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas”, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 18. Rio de Janeiro: Padma, abr./jun/ 2004, p. 76.