#11. O termo final dos lucros cessantes
Nesta edição, dando sequência ao Agire #2, que tratou do termo inicial dos lucros cessantes, a coluna “Em Foco” volta-se para o seu termo final, iluminando outro marco temporal importante desta faceta do dano patrimonial. No AGIRE #2, já se afirmou que o iter reconstrutivo da ressarcibilidade de qualquer lucro cessante é um processo cheio de dificuldades e que nem sempre o seu termo inicial coincide com a data do evento danoso (responsabilidade extracontratual) ou com a data que marca o início da mora (responsabilidade contratual); agora o que se quer destacar nesta edição é que essa dificuldade também surge no momento de se fixar o seu termo final.
Reconstruir o ciclo de desenvolvimento dos lucros cessantes é sempre um desafio, já que não é possível prever com exatidão como os fatos se desenrolariam, mas definir o seu termo final é um desafio duplo.
Em primeiro lugar, porque, no momento de se estabelecer o termo final, é necessário verificar se a decisão está em harmonia com suas condições externas de aplicação, o que nem sempre acontece.
Tome-se o exemplo dos pescadores que tiveram sua atividade laboral prejudicada em razão de vazamentos de óleo ocorridos em determinado rio. Embora cada pescador viva uma situação singular, o que se destaca é o fato de que algumas decisões tomam como intervalo temporal em que são devidos os lucros cessantes cerca de quatro ou cinco meses, enquanto outras vão para o extremo oposto e chegam até a considerar dez anos.1
Ainda que se diga que, dependendo do impacto ambiental, determinada área pode demorar muito mais tempo para se recuperar do que outras, o fato é que a decisão deveria levar em consideração não apenas isso, mas também o tempo que o pescador precisa para se adaptar àquela nova realidade. Não parece razoável conferir-lhe o período de dez anos se o suporte empírico existente demonstra que a área será recuperada em menos tempo ou que, muito antes disso, o pescador estará adaptado em outra região.2 É importante não perder de vista as condições externas de aplicação da decisão. Quanto tempo leva para a área afetada se recuperar? De quanto tempo aquele específico pescador precisa para se adaptar à nova realidade? Ele realmente conseguirá se adaptar? Essas são questões que o julgador deve apreciar no momento de fixar o termo final dos lucros cessantes.
O desafio é duplo, em segundo lugar, porque para se definir o termo final dos lucros cessantes é necessário também analisar se a cadeia causal sofreu algum tipo de interrupção.
No julgamento do Recurso Especial n.º 1.553.790/PE,3 por exemplo, a Terceira Turma do STJ analisou caso em que determinada instituição financeira tinha sido condenada ao pagamento de lucros cessantes em virtude de inscrições indevidas do nome de uma sociedade em cadastros de inadimplentes, o que supostamente havia contribuído para o encerramento de suas atividades. A controvérsia cingia-se a examinar se era possível, à luz do postulado normativo da razoabilidade, projetar os lucros cessantes para período posterior ao fim da empresa, prolongando-se o termo final em que os lucros cessantes seriam devidos para a data do seu efetivo pagamento.
Em 1ª instância, a instituição financeira foi condenada ao pagamento de danos emergentes e de lucros cessantes a partir dos primeiros “efeitos do ato ilícito (resultados negativos da empresa)”, que ocorreram em janeiro de 1992, até o efetivo pagamento da indenização, mesmo tendo a sociedade encerrado suas atividades muito antes e por outro motivo. A decisão foi mantida em segunda instância, mas no julgamento do recurso pelo STJ, a Terceira Turma entendeu que “o ato ilícito foi somente um dos diversos fatores que levaram o negócio à falência”.4 Em casos como esse, em que a falência não é um efeito necessário do evento danoso, não há como se estender o termo final dos lucros cessantes para além da data em que as atividades empresariais foram encerradas.
Outro caso interessante foi o Recurso Especial n.º 1.110.417,5 interposto pela sociedade Esso Brasileira de Petróleo (“Esso”), que havia sido condenada a indenizar a Bacabal Júnior Ltda. (“Bacabal”) pelos danos emergentes e lucros cessantes decorrentes de incêndio iniciado por um caminhão tanque, dirigido por preposto da Esso, que destruiu toda a instalação de um posto de gasolina, de propriedade da Bacabal. O acidente ocorreu em 17.05.1992 e, pelo que se infere do inteiro teor do acórdão, o posto ficou em obra por dez meses. Apesar disso, o laudo pericial levou em consideração para a fixação dos lucros cessantes o período de dez anos, compreendido entre a data do acidente e a data de realização da própria perícia, partindo da premissa equivocada de que “o posto nunca tinha retomado as suas atividades, situação esta comprovada com a certidão dos órgãos fazendários”.6
Nas razões do Recurso Especial, a Esso reiterou que a inatividade decorrente do incêndio durou apenas os meses necessários para as obras de reconstrução. Ressaltou, ainda, que era incontroverso nos autos “que a recorrida vendeu o terreno onde situado o empreendimento a outra empresa há mais de 11 anos, sendo este o motivo pelo qual não consta o registro de prosseguimento de suas atividades nos órgãos fazendários”. No julgamento, a Quarta Turma do STJ decidiu, por unanimidade, acolher as razões do recurso, observando que “a circunstância de a empresa ter optado por vender o imóvel onde funcionava o empreendimento, deixando de dedicar-se àquela atividade econômica, não justifica a extensão do período de cálculo dos lucros cessantes até a data da perícia”.7
Os casos citados servem apenas para ilustrar a importância de o julgador ficar sempre atento aos marcos temporais dos lucros cessantes. Tão importante quanto determinar o seu marco inicial, é delimitar a sua extensão, indicando na decisão qual será precisamente o termo final para efeitos do cálculo da indenização. Estender os lucros cessantes para além do período devido é ir de encontro ao princípio da reparação integral. Em relação aos valores que extrapolarem esse marco temporal, não há relação de causalidade que suporte a indenização. E aqui sobressai a “especial importância de la distinción entre causalidade física, natural o de hecho y causalidade jurídica (rectius imputación objetiva)”.8
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O termo final dos lucros cessantes. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 11, 2022. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/52386393>. Acesso em DD.MM.AA.
Gisela Sampaio da Cruz Costa Guedes, Lucros Cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade, São Paulo: RT, 2011, p. 295 e seguintes.
TJ/RJ, 1ª CC, AC 2006.001.25026, Relatora Maria Augusta Vaz, j. 25.07.2006, v.u., DJ 28.07.2006.
STJ, 3ª T., REsp. 1.553.790/PE, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, j. 25.10.2016, v.u., DJ 09.11.2016.
STJ, 3ª T., REsp. 1.553.790/PE, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, j. 25.10.2016, v.u., DJ 09.11.2016 – trecho do voto do relator.
STJ, 4ª T., REsp. 1.110.417/MA, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, j. 07.04.2011, v.u., DJ 28.04.2011.
STJ, 4ª T., REsp. 1.110.417/MA, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, j. 07.04.2011, v.u., DJ 28.04.2011 – trecho do relatório.
STJ, 4ª T., REsp. 1.110.417/MA, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, j. 07.04.2011, v.u., DJ 28.04.2011.
Pedro José López Mas, El lucro cessante: configuración actual y criterios para su determinación judicial, Madrid: Dykinson, 2021, p. 216.