#91. Na pauta do STJ: competência para decidir sobre validade e eficácia de cláusula compromissória em contrato de franquia
1. O tema
A coluna desta semana aborda alguns entendimentos do STJ sobre validade e eficácia de cláusula compromissória em contrato de franquia, tema que suscita preocupação na comunidade arbitral. Isso, porque a compreensão que tem sido adotada sobre aspectos tanto do contrato de franquia quanto da própria Lei de Arbitragem tem resultado em decisões que colocam em xeque o princípio Kompetenz-Kompetenz (art. 8º, parágrafo único1), pois atribuem ao juízo estatal a competência para decidir sobre a invalidade ou a ineficácia da cláusula compromissória sob o argumento de o contrato ter sido celebrado por adesão e de não se ter observado o disposto no art. 4º, § 2º da Lei de Arbitragem,2 o que seria reconhecível prima facie.
2. As decisões do STJ
Identificam-se no STJ algumas tendências em relação ao tema.
Em primeiro lugar, sobretudo no âmbito da 3ª Turma, tem-se entendido que o contrato de franquia, posto não encerre relação de consumo, se qualifica “inegavelmente [como] um contrato de adesão”.3
Além disso, diante de alegação de invalidade/ineficácia da cláusula compromissória em razão de inobservância do quanto previsto no art. 4º, § 2º, a Corte tem se limitado a verificar se algum dos específicos fatores de eficácia elencados no dispositivo estaria presente no caso concreto. Não identificado qualquer deles, qualifica-se a cláusula compromissória como manifestamente patológica, pelo que se atribui ao juízo estatal a competência para declarar sua ineficácia.4 De outro lado, constatada a presença de um dos específicos fatores de eficácia, prestigia-se o princípio Kompetenz-Kompetenz, reconhecendo-se a competência do árbitro.5
Ao que parece, todavia, as premissas adotadas para a determinação da competência para decidir sobre a validade e a eficácia da cláusula compromissória na situação descrita estão equivocadas.
3. Os pingos nos “is”
3.1. Contrato de franquia: presunção de paridade
Contrato de adesão não encerra tipo contratual, mas técnica de contratação por meio da qual uma das partes estabelece o programa contratual e a outra apenas adere ao quanto previamente definido pelo predisponente. Três são, portanto, as características ontológicas do contrato de adesão: a predeterminação, a unilateralidade e a rigidez do seu conteúdo, que materializam a assimetria de poder negocial entre as partes.
O contrato de franquia, por sua vez, é tipo contratual, disciplinado pela Lei nº 13.966/2019 (Lei de Franquia), que viabiliza a criação de um “sistema de franquia”, o que denota a ideia de um conjunto de elementos, concretos ou abstratos, interdependentes e intelectualmente organizados, que interagem para alcançar objetivo comum. O que garante a consecução do objetivo comum do sistema de franquia é a adoção de modelo padronizado de desenvolvimento da atividade pelos franqueados. A padronização é, pois, estruturante do setor, essencial ao funcionamento do sistema, sem a qual o modelo de negócio não se sustenta.
É, em boa parte, decorrência da necessidade de os franqueados seguirem o modelo padronizado para que se garanta o bom funcionamento do sistema de franquia, que a Lei nº 13.966/2019 impõe ao franqueador o fornecimento ao candidato da Circular de Oferta de Franquia (COF), que deve conter todas as informações constantes do extenso rol do art. 2º. A COF deve ser acompanhada de “modelo do contrato-padrão (...), com texto completo, inclusive dos respectivos anexos” (art. 2º, XVI). Cuida-se de minuta do contrato de franquia, elaborada unilateralmente pelo franqueador, que conterá obrigatoriamente um punhado de cláusulas rígidas, inalteráveis pelo franqueado, que visam justamente manter a uniformidade da atividade a ser desenvolvida. Daí não se pode inferir, todavia, que o contrato de franquia seja celebrado necessariamente por adesão.
Com efeito, o contrato de franquia, assim como qualquer outro tipo contratual, pode ser negociado ou celebrado por adesão. O fato de ser estruturante do modelo de negócio a padronização e a unidade de práticas a serem adotadas pelos franqueados não significa que o candidato não tenha poder de negociação em relação a cláusulas que não conformem a identidade da franquia. Ao contrário.
Em primeiro lugar, a Lei nº 13.966/2019 reconhece que o contrato de franquia estrutura “sistema de franquia empresarial, (...) sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento” (art. 1º, grifou-se). Cuida-se, portanto, de relação empresarial.
As relações empresariais se presumem paritárias, presunção que só se afasta em presença de “elementos concretos” que o justifiquem, nos termos do art. 421-A, CC. A atribuição, pela lei, de obrigação ao franqueador de apresentar minuta do contrato ao candidato não constitui elemento concreto capaz, por si só, de afastar a presunção de paridade.
O único efeito legal que se extrai exclusivamente da redação unilateral de cláusula contratual é que se lhe deve atribuir o sentido “mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo” (art. 113, § 1º, IV, CC). A forma de celebração por adesão requer mais do que a redação unilateral, requer a rigidez do conteúdo, que só pode ser aferida examinando os fatos do caso concreto, a forma como se desenvolveu a fase das tratativas, como se ultimou a celebração do contrato e a integralidade do seu conteúdo.
Nesse cenário, não obstante as partes possam não estar exatamente no mesmo patamar em razão do próprio mecanismo de funcionamento do sistema de franquia, é possível afirmar que, de regra, o contrato de franquia, celebrado entre partes empresárias, se presume paritário, cabendo ao franqueado o ônus de provar, por meio de elementos concretos, que o seu contrato foi celebrado por adesão.
Desincumbindo-se o franqueado do ônus de provar que celebrou o contrato por adesão, ganha relevância o art. 4º, § 2º da Lei de Arbitragem, que estabelece fatores de eficácia da cláusula compromissória em face do aderente meramente exemplificativos, como se analisará a seguir.
3.2. Art. 4º, § 2º: possível configuração do fator de eficácia por outros meios
Como já se pontuou, o que caracteriza a relação contratual por adesão e justifica a atuação protetiva do legislador “não é tanto a diferença econômica entre as partes, mas o poder de estabelecer unilateralmente as cláusulas que farão parte do instrumento contratual”.6 É essa ratio que também lastreia a exigência contida no art. 4º, § 2º, que se justifica com ainda mais razão considerando-se a relevância da autonomia privada para a celebração de cláusula compromissória. E a análise dos fatores de eficácia previstos no dispositivo7 corrobora que todos eles visam, justamente, identificar a efetiva concordância do aderente com a jurisdição arbitral, a revelar o livre exercício da sua autonomia privada.
De fato, para que a cláusula compromissória produza efeitos em face do aderente, exige a Lei de Arbitragem, alternativamente, que ele (i) “tom[e] a iniciativa de instituir a arbitragem”, ou (ii) “concord[e], expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”. Em ambos os casos, resta inquestionável a concordância do aderente com a cláusula compromissória.
Não se pode, todavia, afastar a possibilidade de se apurar o consentimento inequívoco do aderente por outros meios além dos expressamente referidos pelo legislador. Sendo isso possível, há de se conferir plena eficácia à cláusula compromissória, obrigando igualmente ambas as partes a submeter suas disputas à arbitragem, ainda que não tenham sido observados os fatores elencados exemplificativamente pela lei.
Constata-se, portanto, que não apenas a eventual qualificação do contrato de franquia como contrato de adesão requer análise minuciosa do caso concreto, como também a própria aferição da eficácia da cláusula compromissória em face do aderente pode exigir exame muito mais acurado do que a mera constatação da presença dos específicos fatores de eficácia previstos no art. 4ª, § 2º. E essa conclusão impacta, de forma decisiva, na definição da competência para analisar a cláusula compromissória, como se passa a demonstrar.
3.3. Inexistência de patologia reconhecível prima facie: competência do árbitro
Nos termos do art. 8º, parágrafo único da Lei de Arbitragem, cabe “ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”. Cuida-se da positivação do princípio competência-competência, que atribui ao árbitro poderes para regular os seus próprios poderes.
Excepcionalmente, admite-se que o Poder Judiciário examine a validade e a eficácia da cláusula compromissória antes de proferida a sentença arbitral, nas hipóteses em que a invalidade ou a ineficácia da cláusula é manifesta, “reconhecível prima facie, ou seja, de pronto, sem necessidade de maior exame”.8 Trata-se de situação em que a cláusula se revela teratológica, o que é aferível a partir de cognição sumária. Não sendo esse o caso, caberá ao árbitro examinar a validade e a eficácia da cláusula.
Nos casos em análise, a alegação de ineficácia da cláusula compromissória inserida no contrato de franquia sob a argumentação de que (i) sua celebração se deu por adesão e (ii) não foram observados os fatores de eficácia do art. 4ª, § 2º, está longe de ser reconhecível prima facie.
De fato, a investigação da eventual natureza adesiva do contrato de franquia requer exame detido dos fatos, sobretudo daqueles relativos à fase das negociações e à conclusão do contrato, bem como da integralidade do conteúdo negocial. Da mesma forma, ainda que constatada adesividade, a inexistência de cláusula negritada e assinada ou rubricada, ou de documento anexo, ou de iniciativa do aderente para a instituição da arbitragem não prova que a cláusula compromissória não lhe é oponível. O fator de eficácia da cláusula em face do aderente é a sua inequívoca manifestação de vontade concorde com a arbitragem, o que pode se aperfeiçoar por meios diversos daqueles elencados no art. 4º, § 2º.
Por conseguinte, compete ao árbitro decidir sobre a validade e a eficácia de cláusula compromissória, inexistindo, de regra, circunstância que autorize excepcionar o princípio competência-competência diante de alegação de ineficácia, sob o argumento de o contrato de franquia ter sido celebrado por adesão e de não ter sido observado o disposto no art. 4º, § 2º da Lei de Arbitragem.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: competência para decidir sobre a validade e a eficácia de cláusula compromissória em contrato de franquia. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 91, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire91>. Acesso em DD.MM.AAAA.
“Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.”
“Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”
AMARAL JR., Alberto do. Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e Venda. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 115.
No STJ, encontram-se diversos julgados que qualificam as previsões do dispositivo como requisitos de validade, e não como fatores de eficácia, como se sustenta nesta coluna.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2009, p. 177.