#34. Na pauta do STJ: o chamado "dano moral presumido"
Recursos repetitivos em pauta
O “Em Pauta” desta semana remete a dois recursos repetitivos que estão para ser julgados pelo STJ: (i) no Tema 1.096, a Primeira Seção vai definir “se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)”; e, (ii) no Tema 1.156, a Segunda Seção vai estabelecer “se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor”. Na pauta do STJ, portanto, desponta o chamado “dano presumido”, cuja configuração se dá na forma in re ipsa, mas a atenção desta coluna se voltará apenas para o dano extrapatrimonial.
A metodologia do in re ipsa
É afirmação corrente – alardeada aos quatro ventos – a de que o dano moral não precisa ser provado, sendo antes in re ipsa. A expressão em latim significa que, ao contrário do dano patrimonial que precisa ser provado em toda a sua extensão, o dano moral decorre do próprio fato ofensivo, de tal forma que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral. Trata-se, como apontam os autores, de uma presunção hominis ou facti, que tem origem nas regras da experiência comum. Essa ideia já se encontra tão arraigada em nosso sistema que alguns autores chegam ao ponto de afirmar que se trata de “presunção absoluta” que “dispensa prova em concreto” e “em contrário”. E, para explicar a afirmação, formulam diversos exemplos que associam o conceito de dano moral a uma perturbação da esfera anímica do lesado, impulsionados que estão pela corrente subjetiva do dano moral.1
A evolução da matéria no STJ
Ao longo do tempo, o STJ foi estabelecendo uma série de situações em que há a configuração do dano moral in re ipsa, e continua analisando, cotidianamente, os mais diversos casos em que se pode ou não presumir a existência do dano. É o que ocorreu, por exemplo, nos casos de devolução indevida de cheque pela instituição bancária, na inclusão ou manutenção indevida de nome em cadastro de devedores inadimplentes, nos litígios envolvendo abalo de crédito ou abalo moral, protesto indevido de títulos, morte de pessoa da família, perda de órgão ou parte do corpo, overbooking ou atraso de voo, na utilização indevida de imagem etc.2 Em todas essas hipóteses, que são bastante corriqueiras na prática, a prova do dano moral tem cedido lugar à sua presunção.3
Cinco casos recentes
Mais recentemente, o STJ reconheceu o dano moral in re ipsa em cinco diferentes situações:
(i) REsp 1.899.304:4 A 2ª Seção entendeu que cabe dano moral em caso de compra de alimento contaminado com corpo estranho, considerando indiferente a efetiva ingestão do alimento – ou do próprio corpo estranho – para a caracterização do dano moral, pois a compra do produto dito insalubre já é potencialmente lesiva ao consumidor.
(ii) REsp 1.643.0515 e REsp 1.675.874:6 Esses recursos deram origem ao Tema Repetitivo 983 em que se firmou a seguinte tese: “Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória”. Segundo o relator dos recursos, o ministro Rogerio Schietti Cruz, a Lei Maria da Penha – complementada pela Lei n.º 11.719/2008, que alterou o Código de Processo Penal – permitiu que um único juízo, o criminal, decida sobre o valor de indenização, o qual, “relacionado à dor, ao sofrimento e à humilhação da vítima, de difícil mensuração, deriva da própria prática criminosa experimentada”.
(iii) AgInt no AREsp 1.839.506:7 A 3ª Turma reformou acórdão que havia negado a indenização a um paciente cujo tratamento ocular quimioterápico, prescrito por seu médico, não havia sido autorizado pelo plano de saúde, sob a justificativa de que ele não preencheria os requisitos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar para a cobertura do exame e do tratamento postulados. O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou que a jurisprudência do STJ reconhece que, em algumas situações, há dúvida razoável na interpretação da cláusula contratual de cobertura do plano, não cabendo nesses casos dano moral, mas essa não era a hipótese dos autos.
(iv) REsp 1.642.318:8 A 3ª Turma estabeleceu que o reconhecimento do dano moral sofrido por criança vítima de agressão não exige o reexame de provas do processo – o que seria inviável na discussão de recurso especial –, sendo suficiente a demonstração de que o fato ocorreu. Para a relatora, ministra Nancy Andrighi, “a sensibilidade ético-social do homem comum, na hipótese, permite concluir que os sentimentos de inferioridade, dor e submissão sofridos por quem é agredido injustamente, verbal ou fisicamente, são elementos caracterizadores da espécie do dano moral in re ipsa”.
(v) REsp 1.758.799:9 A 3ª Turma entendeu que a disponibilização ou a comercialização de informações pessoais do consumidor em banco de dados, sem o seu conhecimento, configura hipótese de dano moral in re ipsa.
O que o subterfúgio da presunção revela?
A utilização do subterfúgio da presunção, sob o argumento de que o dano moral é in re ipsa, só parece fazer algum sentido porque parte do conceito subjetivo (e, por isso mesmo, impreciso) de dano moral. O caráter in re ipsa vem quase sempre associado a uma definição consequencialista de dano moral, preocupada com a repercussão da lesão no estado anímico do lesado. Nesse viés, dispensa-se a prova do dano moral, uma vez que não seria razoável exigir em juízo a prova da repercussão sentimental do evento danoso sobre a vítima, não só porque a dor e o sofrimento são fatos inteiramente subjetivos, difíceis de serem provados e mensurados, mas também porque são facilmente simuláveis.
Crítica à corrente subjetiva de dano moral
Reúne-se, assim, dentro do mesmo arcabouço uma miríade de situações bem distintas. No comum dos casos, o expediente in re ipsa acaba por restringir o montante da liquidação, sem exigir do julgador a avaliação de todas as nuances do caso concreto, a fim de efetivar a reparação integral; em outros, reconhece um dano moral inexistente, quando este sequer está configurado. E é exatamente isso o que não se deve admitir: que a reparação do dano moral ocorra, como vem ocorrendo, “no nível do senso comum”. Daí a crítica formulada pela Professora Maria Celina Bodin de Moraes, para quem a importância do dano moral “exige que se busque alcançar um determinado grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência do direito, contribuindo-se para edificar uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para demarcar as numerosas especificidades do instituto”.10
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: o chamado "dano moral presumido". In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 34, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/74931241>. Acesso em DD.MM.AA.
Nesse sentido: MENEZES DIREITO, Carlos Alberto; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil, vol. XIII, 3ª ed., Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2011, p. 122.
No caso específico do uso indevido de imagem, o Enunciado da Súmula 403 do STJ estabelece o seguinte: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Sobre o tema, há, ainda, o Enunciado n.º 587 da VII Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “[o] dano à imagem restará configurado quando presente a utilização indevida desse bem jurídico, independentemente da concomitante lesão a outro direito da personalidade, sendo dispensável a prova do prejuízo do lesado ou do lucro do ofensor para a caracterização do referido dano, por se tratar de modalidade de dano in re ipsa”.
Na jurisprudência, são inúmeros os exemplos de acórdãos que seguem essa linha: STJ, 2ª Seção, REsp 1.881.453/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 30.11.2021, DJe 07.12.2021; STJ, 4ªT., AgInt no REsp 1846222/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.08.2020, DJe 13.08.2020; STJ, 3ªT., AgInt no AgInt no AREsp 1546407/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 18.05.2020, DJe 26.05.2020; STJ, 3ªT., REsp 1677524/SE, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03.08.2017, DJe 10.08.2017; STJ, 3ªT., REsp 1642318/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 07.02.2017, DJe 13.02.2017; STJ, 3ªT., REsp 955.031/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.03.2012, DJe 09.04.2012; STJ, 4ªT., REsp 880.035/PR, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 21.11.2006, DJ 18.12.2006, p. 405.
STJ, 2ª Seção, REsp 1899304/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 25.08.2021, DJe 04.10.2021.
STJ, 3ª Seção, REsp 1643051/MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 28.02.2018, DJe 08.03.2018.
STJ, 3ª Seção, REsp 1675874/MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 20.02.2018, DJe 08.03.2018.
SJT, 3ª T, AgInt no AREsp 1978927/PB, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 27.06.2022, DJe 30.06.2022.
STJ, 3ª T., REsp 1642318/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.02.2017, DJe 13.02.2017.
STJ, 3ª T., REsp 1758799/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 12.11.2019, DJe 19.11.2019.
BODIN DE MORAES, Maria Celina. “Conceito, função e quantificação do dano moral”. Revista IBERC, v. 1, n. 1. Minas Gerais, nov.-fev. 2019, p. 11. Disponível em https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/download/4/3/. Acesso em 23.09.2022.